Benito Vasquez: BBB, o Grande Irmão Bastardo
Anuncia-se melodicamente via áudio e imagem televisiva uma vinheta capaz de postar diante da tela cerca de 100 milhões de pessoas a escutar atentamente e a obedecer a todas as dicas e recados da voz uníssona que dali em diante conduz a atenção de todos.
Por Benito Vasquez, em quasemudo
Publicado 11/01/2012 12:06
Não, não estamos descrevendo algumas páginas do romance de George Orwell, 1984, em que o autor inglês lançou um dos personagens mais influentes e presentes na vida contemporânea, o Big Brother, que tudo vê e a todos assiste, e sim a abertura do programa televisivo de mesmo nome e efeito, sucesso mundial e que especialmente no Brasil, onde sua primeira edição foi ao ar em 2002, bateu todos os recordes de audiência e de participação na sua penúltima edição, realizada de 12 de janeiro a 30 de março de 2010. Foram 154.878.460 votos somente no último dia de programa, no famoso “paredão”.
Lançado em 1999 pelo holandês John De Mol e exportado para mais de 70 países, o Big Brother poder ser chamado de o grande representante da globalização cultural, já que, como espetáculo de televisão levou a mesma forma de entretenimento interativo (salvo peculiaridades locais) por onde foi produzido e elevou os reality shows a painel da vida moderna no novo milênio.
Mas por que tal afirmação pode ser feita com relativo conforto, gerar incômodo e mesmo assim ainda parecer pertinente? Quando o assunto é um programa de televisão assistido por milhões, com interpretações tão variadas, a resposta não pode ser taxativa ou definitiva. Precisa sim levar em conta o universo em que está inserida e, para procurar ser minimamente séria, deve entender que o sucesso do Big Brother Brasil não é um alienígena estranho ao convívio de todos nós.
Primeiro é preciso responder que não seria possível um programa e um fenômeno como esse em outra sociedade que não a da geografia globalizada e do império da tecnologia. Vivemos o tempo da imagem, do vídeo, da comunicação plena e constante, das mensagens curtas e publicitárias, do fragmento como regra. Temos o tempo e o espaço do trabalho como totalizantes, quer dizer, vivemos para trabalhar, e esse tempo é dividido em três refeições diárias sincronizadas com horários televisivos.
A televisão ocupa destaque na vida da imensa maioria do povo, ela não está mais apenas na sala, mas também na cabeceira do balcão da padaria, no ônibus, no trem do metrô, na sala de recepção, na sala de aula, e, como vislumbravam os filmes de ficção científica, na palma da mão. É como se ela viesse a ser na vida concreta o verdadeiro “ditador” do país Oceania, presente no romance de George Orwell.
A grande diferença é que no livro o autor profetizava uma denúncia contra as sociedades totalitárias, chefiadas por governos burocráticos e antiliberais a regrar os mínimos passos de seus habitantes, enquanto na atualidade ocorre exatamente o contrário: as telas de TV estão ligadas, a ditar a moda do vestuário, a comida que deve ser ingerida, os passeios a serem feitos, os perfis morais e físicos a serem quistos ou rejeitados e os valores universais do sucesso e do consumo, na sociedade dita livre, liberal, democrática e guiada pelo estado de direito. O hábito e o pensamento divergentes desse receituário, transmitido via satélite e por fibras ópticas, vê-se entregue aos olhos incautos e sentenciosos do “grande irmão” virtual.
É nessa vigilância despercebida e permanente, fragmentada na imagem e no espetáculo, e totalizada no trabalho e no consumo, que vivemos a desgostar e sentir um constante mal estar, como se mesmo cercados de tecnologias diversas e facilidades múltiplas faltasse algo que preenchesse um vazio que não sabemos de onde vêm.
Ao final de cada compra realizada desmorona-se um êxtase sem sustentação e temos a necessidade de recuperar esse falso êxtase que identificamos como bem estar. Ou voltamos a comprar (e isso só faz quem está no topo da pirâmide financeira) ou buscamos fuga na espetacularização de nossa vida banal, de nossos defeitos, dos nossos hábitos mundanos. Quando eles assumem um papel de destaque na tela da televisão passamos a querê-lo ainda mais, deixamos de enxergar os seus limites e voltamos à imagem do espetáculo como representação verdadeira de nossa vida.
O programa apresentado por Pedro Bial na Rede Globo de televisão abarca esses elementos e os inflaciona, pois apresenta a fama como possível a “qualquer” telespectador. Não se trata de maniqueísmos. Em última instância é o telespectador que acompanha o Big Brother Brasil quem possui critérios, julgamentos e decide sobre o desenrolar do programa, sobre qual candidato deve pender a permanência ou não etc.
O sucesso do programa está em sua resposta como interatividade e reflexo do sucesso tão propagado e buscado nos dias de hoje. Ele é resultado de uma experiência científica (sua inspiração veio de uma experiência norte-americana chamada Biosfera 2) que todos querem ver: a experiência de como um cidadão comum chega à fama repentina. E é exatamente esse o desejo da maioria dos cidadãos comuns que assistem televisão e transitam pelas cidades.
O BBB é um sucesso também (e por que não dizer, principalmente) de marketing e negócios. Suas cotas de propaganda chegam a ser vendidas com seis meses de antecedência e a exemplo do que acontece com a totalização da vida em trabalho e consumo, durante todo o tempo do programa somos bombardeados com a publicidade de produtos variados, desde o creme hidratante usado pela participante sensual até o carro que vem a ser o prêmio de uma “prova do líder”. De acordo com o jornalista Daniel Castro, só com o BBB-9 a Rede Globo de televisão faturou R$ 110,00 milhões.
Mesmo buscando entender e explicar as condicionantes em que o BBB está inserido, seu sucesso não pode ser assimilado sem mais elementos e respostas. Uma delas está na explicação proferida por Maurício Custódio Serafim quando fala da baixa capacidade de apreensão do leitor brasileiro: “Uma pesquisa recente divulgada em jornais denunciou que apenas 26% da população brasileira é capaz de ler um texto simples e interpretá-lo. Em outras palavras, de cada 100 brasileiros, 74 não conseguem compreender sua própria língua de forma escrita. E penso que em relação a outras formas de linguagem, como os filmes e a música, não fogem muito a esses números. Levando isso em conta e mais o pressuposto de que não gostamos daquilo que não entendemos (por exemplo, a rejeição à matemática é proveniente do não entendimento dessa disciplina), surge minha sugestão de que a maioria da população não assiste programas de qualidade porque não consegue entendê-los e, conseqüentemente, acaba não gostando. Big Brother, Casa dos Artistas e os programas de auditório não há necessidade de se entender. São de assimilação imediata.”
Uma consideração do jornalista Eugênio Bucci elucida um pouco mais um detalhe que até agora passou despercebido: mesmo sendo um programa em que a vida banal e situações do cotidiano estão à prova, ninguém pode viver sem ficção. Nesse momento a produção do programa entra em cena, editando imagens, construindo enredos, promovendo o mocinho e o bandido, invertendo os papéis dos mesmos e até mesmo escrevendo mini novelas de “mentirinha” envolvendo dois ou mais participantes, como por exemplo, na décima edição, envolvendo o vencedor Marcelo Dourado e a baiana Anamara, com o título de “Algemas da Paixão – La Maroquita e El Douradon”.
O brilho dourado do sucesso
Nas suas dez edições o programa foi se utilizando de várias inovações, surpresas e provas diferentes. Desde as já citadas “novelinhas de mentira”, passando pela presença dos brothers em atividades como o carnaval (em camarotes repletos de artistas), com a presença de tipos diferentes dos que majoritariamente participam do programa (na edição número nove participaram dois idosos), no aumento da premiação de R$ 500,00 mil para R$ 1.500.000,00 e na massiva presença de estrelas da TV e do noticiário a desfilar pela casa em brincadeiras e atividades de propaganda, aproximando ainda mais o cidadão comum do estrelato (o jogador Ronaldo esteve por lá no BBB-10 promovendo uma marca de refrigerante).
Talvez a mais ousada tenha sido exatamente a que possibilitou a vitória do gaúcho Marcelo Dourado no penúltimo BBB: a participação de brothers que já haviam participado de outras edições. Foi a consagração do anônimo como celebridade. Ficou quase impossível não associar Dourado, como passou a ser chamado, ao candidato oficial do programa, aquele que estaria ali exatamente como prova de um experimento de sucesso e volta por cima. Pois foi exatamente assim que o vencedor conseguiu vencer, associado à imagem de renegado que regenerou; do prepotente que passou a ser humilde; a do lutador incansável em busca do sucesso pessoal. Não foi possível também dissociar a edição de imagens já comentada como forte aliada do jogador. Estava em jogo principalmente a capacidade do Big Brother em ditar os rumos do programa.
Se já não bastasse todo o envolvimento do vencedor com as mudanças no script, sua figura suscitou muitas polêmicas, reclamações e embaraços aos produtores do BBB. Marcelo Dourado é lutador de judô e já esteve envolvido numa prisão por posse de drogas em 2005, tem uma controversa suástica desenhada na roupa de um samurai tatuado nas costas (um dos participantes da mesma edição era judeu) e demonstrou abertamente seu comportamento homofóbico em relação a outros participantes assumidamente gays, como Dicésar, Serginho e à lésbica Morango. Em relação à última controvérsia, ele ainda foi mais longe, declarando em conversa com outros brothers ser a AIDS uma doença transmitida por homossexuais, o que obrigou a Rede Globo a divulgar nota do Ministério Público esclarecendo as formas de contágio, isso no decorrer do horário do reality show.
Sua vitória sublinha ainda mais os traços em comum que o Big Brother Brasil tem com aqueles que o assistem. Não que todos sejam adoradores da suástica, homofóbicos, brucutus ou coisa do tipo. Mas porque o recente milionário desvela outra característica das mais confusas dos nossos tempos: moralmente conservador e economicamente liberal. São tempos sem nenhuma identidade política ou de idéias, em que parece que usar um gorro do Corinthians não tem nenhuma dicotomia em usar uma camiseta do Palmeiras. É ser o país que possui a maior Parada Gay do mundo e o mesmo que dá um milhão e meio de reais a um sujeito que associa opção sexual à doença mais mortal da nossa era (recordando, foram 154.878.460 de votos na final do BBB-10). Até o próximo paredão.