Aldo Rebelo: O futebol é do povo

O deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP) analisa, nesta entrevista concedida ao jornalista Osvaldo Bertolino, da revista Princípios, a trajetória do futebol no Brasil. Para ele, essa modalidade esportiva tem um papel importante na unidade e na consolidação de uma identidade do país.

Leia abaixo a íntegra da entrevista

Princípios – Gostaria que você começasse falando um pouco sobre a história do futebol no Brasil…

Aldo Rebelo – Creio que o futebol estava predestinado a ser o esporte de massa no Brasil. Contrariando a profecia de meu conterrâneo Graciliano Ramos que nos anos 1920 não via futuro para o futebol no país. Ele achava o esporte muito complicado. Talvez o esporte no Brasil fosse a rasteira, coisas a que ele se referia, mas os traços fundamentais do futebol preparavam o esporte para ser uma atividade de massas não apenas em sua prática, mas também na estima das pessoas e do povo.

Na sua origem, ele foi concebido como esporte popular. Os esportes aristocráticos britânicos eram praticados com as mãos. A aristocracia usava pouco as mãos. E para exercitá-las usava o esporte praticado com as mãos. Na época da manufatura, a percepção dos operários naturalmente era a busca de um esporte que repousasse as mãos e usasse os pés.

Intuitivamente, era esse o caminho que tinha a classe operária para praticar esportes. As mãos já eram muito usadas durante na semana no trabalho fabril. E as regras foram sendo adaptadas até que se chegou ao esporte onde as mãos, com exceção do goleiro, tinham repouso quase absoluto. E os pés eram usados para a atividade esportiva.

Alguns historiadores sustentam que a própria semana inglesa, com repouso aos sábados, foi uma reivindicação partida da base operária, que tinha o sábado como o dia dedicado à prática do esporte. Depois, esses mesmos historiadores fazem referência a uma das atas do Partido Comunista da URSS nos anos 1920 em que essa reivindicação também aparece entre os trabalhadores das minas com a mesma finalidade.

Um historiador faz menção a ata em que há o registro de que essa reivindicação também havia partido da massa de trabalhadores das minas com o objetivo explícito de usar os sábados para a prática de futebol. Depois, o futebol tornou-se também um esporte de afirmação para trabalhadores como ferroviários, que formaram muitos clubes no Brasil. Ou de minorias nacionais e religiosas, como o caso dos clubes da massa católica da Escócia. O Celtic, por exemplo.

É um esporte de regras simples, um esporte, como diria Gilberto Freyre, que tem uma relação muito próxima com a dança. Ou um bailado que exige essa habilidade pessoal de seus praticantes, principalmente o futebol dionisíaco — aquele, segundo Gilberto Freyre, praticado no Brasil —, em contraponto ao futebol apolíneo, praticado principalmente pelos jogadores anglo-saxões, que é o da velocidade, da eficiência.

Eric Hobsbawm faz uma referência a um maestro, diretor de uma orquestra francesa, que não perdia um jogo da seleção brasileira porque achava que não existia nada mais próximo da arte do que uma exibição da seleção brasileira. E o próprio Hobsbawm, quando faz a retrospectiva do século 20, põe o esporte no capítulo da cultura.

Creio que o Brasil, desde o início, embora o esporte tenha sido trazido para cá por estudantes de classe média, ou da aristocracia da sociedade que foram à Inglaterra, rapidamente foi abraçado pelas classes populares. O futebol transformou-se em São Paulo e no Rio de Janeiro muito rapidamente em uma coisa do povo.

Principalmente depois dos anos 1930…

Não, muito antes. Nos próprios anos 1920 já havia no Rio de Janeiro clubes como Bangu, São Cristóvão, Vasco da Gama, que eram populares. Em São Paulo, principalmente Palmeiras e Corinthians, rivalizavam com o Paulistano e outros clubes da alta sociedade que também praticavam futebol — que ficavam horrorizados quando a massa de imigrantes italianos empobrecidos acompanhava o Palestra Itália aos jogos. E o Corinthians da mesma forma.

Então, ainda na primeira década do século 20 esses clubes já haviam sido criados tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo. E já nos anos 1920, 1930, o grande clássico de São Paulo era Palmeiras e Corinthians. Podia ter jogos importantes, bons times nos outros clubes, mas os de massa dos anos 1920, 1930 já eram Palmeiras e Corinthians.

O Paulistano de Friedenreich não tinha apelo popular?

Não tinha o mesmo que tinham Palmeiras e Corinthians. Não possuía nem a mesma origem. Porque foram clubes quase fundados na rua por imigrantes, ou filhos de imigrantes. Friedenreich podia ter apelo popular como artista, como ídolo. Ele foi autor do gol do primeiro título internacional do Brasil, no Sul-Americano em 1919. Mas o clube não.

Mas havia no Brasil problemas, principalmente quando se tratava de formar um selecionado. Porque não havia um órgão central de futebol, eram as federações. E não havia como juntar Rio de Janeiro e São Paulo na mesma seleção. Ou a seleção tinha como base o Rio de Janeiro, ou São Paulo.

Acho que a compreensão dessa necessidade de um órgão central veio com Getúlio Vargas. Ele criou uma organização centralizada que tornava obrigatória a presença de jogadores no selecionado nacional. Rapidamente, o Brasil revelou astros de renome nacional e até internacional, como Leônidas da Silva. Mas a seleção brasileira não conseguia se firmar como um selecionado importante.

Os clubes não aceitavam negros, mesmo sendo populares?

Aldo Rebelo – Mesmo, porque o preconceito de raça não era apenas da elite, mas do povo também. Mesmo em um clube como o Palmeiras, que tinha uma massa empobrecida de italianos como seguidores, havia preconceito. O primeiro a romper com isso foi o Vasco da Gama, que foi retirado do campeonato do Rio de Janeiro. E preferiu sair do campeonato a se desfazer de seus jogadores.

Mas a habilidade dos jogadores negros, mestiços, se impôs contra o preconceito. E nos anos 1930 e 1940, todos os clubes já tinham negros jogando. Falam do “pó-de-arroz” — eles tentavam disfarçar e criaram a lenda que conta sobre o São Paulo e o Fluminense. Não se sabe se isso é verdade. Mas dizem que a origem do apelido “pó-de-arroz” vem daí, que era uma forma de tentar embranquecer jogadores negros ou mulatos, usando pó-de-arroz para apresentá-los durante o jogo.

A Revolução de 1930 abriu as portas para os de baixo. Vemos influência disso na aceitação de negros nos clubes?

Vejo a Revolução de 1930 como um marco importante na formação do Brasil e da nacionalidade. Com a Revolução de 1930, tivemos a entronização de uma mulher negra como padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida. Não creio que isso tenha sido por acaso. O Brasil recebeu o batismo de santos importantes da igreja católica. Batizou São Paulo com o nome de seu mais ativo apóstolo. O Rio de Janeiro com o nome de São Sebastião, outro marco da igreja. A capital da Bahia com o nome de São Salvador.

Mas quando o Brasil escolheu a padroeira não escolheu um santo já consagrado da igreja, mas uma mulher negra. E acho que essa escolha tem muita relação com o esforço da construção do imaginário nacional dos anos 1930. O futebol da mesma forma. Getúlio percebeu isso com relação ao futebol e ao carnaval. Tanto que a Liga das escolas de samba do Rio de Janeiro também é invenção dos anos 1930. Da mesma forma no futebol.

Getúlio gostava de comparecer aos estádios. Ia ao estádio do Vasco da Gama em São Januário. Fez nesse estádio o anúncio da Consolidação das Leis Trabalhista (CLT), veio à inauguração do Pacaembu. Então, Getúlio tinha a percepção de que o futebol poderia ter um papel importante na unidade e na consolidação de uma identidade do país. E nós vemos, por outro lado, que essa identidade podia ser construída à margem do mercado, porque o inventor do Estado nacional é o capitalismo. Ele é que sente necessidade de criar e unificar mercados para seu desenvolvimento.

Mas há formas de construção da identidade nacional que podem fugir ao controle do mercado. Isso se situa, como Getúlio percebeu, no caso do futebol. O futebol era praticamente amador, ou artesanal. O jogador praticava sua arte não para o mercado, mas para o grupo de admiradores ou de adeptos, como o artesão. Então, creio que a Revolução de 1930 e Getúlio compreenderam esse papel do futebol.

Como você vê a relação distante da intelectualidade com popularidade do futebol na época?

Talvez não tenham convivido com os modernistas em São Paulo. Se tivessem compreendido a antropofagia talvez percebessem que embora, como registrei, trazido ao Brasil por estudantes da elite, por estudantes da aristocracia, era facilmente percebido pelo povo como uma coisa dele. Havia uma desconfiança, talvez, desses intelectuais mais críticos, como Lima Barreto e Graciliano Ramos, por ser um esporte organizado a partir dos clubes de elite.

Gilberto Freyre teve outra compreensão. Ele já escreveu ensaios que trata de futebol, já depois da Semana de Arte Moderna, da Revolução de 1930 e do conflito da Primeira Guerra. Então, ele compreendeu de outra maneira. Mas a intelectualidade brasileira, tanto a acadêmica quanto a não acadêmica, se debruçou pouco sobre futebol.

Há uma ou outra crônica, como a de Alcântara Machado, que fala sobre o jogo de Palmeiras e Corinthians, mas a academia — a não ser mais recentemente — não cobriu com investigação, pesquisa ou explicações a natureza da presença do futebol entre nós. Acho que, infelizmente, não tanto como na Inglaterra, onde persiste ainda um corte de classe muito mais rigoroso do que aqui, há esse distanciamento entre a construção popular e o trabalho da nossa intelectualidade.

Como você vê o papel intelectual de Nelson Rodrigues na popularização do futebol?

Nelson Rodrigues defendeu posições políticas conservadoras, mas teve a grande virtude de ser um homem ligado à alma do povo e do país. Foi um intelectual, escritor, cronista autenticamente nacional, autenticamente brasileiro. Ele nos revelou sobre a alma do país e da sociedade muito mais do que sociólogos progressistas.

Não é por acaso que ele tenha sua atenção voltada para o mundo do futebol. E tenha deixado crônicas tão belas, e tão permanentes, sobre todo esse universo. Não há nas crônicas de Rodrigues nenhuma análise tática de nenhum jogo. Há apenas a celebração desse aspecto da cultura, da emoção do povo relacionada ao futebol.

Ele dá ao futebol a dimensão de arte dramática. Ele dá a cada jogador muito mais do que o papel de um atleta ou de um artista. Ele dá a cada jogador o papel de um ator. Ele retrata em cada crônica o drama do homem dentro da vida. Acho que isso fez com que ele, no que escreveu sobre futebol, tenha sido tão popular e tenha ainda esse sentido de permanência.

Nelson Rodrigues dizia que a conquista da Copa de 1958 revelou o nascimento do futebol brasileiro como “paisagem de calendário”…

Antes de 1958 o futebol no Brasil se resumia à celebração do artista, jogador hábil e talentoso. Lembro de ter ouvido no interior de Alagoas referências a Leônidas, Patesco, Friedenreich, Domingos da Guia, Canário, hábeis jogadores dos anos 1930, 1940, 1950. Quando criança eu ouvia muito isso. Ou a celebração dos clubes. Palmeiras, América do Rio, Flamengo.

Não havia, para além dos que admirassem um jogador, ou clube, o sentimento nacional em relação ao futebol. Porque o povo brasileiro, que mesmo no sofrimento procura ser alegre, essa é a natureza de nossa alma, não faz publicidade da tragédia nem da tristeza. Então, a perda da Copa de 1950 era como se fosse uma tragédia da família. Ninguém procurava cultivar ou propagar a perda da Copa no Maracanã. Em 1958 ocorreu uma dupla redenção, porque ganhamos a Copa e, melhor do que isso, ganhamos no estrangeiro. Fomos buscar a vitória fora do Brasil.

Lembro do hino, não sei como minha mãe conseguia aprender essas músicas, mas ela cantava para mim as músicas de celebração de 1958, quando eu tinha 3, 4 anos de idade. Minha mãe cantava essas músicas: Didi, Pelé, Vavá, Zagalo na Europa, e a Copa veio para cá. Zagalo, Zito, Garrincha, Nilton Santos e Orlando são os campeões do mundo que o Brasil está saudando 5 a 2.

Nem tinha rádio ainda em casa. O primeiro rádio chegou com a Copa de 1962. Mas lembro de minha mãe cantando essas músicas. Minha mãe era uma pessoa ligada em futebol — ela incorporou esse sentimento nacional na zona rural do interior de Alagoas, no sítio, onde não havia luz elétrica e nem o rádio. Isso é um fenômeno da comunicação do povo. E lembro que esses personagens de 1958, principalmente Pelé, Garrincha, mas mesmo Didi, Zagalo, passaram a ser pessoas do povo.

As pessoas podiam até não saber quem tinha sido José Bonifácio, Tiradentes — o que é lamentável —, mas elas sabiam quem eram Didi, Pelé, Garrincha, Vavá etc. E acho que isso foi um fenômeno de 1958. Acho que aí o futebol passou a ser parte não só da identidade do povo, que já era, mas passou a ser parte da identidade nacional.

Você falou de 1950 e usou o exemplo da tragédia. Nelson Rodrigues disse que todo povo tem a sua tragédia nacional. Nós temos a de 1950…

Havia a expectativa de que o Brasil, organizando a Copa do Mundo, tivesse, como disse Obdulio Varela, capitão da seleção uruguaia, quase o direito de ganhar. E Varela disse que foi um absurdo o resultado de 1950. Para ele, o povo brasileiro tinha direito de celebrar aquela Copa. Era quase como um direito. Era uma festa. Se o futebol é uma festa, não se tinha o direito de decepcionar os seus organizadores.

E a derrota, imprevista mais do que indesejável, calou na alma popular a idéia do fracasso. E, portanto, a ideia de tragédia. Acho que isso só foi recuperado com a vitória de 1958 e com a forma como a vitória aconteceu, contra o time dos donos da casa. E com jogadores de extrema habilidade. A seleção não apenas venceu, ela encantou o mundo.

De 1958 a 1970 temos um ciclo de domínio absoluto do futebol brasileiro no cenário mundial. Também foi o período da Bossa Nova, de grandes acontecimentos no país. Como você relaciona essa fase de ouro do futebol com a situação do país nessa época?

Vejo que, quando o país vive um momento de confiança, otimismo e de criatividade, esse estado de espírito invade toda a atividade social. A meu ver, esse estado de espírito motiva o empenho, a dedicação maior, o espírito de sacrifício e a criatividade do pesquisador, do cientista. O país pode ter realizações no plano de conhecimento. Acho que isso também influencia as artes em geral. Literatura, artes plásticas.

Creio ainda que isso contamina a alma do povo. Em uma foto de trabalhadores de Brasília, da construção civil, celebrando o término das obras do Palácio do Planalto, vi, apesar do sacrifício de viver em alojamentos precários, ganhando pouco, uma celebração mais verdadeira e mais autêntica do que a de outros que ajudaram a construir a cidade. E muito distante do sentimento crítico e pessimista daqueles que achavam que Brasília não devia ser construída.

Acho que, para reproduzir Nelson Rodrigues, muitas vezes uma partida de futebol se ganha com a alma. E a meu ver a alma dos atletas também é influenciada por esse momento. Ou seja: aquela autoconfiança, aquele otimismo e a criatividade empurram — como na ciência e nas artes, ou na indústria, ou no comércio — também os praticantes de esporte para o convencimento de que podem obter conquistas e realizações para além do que é possível, do que é esperado. Acho que o Brasil viveu assim nesses anos.

Como você avalia a ligação do regime político com o futebol?

Não vejo uma relação tão profunda como alguns interpretam, ou desejam. Porque uma coisa é um regime, ou um governo, que interpreta esse sentimento geral e esse estado de espírito. Acho que é o caso do governo de Juscelino, embora tenha sido um governo que estava ligado a esse estado de espírito de confiança, de otimismo das ruas e do povo.

O regime militar não tinha essa capacidade — o futebol continuava sendo uma coisa do povo. Embora o regime procurasse influenciar ou tirar proveito, havia uma separação desses dois espaços. O povo não ia ao futebol porque fosse uma coisa importante para o regime. O povo ia porque para ele o importante era o clube. Em pleno regime militar, o Maracanã delirava com Fio Maravilha. O Corinthians celebrou o fim dos anos de jejum, o Palmeiras formou a sua academia. E acho que isso não teve relação com o regime militar.

Com a seleção de 1970, o que o regime fez foi procurar capitalizar o seu êxito. Mas a seleção se construiu por um homem de esquerda, com um histórico de vida ligado ao Partido Comunista, que foi João Saldanha. A seleção teve êxito na Copa porque tinha jogadores extraordinários, Pelé, Tostão, Rivelino etc.

No caso da Argentina, não se pode negar também que a seleção tinha jogadores de grande talento. E que sua principal antagonista foi à Copa sem o seu principal jogador. A Holanda disputou a final da Copa sem o maior jogador da época, Cruyff. A Argentina poderia ter sido eliminada. Acho que ali houve certa pressão.

Mas, a meu ver, isso não nos impede de levar em conta que eles tinham uma geração talentosa, que tinha a vantagem de jogar em casa e, mesmo assim, não conseguiu ganhar do Brasil. Ela poderia ter sido desclassificada não fosse a goleada contra o Peru, que deixa dúvidas até hoje. Por isso, não vejo assim a grande influência dos regimes.

Dos anos 1990 para cá, no Brasil houve mudanças profundas, radicais na estrutura do futebol. Você acha que isso tem a ver com a configuração do mundo nos moldes do neoliberalismo?

Creio que se operou uma alteração profunda no futebol, e com resultados imprevisíveis para esse esporte como esporte de massa. Acho que o capitalismo, contrariando aqueles que imaginam que ele estava próximo do fim, conseguiu se apropriar do futebol como uma habilidade importante ligada a grandes empresas, patrocinadores tanto de clubes quanto de jogadores, ou de eventos esportivos.

O mercado consegue subtrair do povo uma parcela importante do controle dessa atividade. E como se dá essa alteração? O futebol era uma atividade praticada por jogadores que tinham com seus clubes quase uma relação de artesãos, de artistas, contratados por clubes para oferecer um espetáculo. Esses clubes, por sua vez, tinham uma relação de hierarquia e de subordinação a estruturas estatais. Isso gerava vantagens, porque impedia que o mercado se apropriasse desse universo. E isso gerava também deformidades, ineficiência, corrupção, como é previsível.

Em nome dessa ineficiência da relação com o Estado e da ação desses dirigentes de clubes, os chamados “cartolas”, desencadeou-se uma ofensiva de caráter político e ideológico contra a interferência do Estado em nome da eficiência do mercado. E houve o esforço da chamada desregulamentação. Ou houve a desregulamentação no setor financeiro, no setor estatal. Ou seja, o fracasso da União Soviética foi visto como um fracasso do controle público, do controle do Estado. E aí vieram as ondas de privatização, desregulamentações.

O mundo do futebol também foi impactado por essa ofensiva. Cronistas esportivos importantes, intelectuais convencidos dessa idéia conceberam o fim do passe e o afastamento da influência do Estado para liberar o universo do futebol, como uma atividade que envolve milhões de pessoas no mundo, para as empresas e empresários.

Isso também modificou a expectativa do torcedor. O torcedor passou a ser tratado, e passou a se comportar, como um consumidor. Ele assimilou, e foi levado a assimilar, a relação com seu clube como uma relação com uma empresa. E a relação com seu ídolo como uma relação com um prestador de serviços. Como um mecânico que se contrata para consertar o carro, ou um pintor para pintar sua casa. E tem de se cobrar pelo serviço prestado.

Então vemos esses episódios de violências contra atletas, de revoltas de torcidas, o torcedor vaiando seu próprio time, vaiando seu próprio ídolo, porque ele vai ao futebol como vai a um restaurante, como vai a uma exibição etc. Ou seja: ele quer um resultado ali, quer que aquele resultado seja produzido. A relação do torcedor com time era sentimental — se perdia ele sofria, mas nunca tomou uma posição agressiva em relação a seu clube. Se o jogador jogasse mal, não era uma questão para ele resolver, mas um problema de o técnico.

Acho que isso lamentavelmente está mudando. E quando isso se alterar de vez, o resultado será um esvaziamento do futebol. Então, tanto faz a pessoa ir ao jogo de seu clube ou de outro qualquer, porque ela vai como se fosse a um espetáculo. Se o seu time estiver mal, deixa de ir ao estádio. Se estiver bem, não vai para torcer para seu time, mas para ver uma exibição, para ver um gol. Acho que o mercado é o grande responsável por esse cenário que está se desenhando para o futebol.

Isso está em franca ascendência?

Creio que já há sinais preocupantes. Vemos aqui torcedores hostilizarem ídolos como Ronaldo, como Adriano, como Diego Souza. Jogador de seu time era hostilizado por torcedores de outro time. Era isso o que acontecia. A torcida do Rio de Janeiro vaiou Julinho Botelho em um amistoso da seleção brasileira porque ela queria Garrincha. Então, a vaia contra Julinho Botelho não era para ele, mas uma homenagem a Garrincha.

Por isso, Diego Souza ser vaiado pela torcida do Corinthians, ou Ronaldo ser vaiado pela torcida do Palmeiras, São Paulo é compreensível porque está no universo desse sentimento. Agora não, eles são até tolerados pela torcida adversária. Eles são vaiados por sua própria torcida. Os clubes são cobrados também.

Então, esse é o cenário do torcedor consumidor, do torcedor do mercado, do torcedor que cobra uma jogada de seu atleta como quem cobra qualidade de um bife em um restaurante. Acho que o capitalismo e o mercado precisam calcular se não estão sacrificando, com essa ofensiva, aquilo que de fato o mercado poderia tirar seu proveito sem que comprometesse essa construção histórica.

Qual a sua opinião sobre o futebol feminino?

O futebol feminino tem no Brasil as mesmas potencialidades do futebol masculino. Porque nós, mulheres e homens do mesmo país, temos a mesma vocação, a mesma cultura, a mesma disponibilidade de participar da prática de esporte. O que não temos no Brasil é incentivo, apoio, infraestrutura e empenho das organizações, dos clubes e do próprio Estado em dar às mulheres essa possibilidade.

A dificuldade primeira é que os meninos são criados na rua em plena liberdade de sair de casa, de jogar futebol. As meninas já não têm essa liberdade. Ou seja: é quase um ato de rebeldia praticar o esporte tido como masculino, como o futebol. Então, tem de sair de casa, às vezes tem de enfrentar o pai e a mãe que vêem com desconfiança uma menina estar nesse tipo de esporte.

Elas gostam de praticar esse esporte. Têm talento e habilidade para isso. E podem mobilizar uma legião de torcedores. Vimos o Maracanã assistir à vitória do Brasil no Sul-Americano e torcer para a seleção. Mas acho que não há um processo de valorização do futebol feminino por parte dos clubes, do Estado, da imprensa.

Acho que o Estado poderia legitimar essa aspiração das meninas de jogar, porque isso teria um efeito também cultural sobre a própria percepção das famílias do que o futebol feminino representa. Quebrar também esse preconceito seria uma coisa muito importante para o avanço da prática do futebol feminino no Brasil.

Como surgiu a idéia de escrever o livro Jogo Vermelho?

A ideia mais remota, ou a motivação mais antiga, vem de uma ligação com o Palmeiras, que é meu clube de coração desde criança. E uma admiração pelo Corinthians. Meu primeiro time de botão foi exatamente essa dupla. A primeira vez que fui a Maceió adquiri uma dupla de times para jogar botão — Palmeiras e Corinthians. Meu irmão jogava com o Corinthians e eu com o Palmeiras. Quando ele passou a jogar melhor do que eu, mudamos — ele passou a jogar com o Palmeiras e eu com o Corinthians. Não me importava perder, importava que o Palmeiras ganhasse.

Chegando em São Paulo, essa ligação permaneceu. Fui a muitos jogos do Corinthians com amigos corinthianos, com torcida organizada do Corinthians, sem romper minha fidelidade, naturalmente, ao Palmeiras. E frequento o Palmeiras, vou à sala de troféus, admiro todas as salas de troféus. Tenho a idéia da sala de troféus como uma biblioteca de obras épicas — cada taça tem uma história contada ali, dramática.

Um dos troféus chamou a atenção por seu formato, na forma de uma deusa grega alada se projetando em cima de uma base de mármore. E fui vê-lo de perto. Anos 1940. E com a inscrição dizendo que foi do Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT), em 13 de outubro de 1945. Imaginei, naturalmente, a relação disso com o Partido Comunista, porque o MUT era um movimento organizado pelo Partido às vésperas da eleição, que foi em 10 de dezembro. O jogo foi em outubro, com todos os partidos em campanha na eleição para presidente, para governador, para senador, deputado.

Disse: Isso aqui tem uma história muito importante, contada por esse troféu e por essa taça. E fui atrás disso. Mas eram os anos 1990, não tinha tempo. Após a eleição de 2006 para a presidência da Câmara, que perdi, resolvi, entre outras coisas, ver se conseguia alcançar a história desse jogo.

A pesquisa no Palmeiras, no Corinthians, na Federação Paulista e, principalmente, nos jornais da época, me deu a idéia da grandeza e do significado dessa partida. Ela resume um momento importante da história ideológica, da história política, da história social e da história cultural do Brasil e do mundo. É um momento único, é um lampejo da história do Brasil e da humanidade de confraternização, de celebração do fim da guerra, da vitória contra o nazismo.

No Brasil, a confraternização pelo fim da guerra envolveu a sociedade brasileira. O Partido Comunista teve um papel importante não só no Brasil, mas no mundo. Essas forças construíram esse jogo. Foi um jogo para arrecadar fundos para o Partido Comunista. Mas foi um jogo de forças sociais muito mais profundas. Juntava-se ali futebol, movimento sindical e política. Coisas do povo. Foi uma conquista à margem do mercado.

O Brasil vivia um momento sublime, com energias políticas e sociais se encontrando para construir um projeto de país. O jogo simbolizou esse momento. Era um Partido Comunista que se reerguia, com outras forças democráticas, com muito vigor e muito prestígio, com lideranças queridas, com grande influência na intelectualidade. Era o movimento sindical que surgia também como uma força da natureza se espalhando, se organizando com rapidez e dinamismo por todo o território nacional.

As atas que dão conta da organização do MUT têm de ser lidas com admiração pela capacidade de realização do povo brasileiro. Ali estão lições de como trabalhadores mantidos na clandestinidade, sob repressão política, em tão pouco tempo conseguiram a proeza de organizar uma atividade sindical exuberante. E ao mesmo tempo o futebol.

Era outra coisa do povo também. Atletas, jovens, gente do povo. Todos operavam em um movimento conjunto. Apoiados inclusive pela imprensa. Houve um apoio aberto. A imprensa dizia que o jogo era beneficente para o MUT. E ali não havia nenhum interesse mesquinho.

O comitê de finanças do Partido contou com a presença de mulheres de classe média, judias, senhoras distintas, elegantes, frequentando as redações, indo ao Pacaembu para promover o jogo. Então, o que há no livro, para além da partida, é a tentativa de escrever uma crônica desse momento que foi de muita promessa para a construção do país, para a questão nacional.

Quais seleções você vê como favoritas para a conquista da Copa do Mundo?

Ah, temos sempre a Itália. A Itália parece um vulcão adormecido. Quando entra em erupção, às vezes inesperadamente, como em 1982, quando não era tida como das favoritas. Nem mesmo em 2006. Falava-se do Brasil ou da França. Então, as favoritas são as de sempre: Brasil, Itália e Argentina. Acho que a Inglaterra tem uma boa seleção. Acho que a Espanha também.

Se eu colocasse um peso maior na tradição, esse seria para o Brasil e Argentina pelo momento que passam, pelos atletas que possuem. Não sei se Argentina terá Messi em seu melhor momento, adaptado a um esquema de jogo que facilite, como ele joga no Barcelona. Mas acho que tem o melhor jogador do mundo em atividade. Isso já é algo importante em uma Copa.

Acho que o Brasil tem a maior variedade. Só um clube brasileiro como o Santos tem três jogadores que, a meu ver, seriam titulares em qualquer seleção do mundo. Nenhum técnico deixaria de pôr em campo Robinho, Ganso e Neymar. Há quem diga que a seleção brasileira podia ser os três e mais oito.

A Espanha tem um belo conjunto de jogadores eficientes e talentosos, que jogam bem em seus clubes. E a Inglaterra tem sempre a eficiência de seu estilo, de um futebol força, e alguns jogadores de talento também. Mas acho que se for para apontar o favorito, pelo conjunto das possibilidades, é sempre o Brasil.

Fonte: Revista Princípios