Poesia é destaque na entrega do título a Heloísa Arcoverde

Escritores, artistas, representantes da Prefeitura do Recife, do Movimento em Defesa do Livro e da Leitura e de entidades como a UBE – União Brasileira de Escritores, vereadores e familiares da homenageada, lotaram o Salão Nobre do Teatro de Santa Isabel, no Centro do Recife, na solenidade de entrega do título de Cidadã do Recife a Heloísa Arcoverde de Morais, realizada sexta-feira (28).

Presidida pelo vereador Romildo Gomes, a mesa foi composta ainda por Fred Zero4, representando o secretário de Cultura do Recife, Renato L, por João Leonardo Ribeiro de Morais, representando a família de Heloísa Arcoverde, Alexandre Santos, representando a UBE – União Brasileira de Escritores, e pelo vereador Jurandir Liberal, presidente do Conselho Municipal de Cultura.

A realização da solenidade no Teatro Santa Isabel e não no Plenário da Câmara Municipal do Recife se deveu ao fato de o espaço na Casa de José Mariano se encontrar em obras. Mas não poderia existir espaço mais inspirador para uma solenidade que mesclou os discursos de homenagem com a apresentação de poetas como Silvana Menezes, Vitória Lima e Miró.

HOMENAGEM AO RECIFE

Em seu discurso de agradecimento, Heloísa Arcoverde descreveu brevemente sua trajetória de vida desde o seu nascimento na Paraíba até a mudança para o Pernambuco. Citando versos de vários autores pernambucanos, como João Cabral de Melo Neto, Sílvio Roberto de Oliveira, Cida Pedrosa e Miró, e o poeta paraibano Augusto dos Anjos, a homenageada ressaltou sua identificação com o Recife e o caráter multicultural da Cidade, com destaque para a poesia e a música. “Hoje, graças a este título que me concede esta ilustre Câmara, eu posso dizer: Sou do Recife com orgulho e com saudade”, afirmou a homenageada ao encerrar sua saudação.

Leia a íntegra do discurso de Heloísa Arcoverde

DISCURSO DE HELOÍSA ARCOVERDE DE MORAIS AO RECEBER O TÍTULO DE CIDADÃ DO RECIFE – TEATRO DE SANTA ISABEL – 28 DE MAIO DE 2010.

Nasci em João Pessoa, numa sexta-feira de Carnaval e o meu pai, o médico psiquiatra, Luciano Ribeiro de Morais, foi tirar o seu colega, Dr. Edrise Vilar, de um baile carnavalesco, para atender a minha mãe, Carmen Arcoverde de Morais, já trazendo ao mundo a futura foliã.

Logo no ano seguinte, para sorte minha, deixo de ser uma menininha chorona e mimada. Nascem meus dois irmãos, João Leonardo e José Luciano. Até hoje, Dodó e Ciano são o meu esteio.

Meu aniversário era comemorado sempre nos domingos de Carnaval com os irmãos e a turma da Rua Irineu Joffily, no Bloco Garotos Endiabrados. E éramos endiabrados.

Aquele quarteirão das Trincheiras sabia das nossas travessuras. E as tias Anatilde e Irene e o avô Joca, também.

Carnaval em fevereiro. No restante do ano, dedicação aos estudos. Família de leitores, as discussões após o jantar giravam em torno das leituras de cada um, além dos comentários sobre os acontecimentos diários, o que sempre incluía questões éticas, respeito ao ser humano e dignidade no serviço público. Exemplos da atuação do pai, incansável diretor da Colônia Juliano Moreira e da mãe, normalista, dedicada professora do Ensino Fundamental.

E se o pai, Luciano, o nosso pan, partiu muito cedo, levado por um enfarte aos 56 anos, ganhamos a longevidade da mãe. Firme e forte, D. Carminha aqui está com os seus 91 anos de pura beleza.

A Rua Pedro I marca a nossa juventude e os cabelos brancos de mamãe. Os caros amigos, os amores, a bossa nova, a onda hippie: faça amor, não faça a guerra.

Na universidade, os anos dourados foram substituídos pelos anos de chumbo e com eles a consciência política.
a carta branca do montilla
não era de alforria.
o papagaio era calado.
o cuba-libre nos prendia.
e em barris de carvalho
o tempo envilecia.

                                                                    (Geração 60, de Sérgio de Castro Pinto)

Terminamos Letras, pela Universidade Federal da Paraíba, em plena ditadura militar em 1969.

Caminhamos, cantamos e seguimos a canção (como disse Vitória em seu belo poema). Tomamos nossos rumos. Saudades de Alana, uma garota, que como eu, amava os Beatles e os Rolling Stones.

A travessia

João Pessoa–Recife – uma ponte de laços familiares e amorosos. O lado Arcoverde atraía os Morais para os eventos no Recife. O amor fez o milagre da mudança geográfica, acrescentando aos amigos e aos trabalhos em João Pessoa, os novos amigos e a nova vida no Recife a partir de 1970.

O filho, Luciano; a nora, Patrícia; as duas netas, Luiza e Sofia; o terceiro netinho, Arthur, que já vem por aí; e a afilhada, Maria Luiza – todos recifenses –, asseguram o futuro desse meu amor pelo Recife. As raízes agora estão aqui fincadas nos quarenta anos de exercício profissional no Recife, como professora de francês, literatura brasileira e servidora da Fundação de Cultura.

Hoje, no salão nobre do Teatro de Santa Isabel, recebo o título de cidadã do Recife, que ora me concede a Câmara de Vereadores, por iniciativa do vereador Luciano Siqueira.

O meu longo caso de amor com o Recife se completa. Começa a responsabilidade de cidadã.

Responsabilidade que me atribuem a Casa de José Mariano e um dos seus mais dignos vereadores, Luciano Siqueira.

Luciano, que orgulho para esta cidade poder contar com homens públicos da sua grandeza! Os duros momentos de clandestinidade que enfrentaram, você e sua Luci, não lhe deixaram amargura. Coerência e firmeza, sim, aliadas à gentileza e à generosidade. É uma honra, senhor vereador, receber o título das mãos de um homem culto, apreciador da boa poesia.

O Recife

Ninguém se perde no caminho da vinda, me garantiu o escritor Fernando Monteiro, parodiando José Américo de Almeida, o político e escritor paraibano.

Chego ao Recife pela via do amor e do afeto. O verde do canavial me é familiar. Mãe pernambucana, metade de mim vem de gerações da índia Arcoverde. A vó Laura, as tias e a prima Marta me dão o suporte inicial. Nasce Luciano e consolida-se aqui a moradia, a cidade onde vou depositar sonhos e esperanças. Ouvir Luck pronunciar o nome do seu querido Sport com todos os esses me faz entender o quão recifense é o recifense.

Pela via do trabalho, a literatura me leva aos tantos arrecifes de uma cidade multicultural. Pontes de amizade, sólidas amizades dos que compartilharam comigo o prazer da sala de aula – entre o compromisso com a Educação e as greves históricas –, e os que enfrentam comigo os desafios da gestão pública na Cultura. Conscientes, nesta labuta diária pelo bem comum, de que “…o homem é sempre a melhor medida./ Mais: que a medida do homem não é a morte, mas a vida”, João Cabral.

O Recife pela via da poesia

Só tu – Recife – escolheste
as pontes como legado
as águas como vestidos
o mangue por principado.
(Canta o poeta Sílvio Roberto de Oliveira, em sua Balada do Recife)

Arrecife, recife, ar-raçif.

Foi nesses bancos de solo mal consolidado – mistura ainda incerta de terra e de água – que nasceu e cresceu a cidade do Recife, chamada cidade anfíbia, como Amsterdã e Veneza, diz Josué de Castro.

Este solo de brava gente, palco de invasões, cenário de lutas e resistências, tem sua referência mais antiga no Foral de Olinda de 1537. Ao longo de seus quase cinco séculos de transformação, o Recife mantém constante diálogo com a história, na construção da sua identidade, feita das conquistas de seu povo.

Cidade das pontes. A Veneza brasileira

Maurício de Nassau governa Pernambuco holandês entre 1637 e 1644. Ergueu pontes e permanece no imaginário da cidade maurícia.
O paraibano Augusto dos Anjos morou no Recife, no início do século 20, e poetizou a Ponte Buarque de Macedo.
Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!

Miró, o nosso querido poeta, também:

Marginal Recife

Recife,
Cidade das pontes
E das fontes de miséria
Poetas mendigando passes
Pra voltar pra casa

E sua poesia passando despercebida

Aliás,
Nem passa.

A história do Recife é marcada pelas lutas políticas. A abolicionista, uma delas.

Os próprios escravos, em sua resistência, foram os verdadeiros agentes dessa luta contra a escravidão. Passam à história os abolicionistas Joaquim Nabuco – que tem suas obras revisitadas nestes 100 anos de sua morte –, e José Mariano, que fundou o Clube do Cupim, em 1884, para abrigar os escravos foragidos.

Castro Alves e Tobias Barreto, além de emprestarem voz à causa abolicionista, agitaram o Teatro de Santa Isabel com embates poéticos passionais. Hoje, saudamos este monumento, construído pelo engenheiro francês Louis Vauthier. Um espetáculo de 160 anos!

Parabéns, Santa Isabel!

Em homenagem à atuação parlamentar de José Mariano, os vereadores do Recife o elegeram Patrono da Câmara Municipal.

Na Casa de José Mariano, senhores vereadores, por onde passam tantos tribunos do quilate do vosso patrono, estão os parlamentares que escolhemos para porta-voz dos sonhos e desejos de um milhão e meio de habitantes que vivem e sobrevivem nesta cidade, metade roubada ao mar, metade à imaginação.

Civilização branca, poema de Solano Trindade, é uma ode contra todas as injustiças e preconceitos que aviltam a liberdade do homem.

Lincharam um homem
entre os arranha-céus
(li num jornal)
procurei o crime do homem
o crime não estava no homem
estava na cor de sua epiderme.

                                                                                      (in Cantares ao meu povo)

O Recife contemporâneo, o Recife que queremos
Não mais os anos de chumbo, em que pagamos o preço alto à falta de liberdade. Os poetas desta geração assim resistiam:

vivíamos no intestino do recife
e o capibaribe
era um prato de sonhos
onde digeríamos versos
vai longe o tempo
em que fuzis e baionetas
poderiam ser canto
enternecido e libre.

                                 (Cida Pedrosa, trechos de seu poema Geração)

Não queremos tampouco a metrópole das contradições sociais:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

                                                                                                        (O bicho, Bandeira)

Queremos um Recife contemporâneo, sim, mas discutido, planejado e projetado coletivamente. São tantos os mangues a preservar, tantas as moradias a erguer, tantos os traçados urbanos a repensar, num processo coletivo e solidário a reinventar o Recife para todos.

Neste processo de invenção, destacaríamos as políticas públicas e privadas para o acesso ao livro e à leitura. Para tanto, são fundamentais as ações nas bibliotecas públicas, escolares, comunitárias e em qualquer cantinho de leitura. Em consonância com o PNLL, um atuante Fórum de Leitura propõe o Plano Recifense do Livro e da Leitura e, mais uma vez, por iniciativa de Luciano Siqueira, já está aprovada na Câmara a Lei municipal do livro, da leitura e das bibliotecas. Avancemos para tornar a lei, realidade, porque, diz o poeta Jaci Bezerra em seus versos:

Quem abre um livro,
abre o que é alma e arde.

Confluência de índios, europeus e africanos, da presença judaica e da influência francesa, tão bem apontada pelos estudos de Gilberto Freyre, o Recife se orgulha da pluralidade de sua cultura:

Na terra do frevo, o nosso Carnaval é também dos maracatus, dos caboclinhos, do samba e de todos os ritmos.

O Recife vive em constante efervescência cultural. O cinema sempre foi uma vocação, desde o Ciclo do Recife até os dias de hoje, na sua retomada; as artes cênicas, a exemplo do que foi o Teatro Popular do Nordeste, com Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, constituem um importante polo da cena brasileira, assim como as artes visuais. As manifestações populares continuam a ser alicerces da nossa cultura. Registramos aqui os 50 anos do MCP. O Movimento dignificou a cultura popular e alfabetizou com Paulo Freire.

Parabenizando a Orquestra Sinfônica do Recife pelos seus 80 anos de excelência, e também a nossa Banda Sinfônica, saudamos o Recife de todos os talentos musicais:

Eu sou mameluco, sou de Casa Forte/ Sou de Pernambuco, eu sou o Leão do Norte, canta Lenine de norte a sul do país.

Chico Science, da lama ao caos, altera os rumos da música no Recife. O mangue beat bate forte nos ritmos, antenado com o mundo.

A produção literária em Pernambuco sempre ocupou um importante papel em relação à literatura brasileira, com destaque para a excelência de seus poetas.

Atualmente, ressalta-se a ficção em Pernambuco. São significativos os prêmios nacionais já obtidos por seus escritores.

Classe média

Um médico.
Ótimo na família.
Um executivo.
Ótimo.
Um engenheiro
Um arquiteto
Um magistrado.
Ótimo.
Um poeta.
Melhor na família dos outros.                                              (diz Geraldino Brasil)

Um poeta, melhor aqui, Geraldino, onde o canto de Joaquim Cardozo é de sol, é de sal. Cidade onde a poesia anda solta nas praças, nos bares e nas ruas.

Citando Anco Márcio: É na rua que o Recife é mais Recife, que a cidade revela seu caráter, seu modo de estar no mundo, sua calma e seu agito, suas belezas e seu rosto embrutecido, maltratado, doente. Mas é também na rua, no cara a cara, nos olhos nos olhos, que nos reconhecemos como parte de uma civilização, de um modo de ser e de estar no mundo. E, ao nos reconhecermos, criamos o sentimento do aconchego, que é o de pertencimento. Anco Márcio Tenório Vieira, in A sedução pelo olhar.

Do bairro das Graças, às pontes, aos rios e às ruas, o sentimento de pertencer a esta cidade.

Na lembrança, a pequenina Paraíba, e faço minha a evocação de Bandeira:

João Pessoa…
A Avenida João Machado… A casa do meu avô…
Hoje, graças a este título que me concede esta ilustre Câmara, eu posso dizer:
Sou do Recife com orgulho e com saudade.

Muito obrigada a todos.

Fonte: Site do Vereador Luciano Siqueira