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Gilvan Lemos: Homem D

Por Gilvan Lemos

A Vittorio de Sica
 
Largaram-no de supetão às feras do silêncio, sob uma trama de tal forma planejada que ele se ausentara quase definitivamente de si mesmo. Uma coisa. A mesinha esmaltada era uma coisa. O chinelo era uma coisa. Ele, uma que não se identificava. Das pisadas macias ouvidas do corredor, não fazia parte. Dos murmúrios do quarto do vizinho, não participava. Em nenhum dos carros que transitava na rua ele se encontrava. A luz do abajur não se acendia para ilumina-lo. A cama não fora feita para seu corpo: jogaram-no casualmente nela. Como uma coisa. A janela aberta à vastidão da noite não o iludia com a lua ou as estrelas, somente desvendava uma coisa inanimada, mas que tinha nome: céu escuro.

No interior da camisola, como se não fizesse parte dele, o frescor, do baixo-ventre às virilhas, proveniente da raspagem a que fora submetido. Estivera ridículo, desautorizado, enquanto a enfermeira o ensaboava, passava-lhe a gilete nos recônditos de suas conveniências entregues a ela sem reação, e a ele próprio reapareceu, revelando-se em suas verdades inconfundíveis.
Morto só aquilo? Quando o médico lhe dissera é caso de operação, imediatamente lembrara a morte. Apenas lembrara. Em verdade, quase chegara a menciona-la: Há perigo de… O médico cortara-a de sua boca: Toda operação abdominal é perigosa. Evitara pronunciá-la, mas advertira: É bom deixar sua família a par de tudo.

Minha família… Ia dizendo. Calou. Há muito tempo separado da mulher e dos filhos, que desde o rompimento ficaram ao lado da mãe. Que fim teriam levado? O mesmo estariam pensando ele? Se estivessem? Estranho: anos e anos de convivência, carinho, afeição, apagados repentinamente sem deixar rastos… Nele deixaram, como se concernentes a outra pessoa tivessem permanecido a ronda-lo, por fora, sem penetra-lo. Dos filhos guardava as melhores recordações (especialmente quando na imaginação os recriava pequenos, amorosos, dependentes). Depois descobrira que não eram os filhos que relembrava, mas a si mesmo, relacionado ao próprio pai.

Estranho, sim, insistia, que ninguém soubesse de sua estada ali, para ser operado, provavelmente morrer. Em seguida a cama seria ocupada por outro paciente com igual destino, que passaria a ouvir os ruídos do corredor, os sons de fora; ver a mesma escuridão da janela escancarada à solidão noturna. Quem sabe, para esse outro, haveria lua no céu, estrelas brilhantes, visitas, cuidados, demonstrações de afeto. Ao desenlace, de qualquer forma, na cidade, no mundo inteiro, ninguém interromperia seus afazeres. As fábricas continuariam a movimentar suas máquinas, o comércio a abrir suas portas, o povo a lutar por um lugarzinho a fim de prosperar, amar, procriar, odiar, trair, acumular ambições, até chegar a vez de deixar tudo para os que os substituiriam.

No momento, ele é que centralizava o interesse desse drama tão vulgarmente patético que, apesar de tudo, ainda causava surpresa a quem pretendia vivenciá-lo. Cada um por si, porque só nos interessamos por nós mesmos, pensou, só nos afeta o que nos diz respeito, continuou a pensar, valorizamos mais o amor que nos dão e nos acrescenta, do que o que damos, que é tirado de nós e nos diminui. Pensou ainda: Afinal, a ninguém damos amor: cultivamo-lo apenas porque nos proporciona, a nós mesmos, o encantamento do qual necessitamos.

De modo que não se ralava com quem, como ele, estivesse naquela situação; que, pior do que ele, nem tivesse ao menos um leito de hospital onde terminar os dias. Só ele contava. Cego, frio, dizia-se, estou sozinho, não tenho ninguém por mim. Imaginou que acaso encostasse o rosto num peito de cheiro íntimo-paterno, e chorasse se sentiria melhor. E se confrontasse, súbito, um olhar atento, meigo-materno, melhor ainda.

Não era de agora que se concentrava no impossível, que se procurava e se refazia na criança que fora. Cansadas lembranças inesperadamente o aprisionavam. A elas se abraçava, mesmo sofrendo, pois até as mais dolorosas o compraziam. Contudo, se as ouvia, análogas, de um dos seus remanescentes amigos, aborrecia-se. Remanescentes amigos? Rareavam. Deixava de encontrar um deles, informavam-lhe: Morreu. Morreu, está paralítico, teve um derrame, cegou, não sai mais de casa, foi posto num asilo: Está-no-hospital-se-ultimando. Sobrevivos, tornavam-se-lhe insurpotáves, a contar as mesmas anedotas, as histórias repetidas, vítimas constantes de esquecimentos tortuosos. E sempre as dores tomando-lhes o corpo inteiro.

Todos as sofriam, cada um se vangloriando de que as suas eram mais intensas. Mas se um realista lhes previa a morte próxima, recuavam: Nada, dorzinha insignificante. É da coluna, talvez vesícula. Meu médico garantiu que vou viver cem anos!

Por essas e outras já nem saía do apartamento quarto-sala, no centro, a não ser para o almoço. O café da manhã e o da noite ele mesmo fazia (essas refeições completadas com biscoito, um copo de leite desnatado, frutas, um doce qualquer). Às vezes nem sabia o que estava comendo. Das bananas e mamões que enrolava em papel para amadurecerem, esquecia; quando ia ver estavam podres. Comprava jornal, não lia. Ligava o televisor e mal topava com o rosto de um canastrão de novelas ou dum político corrupto, desligava-o. Se pegava um livro pra ler adormecia na cadeira. Em contrapartida, na cama o sono lhe faltava. Ocasião em que mais se apegava ao passado – um passado que representava ele mesmo, ele criança, ele adolescente, ele cheio de ilusões. Compassivo, observava: Como eu era besta… e feliz, completava com lágrimas nos olhos.

Da janela, fracionado entre prédios elevados, via o mar. O mar, a névoa azulada, os edifícios evanescentes da orla marítima, os carros nos viadutos, as composições do metrô. Quatro, em hora de menos movimento; seis, à hora do rush. Nas árias próximas os carros faziam barulho e incomodavam. À noite, o rosário de luzes pendentes dos postes. Brancas, azuladas, pardas. As das propagandas em néon moventes e coloridas. Uma das maiores, no alto da ponte, levava dez segundos para completar a mensagem comercial. Em dias comuns cerca de mil carros ou mais transpunham o rio utilizando a ponte, enquanto de três em três minutos o semáforo mudava de cor. Amarelo, atenção; vermelho, fechado; verde, livre. Impossível determinar os pedestres que se precipitavam lado a lado, quando o sinal estava livre para eles. Tentava cantá-los, não conseguia. Talvez pela falta dos óculos que, não raro, esquecia não sabia onde ou das constantes interrupções a que era forçado, pela premência de ir ao sanitário urinar. Depois não se animava a reiniciar a contagem. Pernas de calças, saias, cabeças, chapéus… Cansavam a vista, impacientavam, frustravam.

Tanta gente no mundo… e ele sozinho. Um neto se quer conhecia. Um que mexesse no televisor, que lhe metesse o dedo no nariz, que derramasse refrigerante no assoalho, que esvaziasse a lata de biscoito, que pulasse na cama com os sapatos empoeirados, sujasse o lençol, provocando-o alegremente: Vovô, tem um homem deitado na sua cama! Não era ele que fazia assim, na casa do seu avô? Só que naquele tempo não havia televisor, ele mexia no rádio. Mas havia também uma avó e os pais amparando-o, garantindo-lhe as traquinagens. Hoje devia ser avô de uns dez netos. Talvez já tivesse passado por um deles sem saber. E pelos filhos, pela mulher, da mesma forma. Na inconfessada esperança de que por acaso isso pudesse ocorrer, dava atenção às crianças da rua, agradava-as, no entanto elas o temiam, se afastavam desconfiadas. Uma, a quem dera uma moeda, saíra correndo ao encontro dos pais e dos irmãos, a aponta-lo: Foi aquele velho da barrigona que me deu.

Antes de internar-se, teve o cuidado de deixar o apartamento em ordem. Cama forrada, armários arrumados, janelas aferrolhadas, móveis espanados, alimentos perecíveis jogados no saco de lixo (ao descer, o largaria no depósito), frigideira e cafeteira bem lavadas, toalha de banho estendida, bacia do sanitário tampada. Sobre o birô, junto a notas explicativas, o dinheiro do condomínio, o do aluguel e uma importância maior destinada às despesas do funeral (do seu saldo bancário nem fizera questão: alguns centavos, nada mais), quanto ao sobrasse das roupas, sapatos, objetos de uso pessoal, fizessem o que bem entendessem – seu propósito era não distinguir ninguém. Quem lhe merecia distinção? Jamais deixara de pagar corretamente o de que se servia e aos que o serviam, nunca dera prejuízo a quem quer que fosse, sua regra sempre fora esta: não incomodar para não ser incomodado. Tanto que às vésperas do dia da faxineira comumente se anteocupava em deixar quase tudo limpo m deixar quase tudo limpo, o trabalho dela, portanto, restava diminizado. Não lhe daria liberdade de considera-lo um velho desleixado e sujo. Tampouco instalara chuveiro elétrico no banheiro.
 
Tinha conhecimento de acidentes, pessoas morriam eletrocutadas. Não que desdenhasse a morte. Nada demais morrer. Preocupava-o era imaginar que, sendo atingido, o chuveiro continuaria a escorrer, a água inundando o banheiro, a sala, o quarto, a cozinha; vazando para o corredor, os apartamentos de baixo; danificando piso, pintura, móveis; e quando arrombassem a porta o encontrariam inerte, despido, arroxeado, talvez já exalando a podridão da m-o-r-t-e.

Ao se retirar – em sua melhor roupa, inclusive paletó e gravata, carregando a maleta com os utensílios de que necessitaria no hospital – passou em revista o que já havia providenciado, tornando a apertar todas as torneiras e, mais uma vez, com recompensada satisfação, vistoriou a mesinha da entrada livre do telefone, do qual se desfizera por vingança, pois nunca telefonava nem recebia telefonemas, a não ser trotes e ligações equivocadas.

Deixou a chave com o porteiro, dizendo-lhe que a entregasse ao síndico, porque se houvesse alguma necessidade (um vazamento, por exemplo, comum em prédios antigos), não seria preciso arrombar a porta. O porteiro notou-lhe a elegância, a maleta, o saquinho de lixo, perguntou: O senhor vai viajar? Sim, respondeu. Demora-se? Não sei. Prestativo, tomou-lhe o saco de lixo: Deixe que eu boto no depósito. E o acompanhou até a saída: Faça boa viagem.

Nem se detivera a reconhecer que o porteiro fora cortês, atencioso, dedicado. Fora, realmente? Talvez planejasse apenas receber uma gorjeta. O que não lhe foi possível analisar, então, dada a presteza com que os enfermeiros vieram-no buscar, a fim de conduzi-lo à sala de cirurgia.
 
Habilidosos, competentes, transferiram-no da cama para a maca, saíram-no conduzindo corredor afora, as rodinhas da maca em seu rugido inconfundível. Não adiantou dizer-lhes que podia ir andando nos próprios pés: não lhe deram a menor atenção. Haveriam de perder tempo a discutir com uma coisa? Admitiu que, sem dúvida, executavam aquela tarefa com precisão.
Quinze dias depois, completamente curado, restabelecido, recebeu a visita do seu médico: Agora posso dizer: foi um milagre. Para o seu caso, pensávamos, não havia salvação.
 
Operamo-lo por desencargo de consciência. Quero parabenizá-lo em nome de toda a equipe. De toda casa, igualmente. Posso lhe garantir que o senhor vai ficar na história deste hospital.
Voltou ao apartamento, o porteiro o recebeu sem estranheza: Como foi de viagem? O síndico achou por bem deixar a chave comigo. Está aqui, vou lhe entregar. Eis em sua mão o chaveiro com as quatro chaves: a do gradeado de ferro, a do cadeado, a do pega-ladrão, e a da porta de entrada. Usou-as na ordem a que se destinavam. Entrou. Um ambiente assim parecido com o do hospital, só que mais amplo, mais povoado de coisas inertes, com seus nomes designativos. Na sala, o sofá, as cadeiras, a mesinha do telefone sem telefone, a estante ao fundo, o birô. Rasgou o bilhete que continha suas recomendações, guardou o dinheiro na gaveta. No quarto, sua cama forrada, o guarda-roupa embutido, os sapatos da diária emparelhados, a cômoda, o espelho (cujo reflexo evitou), a mesa de cabeceira, o quebra-luz. No banheiro, o vaso sem marcas de respingos, a toalha estendida, o vaso tampado. Na cozinha, o fogão de duas bocas, o pequeno armário com a porta entreaberta (para não pegar mofo), os pratos empilhados, as xícaras, duas, os copos, seis, a cafeteira, a frigideira, a chaleira e, em seus recipientes, os biscoitos amolecidos. O refrigerados também aberto (para a borracha da vedação não se danificar) e bem enxuto: antes, o havia descongelado.

Trocou de roupa, calçou os chinelos, correu as cortinas, abriu as janelas, ligou a chave geral do sistema elétrico. Ao acaso, sem mais o que fazer, refez a sua condição: continuava uma coisa. À hora de costume desceu para almoçar, não no mesmo restaurante, a garçonete e o gerente poderiam ter notado a sua ausência, lhe pediriam esclarecimentos. Fez compras, voltou, tirou a sesta. À tarde tomou banho, coou café, tomou-o com biscoito, comeu uma maçã, uma talhada de mamão, guardou um cacho de uvas para mais tarde. A boca adocicada suscitou-lhe a obrigação de tomar mais um xícara de café. E repentinamente lembrou: jamais devia ter deixado de fumar.

Noite chegada, não se dispôs a ler. Ligou a televisão mas se postou à janela, de costas para o aparelho, vagando o olhar pelos lugares conhecidos. As luzes enevoadas da orla marítima, os quadrilatos brilhantes das janelas dos edifícios (teve preguiça de cantá-las), a água serena do rio refletindo o colorido das propagandas em néon, a ponte, os transeuntes, o movimento dos carros diminuídos, as viaturas passíveis até de… Não, não as contaria. A algaravia do televisor, os relâmpagos que ele disparava e que se multiplicavam na parede, faiscando nas lentes dos seus óculos. Houve um momento em que tudo em si mesmo parou, os sentidos recusaram-se a lhe transmitir emoções. Recuperou a visão, só a visão. E viu embaixo o abismo profundo.

Considerou que aquele seria o instante perfeito para se atirar da janela, coisificar-se enfim. Haveriam de comentar que depois de sobreviver a uma cirurgia considerada fatal, de ser objeto dum verdadeiro milagre, depois de completamente curado, livre da doença que o levaria à morte, paradoxalmente pusera fim à vida, incoerentemente resolvera deixar de viver.
Mas quem observaria isso? Quem se incomodaria?