Reitor Paulo Speller fala sobre desafios da UNILAB

De desafios e otimismo vive o reitor da Unilab, Paulo Speller. Na agenda, debates importantes para os rumos da educação do País. Leia a seguir a íntegra da entrevista publicada nesta segunda-feira (29/08) no jornal O Povo.

Ele se diz otimista. E é. Aos 19 anos foi preso por sua atuação no movimento  estudantil. Precisou sair do País para proteger sua liberdade, sua vida. Exilado no México, foi reconstruindo a vida, sem muita feijoada nem samba. De lá partiu para uma missão em Moçambique, quando as colônias africanas acabavam de se tornar independentes: montar sozinho um programa de formação de agentes de saúde. Seiscentos foram capacitados.

Em 2008, o psicólogo mineiro assumiu a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em solo cearense. Até 2015, o reitor, hoje com 64 anos, quer ver montada a estrutura de uma universidade em tempo integral para cinco mil alunos. E Paulo Speller deve conseguir. Para além do otimismo, o trabalho já começou.

O POVO – O senhor nasceu em Monlevade (MG), uma cidade com bons indicadores na área de educação. Como foi a sua infância?

Paulo Speller – Na época não era município ainda, mas distrito de João Molevade. Era um agrupamento típico das empresas de mineração em Minas, no Vale do Aço. As casas, o sistema de comunicação, as escolas, os clubes. tudo era construído e mantido pela empresa. O meu pai veio de Luxemburgo como um técnico contratado pela empresa luxemburguesa de mineração. A minha educação se deu ali, no sistema público, que era apoiado pela companhia e eu fiz os meus estudos no Grupo Escolar, como se chamava na época. Uma escola primária de excelente qualidade, com as professoras normalistas, mas eram pouquíssimas e o acesso muito restrito.

E pelos estudos o senhor depois foi a Belo Horizonte?

Quando chegou o momento de eu ir para a escola secundária, minha mãe falou: “Agora nós vamos para Belo Horizonte, porque aqui não tem (escola)”. E foi a família toda, meu pai conseguiu a transferência. Tinha 12 anos e fui para o colégio Loyola, correspondente ao Santo Inácio daqui. Em casa, alguns foram para a escola pública, outros foram para a escola privada religiosa. Houve uma valorização da educação muito forte.

E sua ida a Brasília?

Brasília foi uma experiência absolutamente inovadora na educação superior brasileira, que se iniciou na década de 60. E por alguma razão aquilo me chamou atenção. Fiz o vestibular em Belo Horizonte, passei em dois, mas a universidade tinha sido fechada um pouco depois do golpe, em 65. Foi reaberta em 66. Vi a notícia no jornal e decidi ir para Brasília. Meu pai me deu todo o apoio, fiz o vestibular e passei.

Nesse momento começou seu envolvimento com o movimento estudantil?

Uma experiência muito marcante. Todo o tempo de UnB eu morei dentro do campus. Vi como é importante você participar da vida da universidade. E, claro, acabei me envolvendo com o movimento estudantil também. Foi muito intenso, anos 60. O que culmina com 68, quando vem a repressão mais forte e interrompi os estudos em outubro de 68, quando fui detido no trigésimo congresso da UNE em Ibiúna, São Paulo. Eu e mais 700! Não fui sozinho. (risos) Fomos detidos e houve uma triagem. Ficamos dois de Brasília, eu e outro colega, Lenine. Permanecemos presos. Seríamos soltos no dia 13 de dezembro de 1968. Depois de dois meses a legislação permitia uma prisão preventiva e nós fomos presos em outubro. Até recebemos a visita do advogado no dia anterior: “Amanhã vocês vão ser soltos. Estou com o habeas corpus, venho buscá-los”. E naquele dia à noite foi editado o Ato Institucional 5. E o Congresso é fechado. Todas as liberdades individuais são suspensas, inclusive a nossa. A partir dali veio a incerteza. Não sabíamos o que iria acontecer e ficamos presos. Eu fiquei preso por mais um ano depois disso. Fui condenado a um ano e meio, o advogado recorreu, etc, enfim, acabei sendo solto.

O que mais lhe marcou?

É uma coisa muito contraditória. Quando você tem 19 anos de idade a vida inteira está pela frente. Você não tem a dimensão, sempre acha que vai ser solto amanhã. E eu sou por natureza muito otimista. Claro, houve momento em que você sente o peso. Não é fácil acordar todos os dias e ver grades na sua frente. Mas o momento mais duro foi quando fomos transferidos de Brasília para São Paulo e ficamos na sede da Operação Bumerangue, em fevereiro de 1969. Era a sede da tortura. Ali passamos uma semana sem dormir.

O senhor chegou a ser torturado?

Recebemos ameaças, éramos retirados da cela. Era um conjunto de celas com um corredor central e no final você tinha o centro de tortura. Víamos as pessoas sendo retiradas das celas e ouvia as pessoas gritando. Víamos as pessoas retornando. Eu não fui torturado. Nos retiravam da cela no meio da madrugada. “Agora vai você”. De fato, era o papel deles. Criar o clima. Quando eu cheguei fui colocado numa cela com um operário todo machucado. Eu, ingênuo, chegando ali, ele começou a me relatar as torturas. Eu pensei que ele estivesse brincando. Depois, à noite, começou… Pois geralmente eles torturam à noite. Foi um período longo, mas rico também.

Mas hoje algum tipo de lembrança da época lhe angustia?

Isso eu superei. Quando você sai da prisão sim. Você anda o tempo todo olhando para trás, acha que vai ser preso de novo, sonha com prisão. Era um período de terror que nós vivíamos aqui. Foi o período do governo Médici, o mais repressivo, mais violento. Realmente era um período de muita incerteza. Então, naquele momento sim, mas hoje acho que já superei.

E o senhor chegou a ser exilado…

Saí em dezembro e fui para Brasília. Queria voltar a estudar mas minha matrícula foi negada. Falei com o vice-reitor e ele disse claramente que meu nome estava em uma lista de estudantes que não iriam voltar para a universidade. Ele sugeriu uma universidade fora do País e até facilitou, mesmo sem poder, a guia de transferência. E comecei a me movimentar, pois meus ex-colegas já estavam fazendo mestrado e um grupo deles foi para o México. Tinha amigos no Chile e no México. E felizmente esse grupo do México conseguiu uma vaga para eu continuar meus estudos por lá. Um dia me encontrei com o advogado e o Rui falou assim: “Paulo, está na hora de você sair do Brasil imediatamente, pois você vai ser preso novamente. Aqueles processos estão sendo retomados e se você for preso agora você não sai mais”. Eu agilizei. Era o período da Copa do Mundo de 70. Meu pai me colocou numa excursão para a Copa, que foi no México. E dito e feito. Quem foi preso naquela época ficou dez anos, até a anistia. E pelo julgamento que eu tive, teria ficado até 79 como vários dos meus amigos e companheiros da época ficaram. O movimento estudantil era muito mobilizado.

Hoje ele é mais fraco?

Primeiro temos que ver que a educação superior era muito mais restrita, elitizada. Não tinha essa grande quantidade de faculdades. Tinha um processo seletivo muito grande e eram pessoas muito bem preparadas. E a direção do movimento estudantil se caracterizava por trazer aqueles mais bem preparados. Os destaques da universidade eram integrantes do movimento estudantil. Era o caso do nosso presidente da Feub, o Honestino (Guimarães). Um cara jovem, inteligentíssimo, que entrou no curso de Geologia com 17 anos. Todo o meu envolvimento vai se dar no momento em que Honestino é preso e por circunstâncias em que outros membros da diretoria não podiam assumir, eu fui presidente da Feub no período mais conturbado. Na prática, fui responsabilizado por várias ações do movimento estudantil na fase final do AI-5 e antes do congresso da UNE. Era um movimento com presença maciça dos estudantes, assembleias lotadas.

E por que não é assim hoje? Falta interesse das pessoas?

Hoje você tem um processo de massificação do ensino superior com a presença do estudante trabalhador, dos cursos noturnos. Uma presença maior de jovens que não são da classe média. É uma outra dimensão de preocupação que ele vai ter. Isso se reflete no nível de participação que é muito menor. A partir de um universo que é muito maior. Eu me lembro na UnB, as assembleias, se você não chegasse cedo no auditório o problema não era sentar, você não entrava. E o pessoal ficava até o final.

Mas essa mudança é ruim para o País?

Acho difícil fazer avaliação se é bom, se é ruim. Há um processo de crescimento. Temos mobilizações importantes em momentos cruciais: as Diretas Já, a saída do Collor. Mas são momentos muito episódicos, bem pontuais e bem distantes uns dos outros. Essa mobilização mais permanente, mais ativa, você tinha naquela época também pela ausência de atuação de outros atores políticos. A força mais independente era o jovem porque ele achava que não tinha nada a perder. Mas de fato tínhamos. Podíamos ser presos ou perder a vida como o Honestino perdeu. Hoje você tem um processo de consolidação das instituições democráticas com todos os problemas inerentes nesse meio e naquela época não tinha. A própria imprensa era muito censurada.

O senhor chegou a formar família durante os 10 anos que esteve no Exterior…

Sim, eu me casei e tivemos dois filhos. Ela era minha namorada brasileira e ficou aqui, mas deu tempo de deixar uma procuração para o meu irmão se casar com ela. (risos) O pai dela disse que ela só saia do Brasil casada. Então, deixei a procuração para fazer o casamento civil, me casei e fiquei sabendo depois por telegrama. (muitos risos). “Já estamos casados”. Então, fui para uma churrascaria com os amigos no México. Depois ela veio. Estamos juntos até hoje. São 41 anos e dois filhos.

Fora do Brasil, de alguma forma o senhor aproveitou para tratar das questões locais?

Você tem, grosso modo, duas categorias de exilados. Tem aquele que entra na fossa e fica ouvindo samba, fazendo feijoada, tomando caipirinha, lendo a revista “Veja”. Esses ficam no Brasil, literalmente. E tem o outro extremo que vai viver as coisas. Eu procurei um certo equilíbrio. Primeiro terminei minha graduação em Psicologia, depois fiz o mestrado e fui trabalhar. No final, já era professor de carreira na melhor universidade do país, da América Latina, a Unam, Universidade Nacional Autônoma do México. Lá na Unam no sétimo ano você tem um ano sabático para se aperfeiçoar, viver outras experiências. Uma coisa que nós perdemos aqui no Brasil. Eu fui para Moçambique como voluntário. As colônias africanas acabavam de se tornar independentes. Tive a felicidade de coordenar um dos projetos mais fascinantes que já conheci, a formação dos agentes de saúde nas aldeias comunais. O diretor da área de formação de quadros no Ministério da Saúde falou: “Você vai ser o coordenador do projeto. Nós já temos financiamento das Nações Unidas”. Pensei: bom, eu sou uma pessoa muito importante. Ele falou: “Só tem você no projeto”. (risos) “Você vai montar a equipe”.

E como foi o processo?

Acabei ficando mais tempo. Quando terminamos deixamos 600 agentes em todo o país com seis centros e equipes de apoio e de formação. Foi um trabalho lindíssimo. Eu iria ficar ainda seis meses, foi quando saiu a anistia no Brasil. Dá uma balançada geral. Eu já estava há mais de nove anos no exílio, vivendo minha vida com a minha família e de repente vi que poderia voltar. Como eu iria me sentir no Brasil? Em fevereiro de 80 pus os pés aqui e em uma semana tive a certeza de que meu lugar era o Brasil. O pessoal achava que eu estava louco. Abandonar tudo e vir para o Brasil sem nada, sem emprego. Nada, nada, nada. Foi a construção de uma outra vida profissional. Depois fui convidado para ser professor visitante da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Foi o capítulo da volta ao Brasil.

Sua trajetória é muito ligada à educação superior. Que avanços o senhor percebe?

Novas universidades mostram a intenção de interiorização do ensino superior, principalmente Norte e Nordeste. Há um processo de transformação num país em que a educação superior era e ainda é muito atrasada.

O senhor está falando de oferta de vagas?

De produção científica, de matrícula. Um acesso importante à pós-graduação, na formação de nível superior. Nós estamos com uma crise política na formação de engenheiros. A Petrobras está dizendo que não tem como avançar, a indústria está dizendo a mesma coisa. Há problemas na formação de professores, uma carência enorme de bons profissionais no ensino médio.

A que o senhor atribui esses entraves?

Tem toda uma problemática de política da educação básica. Falta uma efetiva valorização do professor, tornar esta uma carreira atraente. Em outros países, o jovem quase briga a tapa para ser professor, e aqui você tem o processo inverso. A última opção é ser professor.

O senhor vê perspectiva de modificação desse quadro?

Há encaminhamentos importantes, mas acho que falta criar um sistema nacional de educação básica. Há uma parcela de responsabilidade muito grande do Governo Federal. Os estados e municípios têm avançado, é verdade, mas de forma muito lenta na melhoria da educação básica. E aí, mais uma vez, comparativamente com outros países nós estamos muito atrasados. Se você quer formar bons professores, bons engenheiros, qualquer profissional, e não tem uma boa formação de base, não vai avançar.

O governo Dilma lançou o programa Brasil Sem Miséria. Qual o senhor avalia ser o papel da universidade nesse desafio?

Ela tem um papel importante na extensão das atividades de pesquisa, de ensino, de novos conhecimentos para apontar caminhos. Não podemos é confundir a universidade com o poder público, responsabilizá-la pela solução dos problemas.

Como se deu sua aproximação com o Nordeste especificamente?

Quando estava terminando meu segundo mandato como reitor da UFMT foi lançada a ideia da Unilab. Justamente em julho de 2008 pelo presidente Lula em Lisboa. O ministro me convidou. Foi uma coisa meio irrecusável. Era para ser uma coisa muito mais perto. Pensava-se um ano para tramitação.

Aconteceu aquela disputa entre Ceará e Bahia.

A Bahia queria levar a Unilab para lá. Isso atrasou muito a tramitação.

E qual é seu maior desafio à frente da Unilab?

É deixar essa estrutura. Estamos finalizando o plano diretor do campus maior, o das Auroras. Queremos em 2012 construir a primeira etapa, em 2013 a segunda e até 2015 gostaria que essa universidade estivesse pronta. É uma estrutura que se diferencia das outras universidades e tem raízes inclusive na minha experiência na UnB, uma universidade residencial. Na Unilab todos os cinco mil estudantes terão direito à moradia, numa proposta de universidade em tempo integral. E eu gostaria de ver esse projeto concluído. Não necessariamente comigo, mas, enfim, que a universidade realmente seja consolidada nessa direção.

Pergunta do Leitor – Socorro Acioli, jornalista e escritora

Existe algum projeto de incluir um curso voltado à literatura, já que os autores africanos como Agualusa, Mia Couto e Ondjaki têm um número considerável de leitores no Brasil e a literatura é uma das maiores forças na integração dos povos?

Sem dúvida! Estamos criando agora o primeiro curso de especialização justamente em estudos africanos e indígenas, onde essa questão está contemplada. É o primeiro passo na criação da pós-graduação. No próximo ano teremos o curso de Letras. Podemos trazer para cá a experiência do Museu da Língua Portuguesa e os grandes autores, quem sabe como professores visitantes.

Campus da Unilab

A sede da Unilab em Redenção, no Maciço de Baturité, recebeu o nome de Campus da Liberdade, em referência à história do município, pioneiro na abolição da escravatura, em 1883. Cedido pela Prefeitura de Redenção, o local abrigou, em meados de maio de 1948, o patronato de religiosas de Redenção, depois transformado em colégio. Mais tarde serviu como sede da Prefeitura. Em área cedida pelo Governo do Estado será construído o Campus das Auroras, com 135 hectares, bem na entrada do Maciço, entre as cidades de Acarape e Redenção.

Bastidores

Membro do conselho e presidindo a Câmara de Educação Superior, Speller conta que existe intenção do governo de estabelecer um programa de expansão para os Estados que têm carência de médicos. “O Ceará com certeza é um deles. Haveria mudanças, no sentido, por exemplo, de dotar as universidades públicas de condições para a oferta de cursos de Medicina e de residências médicas com bons hospitais, boas estruturas, para que os profissionais tenham interesse em ir para o Interior”.

Sobre os serviços social obrigatório, Speller lembra que a discussão depende de legislação própria. “Quando conclui o curso de Psicologia no México fiz um ano de serviço social obrigatório em uma clínica psicológica. Onde você recebe uma bolsa e é um pouco o modelo do serviço militar obrigatório. Eventualmente poderia ser, mas é o mais polêmico de todos”.

Para Speller, a expansão do ensino superior depende muito da melhoria da educação básica. “A Constituição Federal fala de um regime de colaboração entre estados, municípios e o Distrito Federal. Mas ninguém até hoje destrinchou isso”, critica o reitor.

A Unilab acabou sendo disputada pela Bahia. “A decisão do presidente era pelo Ceará e isso foi discutido com o governador Cid. Já havia a ideia de colocar em Redenção mesmo, mas teve uma batalha política no Congresso”. No final, houve um compromisso com o MEC de criar um campus da universidade na Bahia. “Mas a prioridade maior neste momento e onde nós estamos concentrados é na consolidação do projeto inicial aqui no Ceará, em Redenção, no Maciço de Baturité”, conta Speller.

Perfil

Mestre em Psicologia e doutor em Ciências Políticas, Paulo Speller está sempre disposto a novos desafios. Ainda jovem saiu de sua cidade natal, João Monlevade (MG), passou por Belo Horizonte e, já na idade de ingressar no ensino superior, foi estudar na Universidade de Brasília (UnB). Atuou nos movimentos estudantis da época, o que gerou sua saída do Brasil. Ficou exilado no México onde concluiu parte de seus estudos e casou-se por procuração com uma brasileira. Depois de aproximadamente dez anos, voltou ao Brasil, já com dois filhos nascidos no México. Atuou como reitor por dois mandatos seguidos, entre 2000 a 2008, na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMT). Antes disso foi assessor de Relações Internacionais (1989 a 1992) e diretor do Instituto de Educação (1992 a 1997), também da UFMT. No período em que foi reitor, também presidiu a direção da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. Speller presidiu a Comissão de implantação da Unilab desde 2009, que resultou na sua criação em 20 de julho de 2010. Foi nomeado, então, reitor pro tempore, da instituição.

Números

3 mil inscritos no primeiro processo seletivo realizado pela Unilab para os brasileiros

200 mil habitantes é a população estimada dos 13 municípios do Maciço do Baturité

Fonte: O Povo