Sem categoria

Gilvan Lemos: Herói Irreconhecido

Por Gilvan Lemos

Vitorino fixava as gretas brilhantes da janela do seu quarto, que dava para a rua. Elas lhe traziam a certeza do dia amanhecido. Aborrecia-se porque, sendo domingo, ocasião em que podia dormir mais tempo, o sono lhe faltava. Era sempre assim. Nos dias úteis levantava-se da cama às 5 horas. Estremunhado, revoltado, dizia-se: Eu ainda dormia um bocado. O que não seria possível, pois tinha de lavar-se, tomar café e pegar o ônibus que o deixava às 7 no trabalho. Pedreiro de profissão, trabalhava atualmente na construção dum supermercado na Iputinga. Fim de mundo. Trabalho pesado para sua idade. Mas, àquela altura, ainda dava graças a Deus por tê-lo conseguido. Velho, cansado, por força do hábito, não podia dispor dos soninhos a mais aos domingos. Mudava a posição do olhar e as gretas brilhantes continuavam em sua vista, impressas na escuridão das pálpebras, na banda da porta, no reboco da parede. Quanta chateação! Estirava-se, encolhia-se, empurrava o lençol com os pés, deitava-se dum lado, do outro, o sono não vinha. E se punha a relembrar fatos odiosos, revoltantes, sempre esses, os que relembrava. E não eram poucos. Pudera, há quanto tempo vinha-os sofrendo na pele? Honesto, trabalhador, responsável, desde jovem plasmado nessa linha, de que servira? No fim da vida não possuía um tostão no banco, jamais conseguira desfrutar de nenhum bem material. Seu único bem era a casinha onde morava com sua velha, em terreno alheio, começada a ser construída por ele próprio, graças a sua arte, e jamais concluída. E nunca deixara de, pelo menos, tentar fazê-lo. Nas horas de folga, pegava a colher, preparava a massa e saía tapando os buracos que lhe restavam. Junto às lembranças, os futucados da mulher na cozinha, a preparar o café, lavando panos dispersos, mexendo em trecos inúteis, enquanto a água da chaleira fervia. A pobre mulher, incansável a seu lado, atenciosa, fiel companheira. Dos filhos, não podia dizer o mesmo. Cinco, quatro mulheres e um galalau, todos pelo mundo, não sabia notícias deles, nem as queria. Chatos, uma cantilena só: Porque pai não dá conforto à gente, porque pai não encaminha a gente, porque isso, porque aquilo… Vitorino rebatia: E eu tive pai que fizesse alguma coisa por mim? Tive alguém, um ente qualquer, que me desse a mão? Vocês não trabalham, têm o que comer em casa. E ainda reclamam! Reclamavam.

Conceição lavara o pano do café, alguma vasilha de sobra, aguardava que a chaleira fervesse. Lembrou a franga que passava a noite na coberta do quintal, debaixo do balaio, para não ser roubada. Esperava que a franga engordasse, atingisse a postura para lhe dar um ovo fresco por dia. Quando suspendesse a postura, Conceição lhe passaria a faca. Em outros tempos tivera o galinheiro com até dez galinhas poedeiras, um galo cantador. Mas os amigos do alheio foram-nas surrupiando uma a uma, inclusive o galo, ela desistira de formar outro plantel.
 
Trabalhar de graça pra encher barriga de gente safada? O marido é que desabafara: Tomara que morram de indigestão. Com tanta convicção! Conceição não sabe se a praga pegou. O fato é que desistiu de ser granjeira, resignara-se a uma frangota ocasional, solta durante o dia no quintal, presa à noite no balaio para não ser descoberta pelos ladrões.

Apanhou a cuia de milho, abriu a taramela da porta dos fundos. Ao sair, a franga ouviu-lhe a presença, pôs-se a cocoricar, impaciente. Conceição jogou um punhado de milho no chão, ergueu o balaio, a franga caiu em cima dos grãos, asas abertas, sufocando-se, engasgando-se, de vez em quando errando as bicadas. Conceição balançava a cabeça, reprovativa:

– Enche o papo, esfomeada!

Ao repassar, distraída, a vista em volta do quintal, percebeu, entre as varas do antigo chiqueiro de galinhas, estranhas pernas de calças. Largou um grito angustiado, quis correr, não saiu do lugar, petrificada de medo. Seria um ladrão? As peras se moveram, perpassando entre as varas carcomidas. Afinal se mostraram por completo, encimadas por um sujeito asqueroso, de aspecto ameaçador, cabelos em desalinho, rosto machucado, borrado de sangue seco. Havia qualquer coisa nele, um sinal qualquer, a maneira de olhar, o jeito de caminhar, talvez, que fez com que Conceição se mantivesse estática. E o sujeito se dirigia a ela, calmo, aproximava-se.

Já bem próximo, ela o reconheceu e largou segundo grito de desespero:

– Ramiro! – Curvou-se prendendo o choro, mãos apertadas no rosto: – Ramiro, é você, meu filho?

Era Ramiro, sim, mas ele não disse palavra, deu mais um passo, caiu em seus braços. Ela o carregou como pôde ao seu antigo quarto. Que conservava a velha cama, embora sem coberta, o colchão de capim catingando a mofo. E prestou-lhe o socorro que lhe foi possível prestar.

Despiu-lhe a camisa, lavou-lhe o torso, a cara, com a toalha de rosto apanhada no banheiro, molhada com a água do café. Em seguida massageou com uma mecha de algodão ensopada no iodo, que o marido sempre conservava para uma emergência. Lodo e Elixir Sanativo. Na ocasião, ela achou o iodo mais apropriado. Ramiro reabria ou apertava os olhos, sem outra demonstração de qualquer sentimento, dor ou gratidão, o que fosse. Respeitando-lhe o silêncio, ela também calava. Deixou-o aparentemente adormecido. Lembrou que não passara o café do marido e que para isso a água restante da chaleira não seria suficiente. Teria de completá-la com a da torneira o que lhe quebraria a fervura.

Pouco depois Vitorino deixava o quarto, vestido de cintura para baixo, pigarreando alto, como de costume. Foi lavar-se na pia de fora, propagando sua presença com os bufados respingantes, os esturros aquosos, os gargarejos cantantes, as cuspidelas espalhafatosas. Como de costume. Conceição coara o café, botara-o na mesa da cozinha, com o pão seco: a manteiga tinha se acabado, e ficou-o esperando. Vitorino surgiu de braços distendidos, olhos fechados, tateando rancoroso:

– A toalha.

Conceição não se apressou. Conhecia de sobra suas encenações. Trouxe do banheiro a toalha de rosto que usara havia pouco, deu-a ao marido.

– Tá molhada – ele protestou.

– Use pelo meio, no meio tá enxuta.

Vitorino obedeceu, resmungando. Penteou-se com os dedos, sentou-se para comer:

– Café com pão seco. E num dia de domingo! Isso é que é luxar…

– Pois é o que tem. É o que eu vou comer, também.

Ao terminarem, na ocasião em que Vitorino balançava-se para deixar a mesa, Conceição prendeu-lhe a mão. E sussurrou:

– Ramiro voltou.

Vitorino empertigou-se, único sinal de surpresa:

– Voltou?

– Sim, nosso filho. Dei com ele no quintal, destroçado, ferido. Carreguei ele para o quarto, fiz curativo em seus ferimentos. Tá dormindo agora. Quando acordar, vou lhe levar um cafezinho. Se tivesse leite…

Dispensou-se de perguntar ao marido se queria vê-lo. Sabia de antemão que Vitorino recusaria. Como igualmente não se interessaria em saber o motivo porquê voltara, que pretendia fazer do futuro, se estaria livre da polícia… À medida que seus filhos foram-no abandonando, Vitorino jamais falara no nome deles. Cabisbaixa, Conceição pôs-se a juntar o que restara da escassa refeição. Vitorino logo compreendeu sua intenção, levantou-se da mesa, ganhou os fundos, a pensar que desta vez não teria o sossego do descanso habitual do domingo: fumar na sua cadeira de balanço, vendo, tranqüilo, a fumaça asgaçar-se a carregar-lhe as preocupações; aparar com gilete o calo do dedo grande do pé; pentear-se, botar uma camisa limpa e postar-se à janela da frente para ver a serenidade da rua deserta, recebendo no rosto a brisa meio salobra. No momento, nada disso conseguiria afastar-lhe do pensamento a volta do meu filho. Necessitava dum trabalho pesado que lhe esgotasse as forças e o impedisse de pensar.

Na Rua Padre Silva, as casas se amparavam umas nas outras, com medo de cair. A maioria de porta e janela, sem terraço ou oitões livres. Sem calçamento, sem meio-fio, a de Vitorino era uma das poucas que tinha calçada de frente – feita por ele mesmo. As demais, quando muito, possuíam uma pedra lajeada, à porta de entrada, onde comumente as pessoas se sentavam para bater papo ou quentar sol. Naquela pobreza, pensava Vitorino, nenhum daqueles miseráveis dispensava o televisor. À noite, faziam ligações clandestinas, puxando para suas casas fiações do poste da rua. De manhã, retiravam a fiação, livravam-se dos fiscais da Celpe.

Vitorino era também um dos poucos que não tinha televisor em casa. Além de não poder comprar um, detestava aquela barulheira de gente desbocada, a mostrar as partes na maior sem vergonheza do mundo, na telinha mambembe. Não compreendia é como aqueles pulhas conseguiam televisores. Se compravam à prestação, por certo não pagavam as mensalidades. As lojas não o recolhiam? Roubavam. Na certa, roubavam. Quem, ali, não vivia de roubar? Quando acaba… Nada.

A barbearia ainda fechada, a bodega de Nondas do Caldo de Cana, também. Da mesma forma o bar de Luiz de Nilo. De casa comercial, aberta apenas uma porta da mercearia do português (outro ladrão), que enganava não somente a fiscalização, mas as fiscalizações. Vitorino fez um gesto de desprezo, arrumou o material com o qual daria início ao seu trabalho divagante, enquanto, sabia ele, a mulher cuidava do outro. Cal, areia, um pouco de cimento, enxada, colher de pedreiro, uma lata d’água. Trouxera dos fundos, objeto por objeto, poupando as forças, encompridando a maçada costumeira, a fim de livrar-se da mais recente. Na calçada, em sua calçada, saiu despejando a areia misturada à cal, derramou a água, pôs-se a mexer, a enxada rapando o cimento da calçada com uma fúria que até a ele mesmo surpreendia.

Revolvia a massa e entre dentes blasfemava.

Súbito, da casa da vizinha ouviu:

– Começou cedo hoje, hem, Vitorino?

Apolinário, o Puli, de folga da sua camelotagem nas ruas do centro, habituado a levar carreira dos fiscais da prefeitura, os chamados rapas, e ali na Padre Silva metido a sebo, com televisor, ventilador, refrigerador, conjunto estofado em sua casa. Vitorino não simpatizava com ele – aliás, com quase ninguém da rua.

– Na lida. Consertar uns rebocos, remendar uns buracos. Não sei viver à toa.

– Enquanto a maioria está por aí no primeiro sono, na ressaca de ontem.

– Há muita gente ruim neste mundo, Puli.

– É verdade. Viu o jornal de ontem?

– Não leio jornal, primeiro não tenho dinheiro pra comprar, segundo já sei de cor as notícias que eles trazem. Assaltos, mortes, roubalheira de toda espécie, a começar pelos grandões da política e das grandes empresas.

– Raramente compro, li na barbearia. Mas é como você diz, só dá crime. Na sexta-feira, a polícia deu uma batida no Morro da Conceição, desbaratou uma quadrilha perigosa, matou uns três, contando com o Fininho. Lembra-se de Fininho?

– Não – balbuciou Vitorino, com intencional indiferença.

– Ô, homem, aquele sujeitinho que trabalhava na veda do português.

– Sei não.

– Da batida, escapou o tal do Lambada, seu velho companheiro. Dizem que os dois têm pra mais de vinte mortes – Puli fez uma pausa e, malicioso: – Lambada você conhece.
Vitorino lançava com ódio colheradas de caliça na parede. Antes aquilo fosse na cara de Puli.

Guardou silêncio. Puli insistiu:

– Hem, Vitorino, Lambada você conhece, não conhece?

Vitorino interrompeu o trabalho, encarou o vizinho, colher de pedreiro na mão, ameaçador. Puli até recuou da janela.

– Puli, por que você não vai tomar no cu? Por que tá me provocando? Sabe demais que eu sei quem é Lambada. O que eu lamento é que essas mortes não tenham sido praticadas aqui nesta rua de cornos e ladrões. Aliviava um pouco. Ou você não sabe que nesta rua só tem cornos e ladrões?

– Que é isso Vitorino? Precisa ficar desse jeito? Precisa ofender? E não sei do que você tá dizendo não. Eu, pelo menos, me garanto.

Vitorino largou sua risada sarcástica:

– Você? Logo você? Cadê que me pagou o muro que levantei no seu quintal? Pagou?

– Também não é assim não, Vitorino. Vou lhe pagar;

– Essa promessa eu ouço há anos. E tem outra, Puli. Esse Lambada que, não nego, é meu filho, não é o único criminoso deste país imundo que é o Brasil. Quem não rouba no Brasil, a começar do Presidente da República? Presidente, governadores, senadores, deputados são todos uns ladrões finos. E não roubam trocadinhos, não, roubam bilhões. Por isso que o país está na merda, os pobres sendo obrigados a matar, roubar pra não morrer de fome. Quer saber mais?

Vitorino pretendia prosseguir, mas Puli deixou a janela. E Vitorino voltou ao seu trabalho, trêmulo, sem acertar direito com o que estava fazendo. Jogou pro lado colher, enxada, nada segurava na mão, esmurrando o ar, sapateando de raiva nova e antiga, porque desde menino vinha sendo roubado: ajudante de pedreiro, o roubavam; mestre de obra, o roubavam… No Estado, na Previdência… Só encontrara pelo mundo ladrões e aproveitadores. As horas avançando, a rua se povoando, as pessoas parando para vê-lo naquele despropósito, pivetes mexendo na caliça, espalhando a areia.

– Saiam daqui, seus porras, eu mato um de vocês!

Mais curiosos:

– Tá aperreado, Seu Vitorino?

– Tou não, tou não. Só tou com vontade de matar um.

– A polícia já esteve em sua casa, Seu Vitorino?

– Esteve não, foi agora mesmo pra casa de sua mãe.

Dona Conceição apareceu à porta para socorrê-lo:

– Vamos almoçar, Vitorino, o almoço já está na mesa.

Vitorino recolheu as ferramentas (pretendia trabalhar mais tarde seria o modo mais prático de esquecer o filho), se as deixasse fora, a canalha carregaria. Deixou tudo na sala da frente e encaminhou-se à pia, a fim de lavar as mãos. Passou pelo quarto do filho, nem olhou. Conceição tampouco se interessou em prestar-lhe alguma informação. Emudecia, despreocupada: ainda não era hora de falar do filho.

Após o almoço, Vitorino abreviou a sesta, retornou ao trabalho. A rua voltara à pasmaceira. Sol encoberto anunciava chuva. Discussão acalorada no bar de Luiz de Nilo. O pipoqueiro balançava sua sineta, a miuçalha o acompanhava, sem dinheiro pra comprar. Os garotos mais afoitos tentavam roubar-lhe pacotes de pipoca: ele os enxotava aos pontapés. A barulheira dos televisores ligados a toda altura, confundia-se com a parolagem dos locutores de rádio, narrando jogo de futebol. Uma vaca perdida surgiu da esquina próxima, catando aqui e ali, despreocupada, nacos de capim seco. Os moleques deixaram o pipoqueiro em paz – passaram a aperrear a vaca. Dona Maroca, como de costume, à janela, colhia incidentes para suas futuras intrigas. A tarde findou, não choveu. Vitorino recolheu o material, agora definitivamente. Lembrou, de repente, que a polícia decerto viria dar uma batida em sua casa.
Não disse nada à esposa. Guardou os apetrechos do seu trabalho no lugar de costume, foi tomar banho. Intencionalmente continuava a ignorar a estada do filho em sua casa. Jantou o jantar mixe, sem trocar palavra com a mulher, tornou à cadeira de balanço para fumar. Enquanto isso, pensava: Que vou fazer depois do cigarro?

Ganhou a rua, evitando os conhecidos. Enveredou pela esquina da casa de Moisés. Ao passar diante do portão, seu cachorrão o atacou, batendo com o focinho no gradeado. Vitorino assustou-se, praguejou, deu-lhe uma banana. Sua raiva não alcançou Moisés, compreendia que se não o mantivesse de guarda, Moisés ficaria sem uma galinha sequer. Viu-se diante do Capibaribe, o rio de tantas histórias, a carregar no costado o lixo do bairro inteiro. Lembrou Soares que nele pescava bagulho e enfim, enjoado, suicidou-se. O velho Ageu que, segundo dizem, desceu em suas águas e nunca mais foi visto. Ageu teria igualmente se suicidado? Diabo é quem duvidava. E eu, Vitorino pensava, por que não me suicido? Que lucro desta vida, da qual jamais ganhei coisa alguma? Rebateu a idéia com nova banana estalada: T’aqui que dou esse gosto aos filhos da puta do Brasil”

À hora de dormir, recolheu-se mudo, a respeito do filho. Conceição o encontrou ainda vestido, sentado na cama, fingindo ler uma revista. Conceição sorriu intimamente: era chegada a hora. Sentou-se ao seu lado, foi desfiando. Que Ramiro estava recuperado; que sofrera um tiro de raspão; que o atacaram a coronhadas, mas ele conseguira escapar. Na escaramuça mataram o Fininho a tiros de revólver. E concluiu:

– Dei umas calças suas e uma camisa para ele trocar, as dele estavam em farrapos.

Vitorino largou a revista, tirou a roupa deitado, mesmo, ficou em cuecas, deitou-se de lado e adormeceu. No dia seguinte, logo cedo, Conceição veio lhe dizer que Ramiro tinha desaparecido:

– Foi embora, Vitorino.

Vitorino vestiu-se, acompanhou-a, só assim penetrava no quarto do filho, desde que ele chegara. Conceição, o rosto banhado em lágrimas, apanhou a roupa que ele havia deixado.

– Queime isso no quintal, enterre as cinzas. – Disse o marido.

– Pobre do nosso filho! Conseguirá escapar da polícia?

– Claro que não. Pra ele não tem escapula. – Calou um momento, as veias de suas têmporas latejavam. Finalizou, rangendo os dentes: – Mas tenho fé em Deus que antes de a polícia dar cabo a dele, levará uns trinta com ele. É só o que peço a Deus.

Conceição tapou os ouvidos, fechou os olhos. Rezava.