Crítica da perseguição policial aos negros do Sapê do Norte do ES

35 Quilombolas do Sapê do Norte foram seqüestrados durante mais uma operação irregular da justiça capixaba. Na manhã do dia 11 de novembro, enquanto se preparavam para o trabalho, as famílias quilombolas de São Domingos foram abordadas por mais de cem policiais armados com metralhadoras, cavalos e cachorros. As casas foram invadidas e os familiares foram agredidos, insultados e algemados enquanto os pertences eram revirados sem que nenhum documento de prisão fosse apresentado.

Por Vitor Hugo*

O jornal Tribuna do Cricaré, que circula no município de São Mateus e cidades vizinhas, publicado no dia 12 de novembro estampa em sua capa duas matérias que merecem ser pensadas. Vamos começar pela dimensão visual das chamadas destas matérias. A mais chamativa, escrita em letras garrafais, grandes e pretas, sobre um fundo levemente ocre e margens grossas de um amarelo ocreado bem visível, podemos ler: “São Domingos” “PM cumpre mandado de busca e apreensão” “p.3”. Logo abaixo, ao lado de um anuncio de venda de um sítio, lemos: “Câmara promove debate sobre território quilombola” “p.2”. Esta ultima chamada é escrita em letras brancas sobre um retângulo verde, sem margens. A matéria da segunda página falava sobre “clima tenso” e apresentava um claro teor contra as comunidades quilombolas.

Um resumo pode ser feito do seguinte modo:

“No dia 10 deste mês a câmara municipal de São Mateus realizou uma sabatina onde esteve presente o senhor Gerônimo Brumatti superintendente do INCRA-ES. Este explicou aos presentes, vereadores e agricultores, toda a legislação que garante para as comunidades quilombolas terem seu território demarcado e disintruzado (processo de retirada dos ocupantes não quilombolas após processo de desapropriação) e também apresentou os procedimentos utilizados para a realização do estudo que gerou o Relatório Técnico de Reconhecimento Territorial das Comunidades Quilombolas do Sapê do Norte.” (resumo meu)

Ao todo foram realizados cinco estudos de identificação. Sendo estes nas comunidades de Linharinho, São Jorge, Serraria e São Cristóvão, São Domingos e Bacia do Angelim. Segundo dados meus, pois participei de dois destes estudos, na época como estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

A segunda matéria fala da prisão de 38 quilombolas da Comunidade de São Domingos, ocorrida no dia 11 de novembro, acusados de roubarem madeira, eucalipto, da empresa Fibria, antiga Aracruz Celulose. Um ponto da matéria merece ser reproduzido. Trata-se da reprodução e análise da fala do Major Marcos, comandante da 5ª Cia da PM-ES em São Mateus apresentada na matéria do jornal.

“Carretas da própria empresa foram utilizadas para levar a madeira apreendida até o pátio da Fíbria, no trevo de Conceição da Barra. “Ela ficará como fiel depositária, até que efetivamente seja identificado o proprietário da madeira”, informou o major. Para o comandante da 5ª Cia. Major Marcos, dificilmente seria comprovada origem legal da madeira pelos quilombolas, uma vez que a Fíbria é a única plantadora de eucalipto na área.”  (Tribuna do Cricaré, 12 de novembro de 2009. P.3).

A própria fala do Major Marcos pode ser utilizada como confirmação das reivindicações das comunidades quilombolas de devolução de seu território. A certeza de que a madeira é da Fibria,única plantadora de eucalipto na área. E a boa relação da policia com a empresa, que a tem como fiel depositária da madeira apreendida, nos mostra como se dão as relações de poder nesta cidade do norte do ES.

Reproduzindo aqui um trecho de algo que escrevi meses atrás, reafirmo que a aliança entre o Estado-policial e o capital privado se dá de forma simbiótica na perseguisão aos quilombolas desde dos tempos nefastos onde pessoas eram vendidas no porto de São Mateus.

“Na luta de retomada do território quilombola a comunidade do Linharinho, e todas do Sapê do Norte, se inserem em uma ampla rede de relacionamentos políticos que se distanciam cada vez mais das antigas estruturas políticas que marcam o norte do Espírito Santo, caracterizadas pela centralização de decisões nas mãos de elites agrárias, neste caso posicionadas como agentes de interesses das grandes plantadoras de cana e eucalipto. As novas redes de relacionamento e mobilização política[1], que se iniciam na década de oitenta com a criação das primeiras associações de pequenos agricultores, agora se estendem a vínculos diretos com setores governamentais do poder central (Brasília) representados pelas autarquias e secretarias especiais (INCRA, Fundação Cultural Palmares, SEPIR[2]), pondo em cheque a manutenção da distribuição de poder centrada nas elites agrárias. Em resposta estas se mobilizam cada vez mais na tentativa de manutenção de seus status via ações (garantidas via ativação de seus circuitos de relações políticas) de criminalização das ações dos quilombolas e destes próprios. A atuação desta atual elite é idêntica à atuação de seus antepassados que recorriam às milícias armadas e ao Estado para acabar com os quilombos e quilombolas.

“No dia 9 de julho de 1884, o Subdelegado de Polícia da cidade de São Matheus, norte da Província do Espírito Santo, comunicou a Antônio Ferreira de Souza Pitanga, Chefe de Polícia da Província, na capital, que os escravos de São Matheus estavam se preparando para promover uma emancipação geral no dia 27 de julho, por ser o dia em que tradicionalmente os negros do município, tanto livres quanto escravos, se reuniam para comemorar o dia de ‘SantAnna’: ‘[…] Querem eles nesse dia se reunirem para fazer uma insurreição a fim de que por esse meio fiquem todos libertos, faço chegar essas ocorrências ao conhecimento de V. Excia. para providenciar como entender certo de que me esforçarei para acalmar algum conflito que possa haver e reitero a V. Excia. os meus sinceros cumprimentos’.” (Martins, 1999. p. 2.)

Esse fato se passou no ano de 1884, apresento abaixo um extrato de matéria jornalística, de órgão oficial, que trata de um conflito no ano de 2007.

“No último dia 14 de novembro de 2007, em uma ação mal conduzida da policial militar, prendeu quatro quilombolas que seriam suspeitos de furtarem madeira da empresa Aracruz Celulose. Acontece que, aparentemente, em flagrante presumido, os policiais entraram dentro dos limites territoriais da comunidade tradicional quilombola de Roda D'água, Sapê do Norte, município de Conceição da Barra. E após uma abordagem não explicada, os policiais efetuaram disparos num local de intensa atividade de crianças, onde funciona uma escola comunitária. Acontece que um dos disparos atingiu o pé de morador da comunidade, Izaque Caldeira Carvalho, e ainda por cima, com sinais explícitos de que o disparo foi efetuado pelas costas da vítima.”
(Ministério da Cultura – Fundação Cultural Palmares, 2007)
(Machado. 2009. P. 21)

Podemos dispor estes relatos acima apresentados aos apresentados no inicio deste texto. E assim construir uma extensa lista das matérias de jornalísticas que retratam a perseguisão às comunidades quilombolas. E veremos que sempre temos o argumento da defesa do direito à propriedade privada posto acima do direito à vida.

Referências:

Tribuna no Cricaré. Dia 12 de novembro de 2009.

MACHADO, Vitor Hugo Simon. PARENTESCO, POLÍTICA E RELIGIÃO NO TERRITÓRIO QUILOMBOLA SAPÊ DO NORTE: O CASO DO LINHARINHO. Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo. Comunicação apresentada no GT Antropologia e Políticas Públicas: Projetos de Desenvolvimento e Impactos sobre Populações Locais. Anais da II Reunião Equatorial de Antropologia e XI Reunião de Antropólogos do Norte – Nordeste. 19 a 22 de Agosto 2009. Natal, RN.
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[1] Como parte da luta contra a monocultura de eucalipto no ES, BA, MG e RJ é criada a Rede Alerta Contra o Deserto Verde. Uma organização descentralizada que congrega diversos atores como MST, MPA, ONGs, sindicatos, atores políticos ligados a partidos as comunidades quilombolas do Sapê do Norte, os povos Tupiniquim e Guaranis e os Geraizeiros no estado de Minas Gerais.

[2] Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial.

*Vitor Hugo Simon Machado é mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo.