Aurélio Santos: Trabalho na América mínima

Às cinco da manhã, Neide sentava-se num banco de jardim e esperava. Contou-me que era assim todos os dias, desde que há cinco anos deixou o Brasil. Quando tinha sorte, uma camionete branca chegava, a porta traseira abria-se e Neide sentava-se numa grade de cerveja.

Por Aurélio Santos, no Avante!

À sua volta, apertados uns contra os outros, mais cinco, seis, às vezes dez trabalhadores. Homens e mulheres de todas as idades, mexicanos, guatemaltecos, hondurenhos: os trabalhadores à jorna do século 21.

Os americanos chamam-lhes "Temp", os temporários: clientes de empresas de trabalho temporário subcontratados por empresas também elas subcontratadas, para fazer trabalhos subvalorizados em condições sub-humanas.

Falta clarificar que isto não se passa nem no Sul da Ásia nem no Sul da América. Pelo contrário, tem lugar bem ao Norte, na vida quotidiana do país dito mais rico do mundo, os EUA. Mais precisamente, estamos no McDonalds de Hudson, Massachusetts. São dez da noite e o restaurante está praticamente vazio. Neide, mineira de sorriso fácil e conversa solta, aproveita para desenferrujar o português e brincar com o meu sotaque. Conta-me que começou a trabalhar aqui há apenas um mês. "Tudo é melhor do que ser temporária" resume. Quando fala desses cinco anos, a alegria de Neide esvai-se.

Quando era temporária, Neide fazia tudo. Um dia preparava pizzas pré-congeladas, outro fazia limpezas num centro comercial. Uma manhã descarregava caminhões de mercadorias, outra tarde apanhava maçãs nas fazendas de Massachusetts. O trabalho era irregular e árduo, mas nunca oito horas, para dispensar os patrões de qualquer responsabilidade associada ao "temporáriao inteiro". O pior e mais humilhante era quando lhe pagavam a jornada em tiquetes de desconto ou em crédito nos supermercados Walmart. Outras vezes, depositavam-lhe o salário num cartão de crédito que a obrigavam a abrir para o efeito.

Salários de miséria

Mas esses dias acabaram, declara orgulhosa, enquanto aponta para o grande M amarelo que tem bordado no boné. Ainda não tem horário fixo, mas trabalha todos os dias: Neide não é mais uma temporáriaorária. O salário, esse, continua igual. "Só não nos pagam menos porque a lei não deixa" escarnece.

Neide está entre quatro milhões de trabalhadores que recebem o salário mínimo: US$ 7,25 por hora a nível federal, US$ 8 por hora em Massachusetts. Entre 1968 e 2012 os lucros dos 1% mais ricos dos EUA aumentaram 115%, enquanto o valor do salário mínimo real caiu mais de 31%. Se tivesse acompanhado o custo de vida ao longo dos últimos 40 anos, o salário mínimo federal seria hoje US$ 10,52 por hora. Para um trabalhador viver acima do limiar da pobreza, teria de ganhar US$ 12,5 por hora, o que condena Neide e 16% dos estadunidenses à pobreza.

Vinte estados gozam de salários mínimos acima do nível federal, mas em nenhum o salário mínimo consegue suportar a renda de um apartamento de dois quartos ou sustentar dois filhos. E como Neide, dois terços dos trabalhadores que ganham o salário mínimo são mulheres.

A crise do capitalismo foi um maná para as multinacionais da comida rápida. Só em 2012, a McDonalds atingiu os US$ 5,5 bilhões de dólares em lucro e a Yum! Brands (KFC, Pizza Hut, Taco Bell, etc.) ultrapassou os US$ 1,4 bilhão. Apesar dos resultados vantajosos, 60% dos 19 milhões de trabalhadores da restauração vivem na pobreza.

Luta, uma dignidade contagiosa

Há um ano, os trabalhadores dos restaurantes de comida rápida lançaram um movimento que reclama a subida do salário mínimo para US$ 15 por hora e o direito a se organizarem em sindicatos. Os trabalhadores de Nova York organizaram uma greve de um dia e marcharam sobre Times Square. Protestos semelhantes alastraram a Chicago, Detroit, St. Louis, Milkwaukee, Washington e, mais recentemente, Seattle. Nesta última cidade, a greve foi tão expressiva que os patrões se viram forçados a contratar centenas de fura-greves que, ironia das ironias, entraram também em greve.

"Aqui a gente não entrou nisso por medo", confessou-me a Neide. "A gente pensou que fazendo greve éramos todos despedidos. Que não adiantava. Mas depois, vimos o que deu em Nova York, no que o Obama falou…" Em Nova York, os trabalhadores conseguiram uma pequena concessão: em dezembro de 2013 o salário mínimo vai subir de US$ 7,25 para US$ 8 por hora e o próprio Obama apelou ao Congresso para aumentar o salário mínimo federal para US$ 9 por hora. "Se calhar, a gente tinha que fazer como lá em Nova York." Admite: "Não sei… fazer greve, protestar, dizer que somos gente. Nesse rio, só os peixes mortos é que nadam a favor da corrente".

Fonte: Avante!, jornal do Partido Comunista Português