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Obama x McCain: armadilhas de uma eleição muito esquisita

A definição de que o jovem senador negro Barack Obama será o adversário democrata do candidato de George W. Bush, John McCain, abre um novo capítulo na campanha para eleger o “presidente do mundo”, como costuma dizer o senador José Sarney. Cada eleição

Até estrategistas republicanos admitem que Obama pode reunir em torno de si uma coalizão incomum. Ela inclui os democratas tradicionais, mas também os jovens, os negros, ativistas contra a guerra, independentes, afluentes e ainda milhões de cidadãos de todo tipo que compraram sua grande promessa: “Yes, we can change” (“Sim, nós podemos mudar”).



Advertências de Chomsky



Mas Noam Chomsky prevê que mesmo assim Obama perde “com toda probabilidade”. “O Partido Republicano, que tem uma vertente realmente fascista, conta com uma formidável máquina de difamação e vilipêndio que ainda não foi colocada em ação contra Obama”; e “o racismo está enraizado de forma muito profunda” nos EUA, argumenta o veterano pensador de esquerda americano para fundamentar seu pessimismo.



Barack Obama não cansa de repetir que, se McCain ganhar, será “o terceiro mandato de Bush”. É uma tirada de comício, que agita o fantasma do presidente mais rejeitado da história do país. Mas também é, no fundo, uma verdade. Os brasileiros e outros latino-americanos que dizem preferir as administrações republicanas na Casa Branca, por serem menos protecionistas, deviam abrir os olhos e enxergar o que é o republicanismo neoconservador deste início de século pós 11 de Setembro: uma força de ultradireita tão fundamentalista como não se via no comando de uma grande potência desde o suicídio de Adolf Hitler.



Pedras no caminho do “Yes, we can



Porém Chomsky, sempre perspicaz do alto de seus 79 anos, menciona outros tipos de obstáculos no meio do caminho do “Yes, we can” das multidões pró-Obama. Lembra que as primárias – que no caso dos democratas foram excepcionalmente concorridas e participativas – não se refletirão necessariamente na votação de 4 de novembro. Recorda também que nesse dia e penas metade do eleitorado irá às urnas.



As regras do jogo eleitoral estadunidense são cheias de esquisitices deformadoras. Elas despertam comentários mordazes nos observadores estrangeiros. No entanto, sobrevivem em grande medida tal como foram concebidas pelos “pais fundadores”, há mais de dois séculos. Pior, servem de base para um sistema político – o bipartidarismo à americana – que tem se mostrado blindado contra mudanças.



O último presidente dos EUA que não era democrata e nem republicano foi Millard Fillmore (1800-1874). Foi eleito em 1850, onze anos do início da Guerra Civil, pelo “Partido Whig”, que se dispersou em 1856.



De Fillmore até Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), sucederam-se 12 mandatos republicanos e oito democratas. Roosevelt, democrata, teve quatro mandatos seguidos (1933-1945) e morreu à frente da Casa Branca. Depois dele, foram mais nove mandatos republicanos e sete democratas.



Duas fases, cada qual com suas bizarrices



A campanha possui duas grandes fases: a das primárias e a do confronto entre os dois indicados, o democrata e o republicano.



A fase das primárias indica os candidatos a presidente dentro de cada um dos dois partidos. É a fase que acaba de se encerrar, com o fim do extenuante braço-de-ferro entre Barack Obama e Hillary Clinton, pela indicação democrata (ainda que Hillary não tenha anunciado que desiste).



Também esta fase tem suas esquisitices: alguns lugares adotam simples eleições primárias e outros recorrem aos “caucuses” (espécie de assembléias); há estados em que o voto é restrito aos filiados de cada partido e outros onde vigora o voto aberto; e há ainda os “superdelegados”, que não são eleitos mas em tese podem decidir uma indicação.



Começa então a fase da campanha propriamente dita, que já vinha se anunciando nas últimas semanas, com trocas de tiros cada vez mais freqüentes entre Obama e o republicano McCain. E entram em cena outras tantas excentricidades do sistema eleitoral americano, que influem na lógica da disputa e a distorcem.



Obstáculos ao eleitor



Todo cidadão maior de 18 anos em tese pode votar. Mas o voto não é obrigatório e a data da eleição, 4 de novembro, cairá numa terça-feira, um dia de trabalho como outro qualquer. Isso provoca uma grande abstenção, em média de pouco menos de 50%. Os não-votantes pertencem principalmente às camadas trabalhadoras, assim como às minorias de latinos, negros e indígenas.



Os obstáculos para o cidadão comum votar desequilibram sensivelmente os resultados das eleições nos EUA, em confronto com outros sistemas eleitorais conhecidos no mundo. Ocorre que as preferências político-partidárias não se distribuem por igual pelas diferentes classes sociais, faixas de renda e comunidades étnicas. É o que mostram as tabelas abaixo:




Voto indireto e não-proporcional



A outra distorção é ainda maior: o voto é indireto. Todo cidadão que comparecer às urnas em 4 de novembro na verdade não votará em Obama ou McCain, mas em um colégio de 538 “grandes eleitores”, que, por sua vez, se reunirão em dezembro para eleger o presidente. Ganhará quem tiver o voto de pelo menos 270 “grandes eleitores”, qualquer que tenha sido a votação popular obtida.



Na eleição presidencial de 2000, por exemplo, o candidato democrata, Al Gore, teve 543.816 votos a mais que seu concorrente republicano, George W. Bush. Bush, porém, elegeu-se presidente por ter conseguido 271 “grandes eleitores”, contra 266 de Gore. A mesma discrepância já tinha acontecido em 1824, 1876 e 1888.



O sistema americano tem ainda um agravante: além de indireto, o voto não é proporcional. Quem ganha a eleição em um estado leva todos os seus “grandes eleitores”. Isto vale para todos os 50 estados, exceto os pequenos Maine e Nebraska, que fizeram regras próprias (a quantidade de regras locais é outra bizarrice que intriga os forasteiros).



Um exemplo imaginário



Uma hipótese, politicamente disparatada mas possível pelas regras vigentes, deixa mais claro até onde pode ir a deformação. Suponhamos uma eleição presidencial em que o candidato “A” derrotou o candidato “B” por apenas um voto nos seguintes grandes estados:
Califórnia (55 membros no Colégio Eleitoral)
Texas (34)
Nova York (31)
Flórida (27)
Pennsylvania (21)
Illinois (21)
Ohio (20)
Michigan (17)
Geórgia (15)
Nova Jersey (15),
Carolina do Norte (15).



Imaginemos ainda que “B” arrasou “A” em todos os outros 39 estados, onde este último não teme um só voto.



O candidato “B” teria nesse caso 26 milhões de votos populares de vantagem sobre “A” (tomando por base o comparecimento da última eleição presidencial, em 2004). Mas “A” teria obtido 271 “grandes eleitores”, quatro a mais que “B”. Resultado: “A” seria eleito presidente dos Estados Unidos.



“Vermelhos”, “azuis”… e “roxos”



Na prática, o sistema não-proporcional faz com que os candidatos presidenciais não se interessem pelos estados onde eles já sabem que vão ganhar, ou perder. Claro: não tem a menor influência ganhar ou perder por um, mil ou um milhão de votos, se o número de “grandes eleitores” não varia com o tamanho da vantagem ou desvantagem.
Toda a campanha se concentra, portanto, nos estados onde o eleitorado está dividido ao meio e o resultado é incerto. São os “swing states” (“estados-balanço”), também chamados “estados campo de batalha”, ou ainda “estados roxos”.



(O último apelido exige um parêntese para explicar outra excentricidade americana. O roxo, no caso, é a mistura do vermelho republicano com o azul democrata; ao contrário do resto do mundo, os EUA adotaram a cor vermelha para simbolizar os republicanos, embora se situem à direita e à extrema direita, e a azul para os democratas. George W. Bush, portanto, é vermelho…)



Observe o mapa ao lado: os “estados vermelhos”, onde a direita republicana tem seus redutos, se estendem pelo Sul, o meio Oeste e Oeste, mas sem chegar à Costa do Pacífico. Já os “estados azuis” são basicamente os da Nova Inglaterra (nordeste dos EUA), a Costa do Pacífico e a região dos Grandes Lagos (onde fica Chicago, berço político de Obama), onde predomina a concepção “liberal”.



(Mais um parêntese necessário: nos EUA, “liberal” quer dizer mais ou menos o oposto do seu significado em outros países. Lá a palavra não se refere aos direitistas adeptos do livre mercado selvagem e sem freios, mas sim aos que se inclinam à esquerda, dentro dos limites em que o termo pode ser usado para falar da política institucional americana.)



Tudo para os “estados-balanço”



É um despropósito que os dois estados mais populosos e ricos, politicamente definidos – a liberal (no sentido americano) Califórnia e o ultraconservador Texas de Bush – sejam vistos como zeros à esquerda durante a campanha presidencial. Porém as regras do jogo impõem essa lógica.



Veja os mapas ao lado: em 2004 todas as atenções, republicanas e democratas, foram para os “estados-balanço”. Em 2006 não será diferente, ainda que a lista desses campos de batalha sofra alterações de eleição para eleição.



Neste momento, Obama se preocupa em especial com os “estados-balanço” onde ele perdeu as primárias para Hillary, como a Flórida, Michigan (dois estados onde as primárias ocorreram fora das normas), Ohio e Pennsylvania. Mas precisará cuidar também de casos como os da Califórnia e Nova York,  grandes “estados azuis” que preferiram Hillary e onde poderia haver uma tragédia caso esses eleitores se passem para McCain.



São os grandes problemas de um candidato que escolheu como tema-guia a “mudança”, em uma eleição que segue regras encroadas e avessas a mudar. A seu favor, Obama conta com o fato de que quatro em cada cinco americanos acham que o país está no caminho errado, em matéria de política econômica, preço dos combustíveis, corrupção e o desastre iraquiano. Conta com seu pique que mistura John Kennedy com Martin Luther King. Conta, principalmente, com o fôlego surpreendente do movimento político-social que atiçou. É o inusitado deste último elemento que torna difícil prever, hoje, qual será o desfecho de um projeto político que não muitos meses atrás tinha toda a aparência de uma pura quixotada.



* A maior parte das informações sobre eleições passadas foi extraída de alguns dos 2,4 milhões de verbetes em inglês da Wikipedia (http://en.wikipedia.org); o autor deste artigo por algum tempo foi um cético, mas hoje tira o chapéu para a enciclopédia que qualquer um pode editar