Lei de cotas eleitorais femininas causa polêmica no Uruguai
O Senado uruguaio acaba de aprovar uma lei que obriga os partidos políticos a incluir, no mínimo, uma mulher a cada três candidatos, em suas chapas para cargos eletivos nas eleições nacionais de 2014 e nas municipais de 2015. Isso quer dizer que, em pr
Publicado 05/06/2008 10:30
A nova norma, por outro lado, limita o número de candidatos homens a um máximo de dois terços do total. É uma manifestação do método que se denomina “discriminação positiva”.
As longas negociações parlamentares que precederam a aprovação do texto demonstram que, salvo alguns brontossauros natos, quase ninguém queria deixar de “sair na foto”, tampouco perder a oportunidade de fazer constar publicamente sua correção política. O que algumas feministas apresentam como prova do machismo reinante (as hesitações dessa maioria de legisladores homens que terminaram aprovando a lei vencidos pelo cansaço, supostamente para não ficarem “mal vistos” perante a opinião pública) bem poderia estar demonstrando justamente o contrário, ou seja, que não vivemos em uma sociedade tão primitiva como pretendem aquelas que foram assistir aos debates do parlamento vestidas com roupas pretas até os tornozelos e com a cabeça coberta, com o objetivo de sugerir que a condição da mulher no Uruguai e no Irã é mais ou menos a mesma.
Se é certo que os mais machistas de nossos legisladores votaram unicamente para não ficarem “mal vistos”, de alguma maneira se reconhece que para a sociedade, ou para uma boa parte dela, é inaceitável a desigualdade entre homens e mulheres e considera-se que essa lei de cotas contribuirá para mitigá-la. Que a mencionada lei venha ou não a ter poderes curativos como os que supostamente exercitará são outros quinhentos.
O pedido para que haja mais mulheres no Parlamento parte do pressuposto de que o lógico seria que a composição do Parlamento refletisse mais ou menos fielmente a estrutura da sociedade. Se reconhecido ou não, o que se afirma é que se há 50% de mulheres na sociedade, e portanto, mais cedo ou mais tarde, deveríamos nos encaminhar a um Parlamento composto por 50 % de mulheres. O mesmo poderia ser alegado sobre os negros e os homossexuais. Se 4% da população uruguaia é negra e outros 4% são compostos por homossexuais, pois então que tenhamos 4% de legisladores negros e 4% de homossexuais. É essa idéia que pretendo impugnar nessas linhas. A criação de cotas em todo caso é um assunto menor, sempre e quando, claro, se reconheça o caráter discriminatório da iniciativa e a mesma seja transitória.
Se a política fosse uma tradução exata da sociedade civil, como pretendem aqueles que reclamam que cada grupo específico ou classe tenha seu próprio nicho, se ela fosse concebida como um edifício dividido em apartamentos nas quais cada parte é soberana, trabalhar com ela de maneira prática se converteria em uma tarefa impossível. A política desapareceria como espaço de articulação e síntese, e seu lugar seria ocupado por uma guerra de todos contra todos, em uma mera luta por espaço de poder, que é exatamente a forma mais segura de reduzi-la a escombros.
A radical despolitização que isso significa deveria chamar à reflexão, porque a reivindicação de que haja “mais dos meus” no Parlamento é, por assim dizer, uma reivindicação pré-política. Ela se afasta da deliberação ou da exposição de argumentos acerca do bem comum ou da razoabilidade ou justiça dos projetos e propostas. É uma reivindicação que considera que existe um direito a estar representado na arena política com base naquilo que a pessoa seja como rótulo, já que supostamente a cada parte cabe ou deveria caber um pedaço do todo. Mas as pessoas que tem interesse em política – e não em uma disputa por um espaço de poder para os seus – muitas vezes o têm sem considerar sexo, raça ou a condição social daqueles que enunciam razões.
Na reivindicação da criação das cotas, por outro lado, está implícito que o importante é que haja mais mulheres legisladoras, não importa quais venham a ser os pontos de vista políticos que elas defendam. Pareceria que a idéia latente por detrás dessa proposta é que, para uma mulher, não há nada melhor que outra mulher. Seguindo esse ponto de vista, deveríamos inferir que, para uma mulher de esquerda, seria preferível que houvesse mais representantes mulheres conservadoras do que legisladores masculinos de esquerda. Isso pode contribuir para arruinar o já deteriorado espaço político, a enclausurar o potencial emancipador da política, porque outorga preeminência à condição ou à natureza das pessoas, aos fatores que, de alguma maneira, não são passíveis de modificação, nelas. O que vem a dizer a reivindicação das cotas é que à minha tribo corresponde uma determinada parcela de poder, não pelo que propomos a todos ou pelos projetos que defendemos, mas sim pelo que somos. E isso que somos é imodificável.
A política assim concebida vem a ser um mero reflexo dos interesses que existem na sociedade, os congela em seu radical imediatismo. E isso termina por convertê-la em uma feira à qual cada pessoa vai para reivindicar aquilo que lhe cabe ou pertence. E quando isso ocorre é lógico e racional que só se confie nos da minha “tribo”, e se exija que como parte de tal tribo estejamos representados.
A política não é possível quando não existe espaço público, quando não existe o lugar onde se colocam em jogo os diferentes interesses e desejos, onde se consideram as distintas reivindicações, e cujas sínteses e decisões quase sempre implicam ignorar alguns desses interesses particulares em áreas que alguns chamam “bem comum” e outros justiça. Sem se colocar em jogo os próprios interesses e convicções não há política. Resta, evidentemente, responder por que a porcentagem de mulheres no Legislativo vem sendo inferior à porcentagem de mulheres na sociedade. Já está dito que não há por que existir uma correspondência entre os dois fatores, como não há por que existir uma correspondência entre o número de legisladores homossexuais ou negros e o peso que esses grupos representam na sociedade. Ou de jovens ou de estudantes. Mas a pergunta continua sendo pertinente.
Ao contrário de outros países, não há aqui nenhuma disposição legal que impeça mulheres de serem candidatas. Se a houvesse, deveria ser removida, naturalmente. Não se trata tampouco, e convém dizer para evitar as desqualificações e estereótipos utilizados por aqueles que costumam entrar nesse tipo de discussões, das inclinações naturais dos sexos ou à falta de talento das mulheres para determinadas funções, como argumentou sem nenhum pudor algum legislador com vontade de restringir as mulheres à cozinha. Suspeito que seja necessário buscar em outro lugar as causas do escasso número de mulheres parlamentares, como o do escasso número de mulheres policiais, militares ou jogadoras de futebol.
Sem pretender ingressar em searas sociológicas, essas causas são, me parece, de caráter cultural, remetem a tradições, a uma educação que delimitou as possibilidades de auto-realização das mulheres, e que possivelmente as tenha levado a cumprir determinados papéis que uma sociedade com aspirações igualitárias deveriam tratar de subverter. Trata-se das mesmas tradições e educação que sugerem que homens não podem chorar ou que há tarefas e profissões próprias de cada sexo. Essa divisão sexista do trabalho não será alterada por nenhuma lei de cotas. Porque para isso seria preciso aprovar leis que garantam cotas na polícia, entre os advogados, os engenheiros e quase tudo mais.
A discriminação positiva implícita na lei de cotas que o Parlamento uruguaio acaba de aprovar só poderia remediar um mal cuja existência parece-me não estar suficientemente demonstrada: a de que não existe um número maior de mulheres legisladoras porque os homens as impedem de se candidatar. Com toda franqueza, não vejo massas de mulheres reunidas nas sedes dos partidos tentando obter vagas nas chapas eleitorais, e homens reunidos nas portas barrando-lhes a entrada. Parece-me, para resumir em poucas palavras, que a lei e as cotas eleitorais representam uma monumental simplificação.