Depois de 67 anos, fortalezense vaia o sol

Com muito humor, músicas e danças, os transeuntes foram chamados para, novamente, vaiar o sol

Numa cidade conhecida por ter dias ensolarados quase o ano todo, parece impensável imaginar o fortalezense desprezar o sol. Mas isso aconteceu há 67 anos e se repetiu —com diferenças, claro — ontem, na Praça do Ferreira, no Dia da Grande Vaia ao Sol.


 


O ato começou por volta das 9 horas, mas não propriamente com a vaia. Primeiro, humoristas e músicos chamaram, com danças, música e piadas, transeuntes para o evento. A chamada não poderia ser mais genuína e arrancou risadas de quem estava na praça: “cearense não discute, bota boneco; não sorri, se abre; não brinca, fresca; não percebe, dá fé”.


 


De acordo com o compositor e intérprete Orlângelo Leal, essa forma de envolver a população e a reação espontânea através da vaia revelam muito do cearense. “Herdamos a vaia dos índios, que são engraçados e brincalhões, mas sem maldade. Temos poucos traços negros, mas os indígenas são muito fortes”, analisa, acrescentando que toda família de cearense tem alguém que transforma tragédias em comédias.


 


Para dar mais irreverência ao evento, músicos percorreram a praça convidando para a vaia, por volta de 10h30, primeiro sob a tenda que lembrava um circo e depois a céu aberto. Não foi espontânea como a de 1942, mas animou quem participou, como o aposentado Francisco Roberto Freitas, 77. “Desde menino andava aqui na praça. Meu pai falava dessa vaia, dizia que até com o sol o povo era gaiato”, diverte-se.


 


Dessa vez, 67 anos depois, o evento teve duas razões para acontecer: relembrou o dia em que, após três dias nublados e de chuvas na Capital, dezenas de transeuntes e trabalhadores do Centro pararam suas atividades, espontaneamente, para vaiar o sol. Na ocasião, havia rumores de seca e tudo que o cearense queria era ver a água cair do céu, o que não ocorreu em 1942. Como explica o escritor e psicanalista Jansen Viana, autor do livro infantil ‘A Vaia no Sol’, o ato não foi como crítica ou protesto, mas uma maneira pitoresca de desejar a chuva.


 


“Havia uma clemência de que a seca fosse embora”, explica, classificando o episódio como a capacidade de o cearense fazer humor e rir diante da própria dificuldade.


 


Ato na Praça inicia evento Pé na Carreira


 


De acordo com Fernando Elpídio, diretor da Letra Viva Comunicação e Eventos, que organizou o ato, a vaia iniciou a programação do “Pé na Carreira”, corrida com jeito cearense que acontecerá dia 10 de maio no Poço da Draga, na Praia de Iracema. Segundo Fernando Elpídio, pesquisando sobre o tema, ele descobriu que todas as corridas de rua de Fortaleza eram do mesmo jeito.


 


“Mas cearense não faz corrida, faz pé na carreira. Por isso a largada será com uma grande vaia, como só cearense sabe dar”, observa — inclusive com a presença da humorista Rossicléa. O objetivo das atividades é incluir o 30 de janeiro no calendário oficial da cidade, como mais uma atração turística e, ao mesmo, tempo resgatar a histórica irreverência e tradicional molecagem cearense.


 


Afinal, como explica o escritor e psicanalista Jansen Viana, autor do livro infantil ‘A Vaia no Sol’, em 1942, a vaia tornava-se simbólica pela prevalência no Estado da agricultura dependente diretamente de chuvas, mas não deixa de demonstrar a capacidade do cearense de usar o humor para superar as situações adversas.


 


Hoje, não se pode afirmar o mesmo. Principalmente, devido ao turismo, o sol é bem-vindo em qualquer época para grande parte da população, embora a chuva continue sendo esperança para sertanejos. “Independente, a intenção é preservar a nossa capacidade de superação. É típico do cearense sobreviver e resistir sempre com bom humor”.


 


Opinião: O centro nervoso – Juarez Leitão


Historiador, professor e autor do ´Praça do Ferreira: República do Ceará Moleque´


 


A Praça do Ferreira sempre foi o centro nervoso da cidade. Aqui, houve grandes manifestações populares, artísticas, comícios. A vaia ao sol ocorreu em meio a muitos acontecimentos. Foi um protesto, mas algo típico da molecagem cearense. Quando o sol apareceu, após três dias de tempo nublado, um gaiato qualquer desencadeou a vaia que se tornou histórica. Vaiar o sol é um absurdo em qualquer canto do mundo, menos na Praça do Ferreira. Mesmo porque o sol é um patrimônio do Ceará. Tudo começou com Antonio Ferreira, que montou a botica quando era só um lamaçal com alguns casebres. O primeiro nome foi Feira Nova. O centro era o Passeio Público. Ferreira aplicou o primeiro projeto de urbanização em Fortaleza, de Silva Paulet. Em 1942, estávamos em guerra, embora não oficialmente. Alguns navios foram atingidos e afundados. Em agosto, oradores populares agitaram o povo para destruir e incendiar lojas de alemães, italianos e japoneses. À noite, a cidade apagava a luz com medo dos ataques. Na época, ocorreu o primeiro Congresso de Poesia. Tudo isso repercutiu nas conversas, que acontecem ainda hoje.