Estreia "Diário de uma Busca": as memórias de criança exilada

Sobram razões, estéticas e políticas, para celebrar a estreia neste fim de semana de "Diário de uma Busca".

Por Amir Labaki*

Sobram razões, estéticas e políticas, para celebrar a estreia neste fim de semana de "Diário de uma Busca", de Flávia Castro, em São Paulo e no Rio, depois do lançamento inicial em Porto Alegre. De um lado, reafirma-se como um documentário pode ser a um só tempo autocrítico e emocionante, geral e particular. De outro, eis finalmente a experiência dos exilados pela ditadura militar brasileira reconstituída através dos olhos de uma menina que se formou durante a longa errância com seus pais militantes. Eram eles que amavam tanto a revolução.

Revolução socialista, bem entendido, e não o golpe de Estado de 1964, que se apropriou da classificação em uma de suas primeiras tiradas autopromocionais. Nascida em 1965, Flávia Castro é a filha mais velha do jornalista gaúcho Celso Castro e de Sandra Macedo, companheiros de luta armada no Partido Operário Comunista (POC), que escaparam do país no começo dos anos 1970 com a escalada da repressão.

Levando os dois filhos pequenos, Flávia e Joca, o casal ficou fora do país, em múltiplos endereços, por quase uma década, até a promulgação da anistia em 1979. Separaram-se pelo caminho e viveram novos amores, mas nunca perderam contato. Santiago, no Chile de Allende, e Paris, nos conturbados anos 70, representaram para eles, como para os exilados brasileiros em geral, os abrigos principais.

O retorno ao Brasil cobrou um preço mais alto de Celso. As dificuldades para a reinserção profissional devolveram-no a Porto Alegre, depois de uma passada pela São Paulo do nascente PT, cujo futuro promissor ele sacou de imediato. Em 1984, em meio a privações, Celso encontrou um fim trágico, numa mal explicada invasão (para assalto?) do apartamento de um veterano nazista.

A investigação de sua morte misteriosa, que alimentou por algum tempo a crônica policial gaúcha, é o gatilho para a real busca de Flávia. Desfazer as nuvens sobre aquela violenta despedida torna-se progressivamente menos importante diante da reconstituição da saga pessoal e familiar. Um filme, assim, sobre a vida, não sobre a morte.

É curioso comparar o documentário de estreia de Flávia com obras similares de duas outras filhas do exílio, exibidos em edições recentes do É Tudo Verdade. Ambas chilenas, Camila Guzmán Urzúa e Macarena Aguiló reconstruíram, respectivamente em "A Cortina de Açúcar" (2006) e "O Edifício dos Chilenos" (2010), suas experiências de infância de exiladas em Cuba.

Aproxima esses três filmes de formação o recurso generoso ao museu íntimo de cada realizadora, sob a forma de cartas, diários, fotos e filmes do acervo familiar. A escolha dos entrevistados marca a primeira diferença. Camila e Macarena se empenham no reencontro com as amizades do exílio; Flávia se concentra nas relações enraizadas no país que deixou.

"Diário de uma Busca" me parece mais complexo do que "A Cortina de Açúcar" e "O Edifício dos Chilenos" sobretudo ao assumir-se como um documentário em constante crise. Flávia vai além de explicitar os diversos estágios da produção. Discute as dúvidas e inquietações que acompanham o projeto.

Para tanto, são capitais alguns diálogos com seu irmão, Joca. Ele põe em xeque a identidade do documentário, ao problematizar o estatuto de sua participação e o foco autobiográfico escolhido pela irmã. Não hesita ainda em considerar "falho" o resultado de uma sequência que averigua a morte do pai, levando Flávia a precisar: "Não estou fazendo uma investigação policial. Estou fazendo um filme".

Há, assim, uma dimensão de reflexividade, subliminar ao título "Diário de uma Busca", que o aproxima do mais reflexivo dos documentários nacionais da última década, "Santiago", de João Moreira Salles. Documentar abertamente o processo documental é central para ambos. São obras que se esculpem à frente de nossos olhos, revelando-nos opções, equívocos, mudanças de rumo.

Para esse processo autorrevelatório, um instrumento recuperado por ambos os filmes é o da narração em primeira pessoa (João apenas escreveu a de "Santiago", confiando a leitura a seu irmão Fernando). Ele apenas se convenceu a usar um texto próprio ao topar com uma declaração do cineasta francês Chris Marker: "O uso da primeira pessoa num filme equivale a um ato de humildade. Tudo o que tenho a oferecer sou eu mesmo".

Flávia Castro seguiu-lhes o exemplo, interpretando e redigindo a belíssima narração de "Diário de uma Busca". Mais um estigma balança. Já era tempo.

* Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários.

Fonte: Fundação Maurício Grabois