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Silvio Tendler, um cineasta contra a maré

O ”Sr Documentário” fala da carreira, projetos e do cinema engajado com a luta pela utopia de Silvio Tendler. Fala também da relação do cinema com a literatura e da batalha que continua a ser fazer filmes no Brasil.

Por Oswaldo Faustino*

- reprodução

Acusado por analistas do Fundo Setorial Audiovisual, do Ministério da Cultura (MinC), de não saber fazer roteiro e de que seus filmes têm bilheterias pífias, o cineasta chuta o balde e mostra que, além de conquistar as maiores plateias do mercado brasileiro de documentários – O mundo Mágico dos Trapalhões (1 milhão e 800 mil espectadores), Jango (1 milhão) e Anos JK (800 mil) –, seu Utopia e Barbárie é um dos filmes mais vistos em exibições alternativas.

Aos 60 anos, o cineasta Sílvio Tendler se revela ainda apaixonado por cinema e literatura e está muito distante da descrença e do tédio de um grande número de jovens esquerdistas de sua geração. Alerta-nos quanto à efemeridade de alguns atos e palavras de pessoas que merecem admiração e sugere que direcionemos nosso olhar para as grandes realizações artístico-culturais de alguns personagens, cujo posicionamento político possa nos desagradar.
Conta-nos a história de sua vida de documentarista, destaca também a importância do cineclubismo em sua formação profissional e aponta as utopias e a barbáries no mundo do cinema, em nosso país.

Entre curtas, médias e longas-metragens, já dirigiu cerca de 40 filmes, sempre com uma visão humanista e reflexiva. Fundou, em 1981, a Caliban Produções Cinematograficas, que produz biografias históricas de cunho social. Os rumos do Brasil, da América Latina e do mundo em desenvolvimento são sua principal preocupação.

Tendler com a escritora Risomar Fasanaro e Mario Dalcendio JR, vice presidente do Centro Cineclubista de São Paulo (Cecisp).

Tendler foi presidente da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro e da Associação Brasileira de Cineastas. É um dos criadores da Fundação Novo Cinema Latino-Americano e do Comitê de Cineastas da América Latina. Dirigiu a Fundação Rio Arte e o Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho. Foi diretor da TV Brasília e secretário de Cultura e Esporte, no governo Cristóvão Buarque, no Distrito Federal. Atuou na Unesco, na Coordenação de Audiovisual para o Brasil e o Mercosul, da qual atualmente é consultor. Leciona no Departameto de Comunicação Social da PUC-RJ.

“O Sr. Documentário”, como o chamou um crítico de um grande jornal, anda às voltas com seu principal projeto atual: produzir um filme documentário sobre o Poema Sujo, de Ferreira Gullar. Enquanto não vence os incontáveis obstáculos para realizá-lo, montou uma videoinstalação, no Rio de Janeiro, com artistas renomados lendo os versos do poeta, que, um dia, declarou: “Como a vida é inventada, eu inventei o meu nome”. Com a palavra, Sílvio Tendler.


Cineclube Brasil:
Há quem diga que você é um cineasta que passou a vida inteira fazendo um filme só. É verdade?

Silvio Tendler: Não sei se pode-se dizer: “de um filme só”… mas acredito que todos os meus filmes dialogam entre si. Tenho muito essa preocupação de imprimir Brasil nas telas. Discutir Brasil. Modestamente, eu acho que hoje tenho uma das melhores “brasilianas”.

Cineclube Brasil: Como surgiu o título “Cineasta dos sonhos interrompidos”?

Sílvio Tender: O Arnaldo Carrilho, que hoje é embaixador do Brasil na Coreia do Norte, velho cinéfilo e nosso amigo, quando eu lancei Glauber e depois Milton Santos, me definiu como o “Cineasta dos sonhos interrompidos”. Ele demonstrou que todos os meus personagens, de uma maneira ou outra, por alguma razão, interromperam a obra que estavam fazendo.

Cineclube Brasil: Quais são suas grandes paixões e influências no cinema?

Sílvio Tender: Minhas grandes paixões começam na ficção, com Godard. Na verdade, pela grande tríade revolucionária do cinema, nos anos 60 e início dos 70: Godard, Pasolini e Glauber. São os três caras que sacolejam o cinema, em termos de linguagem, de temática, de propor ousadias. Depois, aqui no cinema brasileiro, é muito Joaquim Pedro de Andrade. Ele tem uns filmes, na minha cabeça, os mais seminais do cinema brasileiro. Vou de cara em Os Inconfidentes, em que ele conta a história da Inconfidência Mineira, em pleno governo Médici. Fala de Tiradentes, mas também está falando daqueles anos 70, com a barbárie do governo Médici, mostrando que o “porra louca” de hoje é o herói de amanhã.

Cineclube Brasil: E, como documentarista, quais são as suas influências?

Sílvio Tendler, antes da exibição de seu filme Josué de Castro, Cidadão do Mundo.

Sílvio Tender: Eu começo, no Brasil, com Vladimir Carvalho, o primeiro cara do cinema documentário com que tive contato direto, em 1969, quando ele estava fazendo O País de São Saruê. Depois o Geraldo Sarno, de quem até tenho uma história engraçada. Naquela época, eu era presidente da Federação de Cineclubes do Rio de Janeiro. Geraldo me entregou uma cópia “zerinho” de Viramundo, pra gente distribuir o filme. Assim faria finanças pra ele e renda pra nós. Seis meses depois entregamos a ele a cópia em frangalhos, sem devolver um tostão. Depois veio o Sérgio Muniz. Aí eu vou para os internacionais. Saí do Brasil, Joris Yves foi o primeiro cara que me acolheu. Depois conheço Santiago Alvarez, que me trata com muito carinho, e Patrício Guzmán. E Jean Rouch me deu a documentação de que eu precisava para tirar meu certificado de residência na França. Um pouco mais tarde, o Richard Leacock, que também é um papa do cinema verdade americano, o cinema direto, que foi da equipe do Robert Drew.

Cineclube Brasil: Muitos têm preconceito com a utilização de material de arquivo, uma metodologia muito presente em seus filmes. Fale a respeito.

Sílvio Tender: As pessoas que veem um filme de arquivo, se não são de cinema, não têm capacidade para avaliar a dimensão do trabalho que aquilo dá. Pensam que é só chegar na prateleira pegar filmes, jogar numa ilha de edição e acabou. Na verdade, é como você montar um quebra-cabeças de 50 mil peças. Imagina um filme como Utopia e Barbárie, em que eu tive de juntar várias temáticas, várias situações. Eu tinha vários depoimentos e, para aquilo ali não virar um programa de rádio, tive que ilustrar com imagens.

Cineclube Brasil: Quais eram as maiores dificuldades para produzir esse tipo de filme, no passado?

Sílvio Tender: Quando comecei a fazer JK e Jango, a gente vivia numa ditadura militar. As pessoas tinham medo de se comprometer com esse tipo de filme. A gente não tinha arquivos organizados. O Arquivo Nacional era num casarão velho na Praça da República (no Rio de Janeiro). Não tinha espaço para guardar filmes, não tinha equipamentos para selecionar, não tinha nada. Os acervos da Agência Nacional ficavam em galpões abandonados. Então o meu primeiro trabalho foi sair recolhendo esse material, onde ele estivesse. Eu tive de pegar materiais em todos os lugares e tipo de suporte possível porque eles não estavam catalogados nem separados. Segundo, eram em película, o que significava pegar aquelas latas enormes, pesadas, sujas, maltratadas. Era muito e muito difícil de realizar.

Cineclube Brasil: Você também realizou filmes institucionais, não é mesmo?

Sílvio Tender: Sim. Fiz um filme chamado Memória do Aço, sobre o processo de industrialização siderúrgica no Brasil. O que permitiu que o País tivesse um parque industrial foi a política de criar siderúrgicas, que começa em 1942 ,com Volta Redonda, feita por Getulio Vargas, e depois vai seguindo com JK, que vai criar a Usiminas e depois a Cosipa, em São Paulo. Eu tive de descolar esse material todo para contar essa história. Depois, já com o filme Glauber começa a ficar mais fácil. Para uma pessoa que começa a trabalhar hoje é impossível imaginar como era. Alguns jovens têm saudades da moviola. Eu não tenho nenhuma. Era uma trabalheira danada aquele negócio.

Cineclube Brasil: O que mudou?

Sílvio Tendler: Hoje, com uma câmera de fotografar, que também filma com alta qualidade, você faz. Tem um cartão para guardar as imagens. Tudo muito virtual demais para meu gosto. O fundamental é você saber o que fazer com todo esse material e que história você quer contar. Aí o buraco é mesmo mais embaixo.

Cineclube Brasil: O que seria a utopia e a barbárie no cinema brasileiro?

Sílvio Tender: A utopia no cinema brasileiro são os sonhos que a gente tem de fazer filmes e de imprimir esses sonhos na tela. A barbárie é: cada vez que você está fazendo isso vem um javali furibundo e tenta acabar com o sonho. Aí os caras inventam mercado, reduzem cota de tela. Se você imaginar, por exemplo, que durante a ditadura militar – não tenho nenhuma saudade da ditadura, não – tinha no Brasil por volta de 6 mil salas de cinema e uma cota de tela por ano de 140 dias por filme. Hoje em dia, governo popular, você tem 2.500 salas, quase nenhuma de rua, todas elas dentro de shoppings, muito mais voltadas para o entretenimento que pro cinema, e uma cota de tela de 28 dias. Isso é barbárie. Você não tem como colocar os filmes brasileiros em cartaz.

Cineclube Brasil: E sempre haverá esse confronto utopia X barbárie?

Sílvio Tender:
 Eu acho que hoje a gente vive bem essa utopia e essa barbárie porque tem recurso pra fazer cinema, os meios estão aí, quer dizer a gente tem leis de incentivo, que são bastante boas, que permitem produzir os filmes, mas eles não permitem o fundamental que é exibi-los. E não tem nenhuma política pública de distribuição e de exibição de filmes. Então, na verdade eles resolvem a mea-culpa, deixando fazer, mas não resolvem o fundamental, deixando ver.

Cineclube Brasil: Então, o que falta para a utopia vencer a barbárie?

Sílvio Tender: Você não tem nenhuma política, por exemplo, que o acompanhe para você apresentar um filme brasileiro num festival internacional. A Ancine, por exemplo, considera certos festivais internacionais de primeira linha. O fato de você ser convidado para participar daquele festival, só por isso, você já tem de ganhar a passagem. Não tem uma política de difusão do filmes. Depois eles te cobram: “Conseguiu vender?” Como você vai vender o filme, se chega lá fora sem nenhum material publicitário, sem um trailer nem um folder na língua local. Então é complicado.

Cineclube Brasil: Você acha que os cineclubes podem ser uma possibilidade?

Sílvio Tender: Eu acho. Mas não é uma possibilidade comercial. Acho que deveriam ter políticas compensatórias. Nós estamos vivendo uma situação tão surrealista que Utopia e Barbárie foi o maior cano que eu já produzi na minha vida: foi a menor bilheteria que já tive com um filme. E, seguramente, é um dos meus filmes mais vistos. Ele não para de passar em cineclubes, sempre com sala cheia. Eu nunca viajei tanto com um filme como estou viajam com Utopia. Então, acho que tinha de ter um sistema eficaz de avaliação do público em cineclubes. Já que esses filmes nascem com verbas públicas, incentivadas, eles são pagos pelo povo brasileiro, acho que já está na hora de essas sessões alternativas contabilizarem também como público do filme e não apenas as sessões dos shoppings.

Cineclube Brasil: Como foi sua formação? Como você chegou ao cinema?

Sílvio Tender: O cineclube é a minha escola de cinema. Quando comecei a pensar em fazer cinema, lá por 1964, 1965, eu tinha 14, 15 anos, não havia escola de cinema no Brasil. A UnB tinha sido desmantelada. Darcy (Ribeiro) tinha levado um bando de cabeças coroadas lá pra UnB: o Paulo Emílio Salles Gomes, o Jean-Claude Bernadet, e outros de intelectuais do primeiro time, que tinha ido montar o departamento de cinema daquela universidade. Com o golpe de 1964, esse departamento foi desmantelado, numa talagada. Sem alternativa, 200 professores tinham se demitido, entre eles os de cinema. E nós voltamos à estaca zero. A USP ainda não tinha a ECA, a UFF ainda não existia. Então, a grande escola de cinema era o cineclubismo. O cineclube, antes de mim, formou o Joaquim Pedro e o Leon Hirszman, no Rio de Janeiro, formou o Glauber, na Bahia, o Orlando Sena, o Paulo Gil Soares, o Roberto Pires, o Fernando Coni Campos. E em São Paulo, tem o Person e toda a turma que vem junto com o Paulo Emílio. Todos são ligados na questão do clube de cinema, que vai virar cineclube. No Rio de Janeiro, havia muitos cineclubes em colégios e universidades. Naquele momento esses cineclubes se vinculam também ao movimento político. Há uma completa integração entre o sonho de cinema e a vontade de mudar o mundo.

Cineclube Brasil: Qual é o ponto de partida do moderno documentário brasileiro?

Sílvio Tender: O ciclo de cinema da Paraíba começou com a presença de uns jesuítas que tinham um cineclube no qual se formou o Linduarte Noronha, que vai fazer Aruanda, o primeiro grande documentário moderno brasileiro dos anos 60. Então o cineclubismo é a grande escola de cinema da geração anterior à minha. Daí vai nascer Cinco Vezes Favela e o cineclubismo formou toda a minha geração de cineastas. Todo o cara de cinema que hoje tem em torno de 60 anos, é ou foi cineclubista.

Cineclube Brasil: O que resultou num revigoramento desse movimento. Concorda?

Sílvio Tender: Eu acho muito interessante esse revigoramento do movimento cineclubista. No Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal de Educação criou 200 cineclubes. Acho isso sensacional porque é uma criação espontânea dela. Fiquei muito orgulhoso ao ser convidado para ser padrinho e pude convidar a professora Maria José Alvarez. Quando eu tinha 13 anos e estudava em escola pública, no Colégio Estadual Pedro Alvares Cabral, ela dava aula lá. Um dia li num jornal que ela havia feito em Jacarepaguá um filme com garotos da minha idade. E, de repente, vejo passando na minha escola, na minha frente, a autora daquele filme com garotos igual a mim. Aquilo me permitiu sonhar em fazer cinema.

Cineclube Brasil: Você acredita que o cinema caminha para uma elitização? Se acredita, como lutar para impedir isso?

Sílvio Tender: Eu acho que essa elitização do cinema é a barbárie chegando perto da gente, quer dizer: é a falta de espaço que a gente tem nas salas de cinema, cinemas se concentrando em shoppings, muito mais voltados para o entretenimento. Imagine o cinema dos anos 50, se você tivesse de disputar com McDonald’s e Adidas, se teria espaço para Rosselini ou Antonioni, ou Felini ou Godard. Não tinha. Hoje, no esquema que está aí, eles não terão. É a barbárie se impondo a olhos vistos. Por outro lado, com a barbárie vem o antídoto, vem a utopia. Tem aí esses equipamentos. Os circuitos serão outros. A gente vai fazer cinema de uma forma diferente.

Cineclube Brasil: Como foi a rejeição do MinC ao seu projeto Poema Sujo?

Sílvio Tender: Eu tomei pau do Fundo Setorial Audiovisual com a proposta de um filme sobre o Poema Sujo, de Ferreira Gullar. No parecer dos técnicos eu fui acusado de não saber fazer roteiro; do Poema Sujo ter uma “certa relevância”, Ferreira Goullart não é tão importante assim; de poesia não caber no cinema, ser no máximo uma coisa para televisão fechada; e de eu ter bilheterias pífias. Os caras acharam que o cinema começou agora. Eu tenho a maior bilheteria do cinema (documentário) brasileiro. Isso ninguém vai tirar de mim. Então, se eles não sabem que eu tenho isso é porque eles começaram agora. Não eu. Eu tenho uma história. Eu vou continuar fazendo cinema, eles vão passar. Vou fazer com os meios que eu tenho. Montei uma vídeo-instalação com o Poema Sujo, filmei, peguei o melhor elenco de atores e atrizes que gravaram trechos do poema, como Letícia Sabatela, Camila Pitanga, Sérgio Brito, Nathalia Timberg, Osmar Prado, Paulo Betti, Maria Bethânia, Elisa Lucinda… Eu vou fazer esse filme queiram eles ou não.

Sílvio Tendler.

Cineclube Brasil: Qual é o grande diferencial desse momento?

Sílvio Tender: O novo, hoje, se deslocou para a periferia. Quem me falou isso foi Milton Santos. Aprendo muito fazendo meus filmes. Entrevistei Milton Santos, ele falou coisas absolutamente geniais. Eu fui entrevistá-lo para pegar um bifinho para o filme Josué de Castro, e o cara resolveu fazer seu testamento ali diante daquela câmera. E teve uma hora em que fui me apavorando e disse: “Mas, professor, o senhor está fazendo isso tudo pra que? Que repercussão isso vai ter?” E ele apontou meu pterodátilo e falou: “Com pequenos instrumentos também se fazem coisas fundamentais”. Ele me ensinou que o novo se deslocou da classe média para a periferia. Então, aprendi que, na minha geração, o novo era uma cultura de classe média – cinema novo, bossa nova, teatro de arena –, era tudo uma garotada da UNE. Hoje, o novo está na periferia e vai continuar existindo, porque ninguém mata o sonho. Então, não tenho medo. Acho que vamos viver em dois mundos de utopia.

Cineclube Brasil: Num momento em que só se fala de violência, você trabalha com poesia e com um dos poetas mais pichados pela esquerda brasileira. O que faz esse pisciano nadar contra a corrente?

Sílvio Tender: Eu acho que o papel do artista é nadar contra a corrente. A gente tem de estar sempre fazendo a piracema. Desovando para fazer filhos. Eu sou criado por uma geração de cineastas que sempre foi contestadora. Apesar de toda a minha militância e vivência de esquerda, um dos cineastas que sempre admirei muito foi o Andrzej Wajda, porque na Polônia do stalinismo ele fazia filmes anti-stalinistas. Agora, o artista não faz filme pra agradar o poder. Ele faz filme para sacolejar a estrutura do poder. Eu fui massacrado porque coloquei a Dilma em Utopia e Barbárie. E coloquei, não por circunstâncias políticas. Eu não estava fazendo campanha pra ela, mas porque ela foi uma militante, ela foi combatente naqueles anos de chumbo e ela tem um lugar na história, independentemente de a gente querer ou não.

Cineclube Brasil: Mas filmar Ferreira Gullar não foi uma decisão temerária?

Sílvio Tender: Batalho o projeto do Ferreira Gullar há pelo menos cinco anos. E eu não vou parar de batalhar agora, porque ele resolveu apoiar o Serra. Isso é uma questão que não dura mais seis meses. Daqui a seis meses ninguém mais vai discutir se o Ferreira Gullar acertou ou errou. As pessoas vão discutir que o Poema Sujo é uma obra prima, magnífica, uma das maiores páginas da literatura mundial. É isso que a gente tem de fazer como artista: não ceder às facilidades e bajulações do poder.

Cineclube Brasil: Você tem centenas de horas filmadas e tem de contar a história num filme curta, média ou longa-metragem de, no máximo, duas horas. Como fazer isso?

Sílvio Tender: O cineasta navega prensado entre muitas ditaduras. Primeiro a ditadura da profissão, os recursos com que faz o filme. Quando tem uma grana limitada tem um tempo limitado e um tempo de execução limitado. Nenhum de nós aqui é como o meu irmão Santiago Alvarez que o Estado pode bancar. O Santiago tinha aquele esquema de produção dos cinejornais dele. Se ele precisasse ficar um ano fazendo um filme ele ficava. Ia fazendo outras coisas e o Estado bancava. Ele tinha o salário dele. Aqui no Brasil, nenhum de nós tem. A gente trabalha com um Silvio com certo orçamento, debaixo de uma pressão rigorosa dos funcionários do Estado.

Cineclube Brasil: E você segue sempre lutando contra as ditaduras?

Sílvio Tender: É assim que eu trabalho. Então tenho esses constrangimentos. Tem a ditadura do tempo. O que você tem e cortar? Em Utopia, eu tinha 400 horas gravadas. Você tem saco de ficar no cinema 400 horas? Tem o limite da paciência do expectador. Uma hora e meia, uma hora e 40 minutos, o cara começa a olhar no relógio. Aí, dá vontade de fazer xixi e tal. Então, quer dizer, eu chutei o pau da barraca em Utopia, ao completar duas horas. Eu gostaria de fazer um filme de quatro horas. Não tenho grana para fazer dois segmentos de duas, como gostaria. Melhor apresentar duas horas. Faltam 398, mas duas são melhor do que nada.

Cineclube Brasil: Mas, voltando a Ferreira Gullar, o que você pensa de personagens que, ao longo da vida, mudam sua posição política?

Sílvio Tender: Cara, eu tenho 60 anos. Essas brigas políticas são efêmeras. Elas passam. O Poema Sujo fica. Os artigos “serristas” do Gullar daqui a uma semana estão embrulhando peixe. O Poema Sujo vai entrar pra história da literatura. Acho que a gente não deve se preocupar. Claro que essa divergência vai estar na raiz da nossa militância política, das nossas crenças. Agora, eu seria incapaz de brigar com o Gullar porque ele resolveu apoiar o Serra. Eu acho que não é isso que é importante nele. Você imaginava que o Borges, um dos maiores pensadores do século passado, eterno na literatura, na filosofia, ia apoiar Pinochet? É muito doloroso imaginar que Gilberto Freire apoiou a ditadura. E ele entrou porque pensou: “Agora eu preciso resistir e, para poder resistir, tenho de estar filiado a alguma coisa. O golpe é contra os comunistas, vou entrar pro partido”. Em 1970, ele é do comitê do partido e é perseguido, tem de fugir e vai se exilar na União Soviética. Então, tem toda uma militância política desses anos que vai aproximá-lo dessa gente que foi virando, virando. O Partido Comunista deixa de existir, vira PPS. Esse povo vai ficando mais antagonista ao PT. Eu não diria que de direita, mas antagoniza com o PT e chega a uma situação limite, que a gente acabou vivendo nessa eleição em que muita babaquice direitizante foi dita e feita.

Cineclube Brasil: Outro que mudou e merece comentário seria o Sérgio Bianchi, não acha?

Sílvio Tender: Sobre o Bianchi, vou dizer o seguinte: eu adoro as provocações dele. Eu adoro o cinema do Bianchi e acho que ele hoje é um dos cineastas mais corajosos do Brasil. Quanto Vale ou é por Quilo é um primor. Aquele filme é uma realidade que a gente vive. Então, estou pouco me lixando para quem ele votou, também porque não vou dizer em quem votei. O que vai ficar são os filmes do Bianchi. Então, daqui a 20 anos, quando um garoto estiver lhe entrevistando e você disser o Serra… ele vai perguntar: “Serra quem? Dilma o que?”. Isso passa.

Cineclube Brasil: Diga um filme que você não fez, mas quer fazer e um filme que você não fez e nunca fará.

Sílvio Tender: O filme que eu não fiz, que dói muito porque não vou fazer foi o meu primeiro filme: eu fui a única pessoa a entrevistar o João Cândido, o marinheiro, o “Almirante Negro”. Eu o entrevistei em 1969, no começo do ano. E aí tive um processo por causa desse tal de cineclubismo: o vice-presidente da Federação, meu amigo, resolveu sequestrar um avião para Cuba. Sobrou pra todo mundo. Eu tive de sumir e a mulher que estava guardando os negativos desse filme queimou tudo. Eles não existem mais. Só sobrou uma foto. Quer o que eu não fiz, mas ainda farei? Um filme que eu gostaria de fazer é sobre Darcy Ribeiro. Darcy é um belo personagem. Não é uma obsessão. É um desejo.

Cineclube Brasil: Como trabalhar essa questão da vanguarda, retratar o século 21 sem chegar a essas loucuras, como instalações, que ninguém entende nada?

Sílvio Tender: Eu acho que o documentário está indo muito no caminho dessa loucura. Não esqueça que você está falando com um cara de 60 anos. A garotada de 20 está fazendo outra coisa. Eu montei a videoinstalação, no Rio de Janeiro, um café. Botei mesa de botequim, projeção nas paredes, grafiteiros fizeram personagens do Gullar nas paredes. Nos tampos das mesas fiz projeções desses artistas recitando. É uma coisa semi de vangarda, mas com uma preocupação que eu ainda tenho, que a minha geração tem, que é a inteligibilidade. Todas as propostas dos caras mais jovens que eu recebi passavam pela ininteligibilidade. A garotada de 20 anos não tem mais, no documentário, a preocupação com o realismo.

Cineclube Brasil: Mas como fazer o público entender a proposta? Como dialogar e garantir que essas pessoas mantenham o seu interesse pela obra?

Sílvio Tender: De certo só tem a morte. O resto é caminhar. Agora, pra onde o mundo vai caminhar é uma dúvida. Meu curso na PUC se encerrou, no ano passado, com um solene esporro. Três grupos apresentaram filmes. Um sobre favela, muito acomodado; o outro foi uma menina que fez a pergunta do Crônicas de um Verão, de Edgar Morin e Jean Rouch: “Você é feliz?”, foi feita uma brincadeirinha lá tipo CQC; e o terceiro foi o mais grave, pois “documentou” a eleição do Diretório de Comunicação da PUC. Foi uma cobertura horrível. A proposta das duas chapas era festas toda sexta-feira e a chopadas. Eu falei: “Gente, vocês estão no Diretório de Comunicação da PUC. Lá fora o mundo está fervendo, discutindo questões de comunicação, interferência do Estado ou não, e aqui vocês discutindo chop? O papel de vocês é ser incendiários, o meu é de ser bombeiro. É nesse mundo que vocês vão entrar?” Temos de brigar contra isso. Vou brigar até a minha vida acabar. Brigo com todo mundo.

Cineclube Brasil: Qual lugar que a literatura ocupa em sua vida e quais os autores da literatura brasileira e internacional de que você mais gosta?

Sílvio Tender: O papel da literatura na minha vida é total. Primeiro, pelo Graciliano Ramos, depois Oswald de Andrade, ainda tem algumas coisas do Jorge Amado que eu gosto muito, Rubem Fonseca, que eu adoro… e internacional vamos para Herman Hesse, Demian é obrigatório. Depois o Lobo da Estepe, As Vinhas da Ira, que eu adoro o filme. Aí vamos para o Pablo Neruda, porque gosto muito de poesia, sempre gostei. Hugo Cortazar, Eduardo Galeano, sensacionais. E não sei se vou decepcionar vocês, mas qualquer adaptação literária pra mim, geralmente o livro é melhor que o filme. Porque o livro me permite imaginar e o filme me dá pronto, prato feito. Então eu gosto mais de literatura.

Cineclube Brasil: Mas há adaptações que merecem destaque, como Vidas Secas, A Hora da Estrela, não é mesmo?

Sílvio Tender: É verdade. Se você pegar Memórias do Cárcere, o filme do Nelson Pereira dos Santos é um primor, mas o livro é melhor. O Hora da Estrela é uma grande exceção, porque é um puta filme. Eu acho que a Suzana Amaral foi muito feliz. A Macabéia dela é imbatível. Na grande maioria dos filmes adaptados da literatura, o livro é muito superior.


Algumas obras de Sílvio Tendler

Longas-metragens
Os Anos JK – Uma trajetória política (1980)
O Mundo Mágico dos Trapalhões (1981)
Jango (1981)
Castro Alves – Retrato Falado do Poeta (1998)
Glauber o Filme – Labirinto do Brasil (2002)

Médias-metragens
Rondônia – Viagem à Terra Prometida (1986)
Memória do Aço (1987)
Chega de Saudades (1988)
Josué de Castro – Cidadão do Mundo (1994)
Quilombo (1996)
Marighella – Retrato Falado do Guerrilheiro (2001)
Milton Santos – Por Uma Outra Globalização (2004)

Curtas-metragens
Cidade Cidadã (1998)
Dr. Getúlio – Últimos Momentos (2000)
Rio Republicano (2000)
Correndo Atrás dos Sonhos (2004)
O Olhar de Castro Maya (2004)

Seriados
Anos Rebeldes (1992)
Era das Utopias (2009)

*Oswaldo Faustino é jornalista e escritor. Esta entrevista foi publicada originalmente na revista Cineclube Brasil, nº 4, 2011. http://www.cineclubebrasil.com.br.