MA: “Um clamor por justiça está no ar”

Neste artigo o padre Jean Maria relata como foi a etapa final do Tribunal Popular do Judiciário realizado em São Luís no dia 1º de dezembro.

(por Jean Marie Van Damme, da ASP/MA)

Há décadas a consciência de setores sobre o funcionamento unilateral do poder judiciário no Maranhão – e no Brasil – vem crescendo. Já em idos tempos, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) chegou à conclusão que não são apenas as leis que prejudicam as justas aspirações dos trabalhadores rurais à posse de sua fonte essencial de renda, a terra. Mesmo com o Estatuto da Terra, de 1964, que dava margem para o atendimento legal às reivindicações de trabalhadores rurais, especialmente em terras públicas, o aparato judicial não lhes reconhecia os direitos e a proteção legais contra grileiros e destruidores da sua produção agrícola.
Foi talvez uma primeira constatação – ainda que empírica – de que algo andava torto nos caminhos do judiciário brasileiro. Juízes, desembargadores, promotores e outros operadores do direito na sua imensa maioria não comungam a vida, os problemas e os anseios populares e trabalhistas. Sua procedência, até pouco tempo atrás, originava-se em camadas sociais tradicionalmente vinculadas às oligarquias locais. O ofício de advogado era “de família” com raras e honrosas exceções. E este cordão umbilical fazia se sentir – e o faz até hoje – no próprio funcionamento sistêmico do poder judiciário ao qual a atuação isolada e merecedora de admiração de alguns poucos juízes e promotores não consegue dar um rumo diferenciado.
Foi esta a conclusão a que chegou o Tribunal Popular do Judiciário (TPJ) que foi realizado no Maranhão entre os meses de agosto e dezembro de 2009 – a solenidade de lançamento aconteceu em junho. Por este entendimento, o seu slogan principal rezava: “Por Justiça de Verdade”.
As remotas origens da ação resultaram da “nota de esclarecimento” dos bispos maranhenses em que denunciavam que “o Poder Judiciário está pondo em perigo a institucionalidade da república brasileira. Passou de braço legalizador da violência, acobertador da impunidade, para a criminalização dos movimentos sociais, quem deles se aproxima e tem relação de diálogo, para a subversão da ordem constitucional, como forma de patrocinar a defesa das elites, do latifúndio e da corrupção”. Os Fóruns de Direitos Humanos e Cidadania que começaram a se organizar em várias regiões do Maranhão, a consciência crescente da sociedade civil partícipe dos processos de controle social e a falta de respostas convincentes e efetivas às suas queixas, a perseguição pelo Tribunal de Justiça do Maranhão, do juiz Jorge Moreno, reconhecido nacionalmente pela sua luta em prol das populações historicamente excluídas do atendimento aos direitos fundamentais, os escandalosos tratamentos favoráveis que políticos locais corruptos costumam receber do poder judiciário, todos estes fatores juntos fizerem com que no Fórum Social Mundial em Belém (janeiro de 2009), a Cáritas Brasileira Regional Maranhão, junto com outras entidades, tomasse a decisão de chamar a atenção da sociedade nacional e internacional sobre a vergonhosa realidade em que se encontrava o pior Poder Judiciário brasileiro: o maranhense. Os relatórios do Conselho Nacional de Justiça só viriam confirmar o que o povo já sabia e vivia há décadas e fortalecer a decisão de organizar o TPJ.
O TPJ foi lançado nos dia 22 de junho de 2009 em São Luís num evento que reuniu cerca de 500 pessoas no auditório da OAB, seccional do Maranhão. Promovida pela Cáritas Brasileira Regional Maranhão e presidida pelo presidente da CNBB Regional Nordeste V, Dom Xavier Gilles, bispo da diocese de Viana, a audiência de lançamento contou com a participação de parcerias importantes, como da própria OAB-MA, Rede de Cidadania, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Associação de Saúde da Periferia do Maranhão (ASP-MA), Evangélicos pela Justiça e outras. Durante quatro meses, de agosto a novembro, representantes de entidades e fóruns percorreram o Estado, visitando mais de 50 municípios sedes de comarcas, onde reuniam pessoas e organizações locais que tiveram experiências negativas junto ao poder judiciário ou queixas relacionadas a seu deficiente funcionamento. Foram centenas de depoimentos e ocorrências que foram assim reunidos, gravados e filmados.
Em algumas ocasiões, os depoentes solicitaram que não fossem identificados. Explique-se: como as disputas judiciais frequentemente envolvem o poder público municipal ou mesmo o próprio judiciário, o temor por represálias não era ficção.
Coroando as visitas, realizava-se uma audiência regional. Foram cinco ao total, que ocorreram em Santa Quitéria, Imperatriz, Bacabal, Santa Inês e Presidente Dutra. Após cada audiência em que se ouviam as testemunhas das pessoas da região, a coordenação fazia um balanço, sistematizando os depoimentos em categorias. Estas formavam a base para a organização do Tribunal propriamente dito, seu evento final, que aconteceu na capital maranhense no último dia 1°. de dezembro.

Milhares lotaram o ginásio do Dom Bosco na etapa estadual do Tribunal Popular do Judiciário. Desde cedo, as caravanas que vinham de mais de 100 municípios do Maranhão apresentavam-se na . quadra de esportes da UnDB (Universidade Dom Bosco). A metodologia do Tribunal era em grande parte a mesma daquela aplicada nas audiências regionais: após a fala inicial do secretário executivo da Cáritas Regional, Ricarte Almeida Santos, e uma breve saudação por parte das autoridades que compunham a mesa, a maior parte do tempo foi dedicada à escuta dos relatos e depoimentos.

O bispo de Viana Dom Xavier Gilles, presidente da CNBB Regional NE V, fala ao grande público presenteA coordenação da mesa ficou, mais uma vez, com o corajoso bispo Dom Xavier Gilles, ele próprio vítima, durante a ditadura militar, de prisão e calúnias. Foram convidados a compor a mesa: o Ouvidor Nacional da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Fermino Fecchio; os representantes do Secretariado Nacional da Cáritas Brasileira Gilsely Barreto e Ademar Bertucci; irmã Ana Amélia, representando o CIMI; os advogados Edson Passos e Mário Gomes Jr., respectivamente representando as Ouvidorias de Segurança Pública do Rio Grande do Sul e Paraíba; a sra. Eliana Magalhães, do INESC; Isabel Figueiredo, também da SEDH-PR; o irmão Renato Thiel, de memória e caminhada das CEBs; Guilhermina Aguiar, representando a Rede de Cidadania e, entre outros, o dr. Jorge Moreno, juiz que teve sua aposentadoria decretada pelo TJ-MA por respeitar e defender os direitos humanos da população maranhense.
Organizados em 16 categorias de ocorrências, queixas, irregularidades e até crimes cometidos por autoridades judiciais, mais de 40 testemunhas foram ouvidas. Alguns depoimentos comoviam a plateia, como aquele em que um pai separado buscava a justiça para ter o direito de ter contato com sua filha e saiu do fórum devendo uma pensão … à juíza! Ou do cadeirante acusado de ter ateado fogo no fórum de sua cidade carregando dois galões de gasolina. Ou da mãe que, desesperada, solicitava à juíza que lha ajudasse a obter a pensão alimentícia para garantir a sobrevivência de seus filhos e saiu algemada do gabinete como uma bandida!

Fermino Fecchio, ouvidor nacional de Direitos Humanos da SEDH-PR, comprometeu-se a levar as denúncias adianteAs autoridades na mesa e a plateia ficaram estarrecidas ao ouvir esses depoimentos. O ouvidor da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República comprometeu-se a levar as denúncias adiante. Todos viram o dr. Fermino Fecchio anotar durante todo o tempo as histórias dos depoentes que muitas vezes pareciam surrealistas. Os representantes da Cáritas Nacional e do INESC se comprometeram em apoiar a continuidade do Tribunal, que não encerrou suas atividades neste 1° de dezembro.
Decidiu-se continuar a luta, instituindo o Observatório da Justiça do Maranhão, encaminhando o relatório e as devidas peças comprobatórias das denúncias para as comissões de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da ONU. E principalmente exigindo o afastamento de juízes e desembargadores que não atendem aos critérios éticos que se espera de quem deve resolver conflitos e guardar a observância da Lei com justiça.