Entrevista – Jorge Mautner: O filho do holocausto
Em entrevista publicada nesta segunda-feira (08) mo jornal O Povo, Jorge Mautner fala sobre política, drogas e o amálgama que constitui o Brasil. “Ou o mundo se brazilifica, ou se tornará nazista”, dispara. Leia a seguir a íntegra da matéria:
Publicado 08/07/2013 10:04 | Editado 04/03/2020 16:28
Fernando Pessoa, Charles Baudelaire, Rabindranath Tagore, Stefan Zweig, Jesus de Nazaré. São muitos os pensadores, políticos, filósofos, cientistas, criadores e criaturas que habitam a cabeça de Jorge Henrique Mautner. Figura proeminente da cultura brasileira, ele é também um pouco de cada uma dessas personalidades que entraram na sua vida através de livros, filmes, conversas, músicas e outros caminhos.
Ao longo de 80 minutos de entrevista por telefone, o carioca, que chegou ao Brasil quando sua família fugia do terror da II Guerra, traz à tona esses e muitos outros nomes, revelando a intensidade de sua experiência como leitor e filósofo. Definindo-se simplesmente como curioso, ele está longe de querer fazer do seu conhecimento em tantas áreas um instrumento de exibicionismo, e até ri quando percebe que a resposta está indo por um caminho muito longo.
Nessa conversa, todo assunto foi permitido. Das recentes manifestações políticas que tomaram conta do Brasil até o superado vício em cocaína. Tendo como ponto de partida a cinebiografia O Filho do Holocausto, dirigida por Pedro Bial e Heitor D’Alincourt e recentemente lançada em DVD, Mautner fala sobre alegrias e tristezas sempre com a mesma voz tranquila.
No entanto, nada o empolga mais do que tratar de uma certa amálgama que constitui a cultura brasileira. Tema de tantas canções e livros que escreveu, bem como palestras e aulas que ministrou, para Mautner a multiplicidade de conhecimentos do País resulta numa unidade que só pode ser vista por aqui. Ainda mais agora, com o povo nas ruas. “É uma verdadeira erupção da amálgama em plenitude do século XXI”, ratifica.
Como foi ver sua vida na tela de cinema?
Em primeiro lugar, o Heitor D’Alincourt e o Pedro Bial (diretores de O filho do Holocausto) fizeram um filme extraordinário, por que, além de ser um documentário, ele também é um filme em si. Tanto que, quando mostraram ele no festival em Londres (4º Brazilian Film), eles não acreditavam que fosse documentário. Para eles, era uma história de ficção, que começa no candomblé. É só pra dizer que o filme, além de ser um documentário fiel, por que eles fizeram pesquisa durante mais de cinco anos, além desse rigor, tem essa qualidade que foi dada por eles. E tudo é inspirado num livro meu, que é O filho do holocausto (Agir, 2006), mas eles entenderam pra frente. Reforçaram toda aquela história inicial, que é minha motivação.
Que motivação é essa?
É a exaltação do Brasil, a atenção contra qualquer novo nazismo ou neo-nazismo e a proclamação máxima que o Brasil está vivendo agora. Inclusive, me pediram e eu fiz no ano passado o novo Hino da Independência. Lá eu dizia e digo também que o mundo não bebe água, não come, não respira sem o Brasil. E o mais importante disso é a amálgama do povo brasileiro. Eu cito sempre o José Bonifácio de Andrade e Silva (conhecido como “Patriarca da Independência” – 1763/ 1838), que, em 1823, definiu o Brasil dizendo “diferente de outros povos e culturas, nós somos a amálgama. Esta amálgama tão difícil de ser feita”. E, ao mesmo tempo, outro trilho fundamental nosso é o (diplomata e político pernambucano) Joaquim Nabuco (1849 – 1910), com a segunda abolição. Isso repercutiu em plenitude com o Tropicalismo.
O filme começa com imagens da Segunda Guerra, do holocausto, enquanto você canta “Lágrimas negras”. O que você sente quando vê essas imagens?
Toda hora eu tenho um novo estremecimento. Isso aí sempre. E mais ainda. A importância de nunca mais existir isso é fundamental. Inclusive, por exemplo, a maravilha dessas manifestações democráticas, toda essa liberdade, o mundo todo atrás dos direitos humanos, isso tudo, acho que é uma reação e foi fruto de todo o horror desses campos de concentração e do horror de toda a II Guerra Mundial. Mas, principalmente por conta dos campos de concentração, por que ali se tentou criar o ser humano que não seguia os direitos humanos e as palavras de Jesus de Nazaré. Porque Jesus de Nazaré inventou o romantismo, os direitos humanos, inclusive a desobediência civil pacifica e o pacificante, inventou o socialismo e, através do livre arbítrio, inventou o liberalismo. E nunca mais o mundo foi o mesmo. E o Brasil, com essa amálgama, é o ápice desse processo. Por isso, ou o mundo se brazilifica, ou se tornará nazista. Aqui, por causa da história original nossa, ela criou uma cultura inédita que é o futuro da humanidade. Não tenho dúvida disso.
Queria que você falasse mais dessa amálgama e dessa cultura brasileira que você exalta.
No filme tem até a música “Outros viram”, com o Gil. Ele fez uma versão em inglês e viajou para Washington. Ali os jornalistas se debruçaram espantados, porque essa música exalta isso que acabei de falar. Falo do Rabindranath Tagore, filósofo da Índia, que disse que a futura civilização do amor aparecerá no Brasil. Cito também Stefan Zweig. No meio da letra, tem um episódio muito interessante sobre o presidente americano Theodore Roosevelt, porque, depois da Guerra da Secessão (1861 – 1865), durante quatro anos teve uma visão de libertação de escravos, mas depois veio a Ku Klux Klan. Inclusive, o primeiro grande filme dos EUA, O nascimento de uma nação (D. W. Griffith, 1915), é um hino a favor da Ku Klux Klan. A partir daí, eles tomaram o poder até, quase, a eleição do Obama. Mas o Theodore Roosevelt era contra a Ku Klux Klan e tinha uma ideia muito revolucionária. Quando ele veio pra cá, ele conhece a Amazônia, o Patanal. Mas o que mais enlouquece ele é a amálgama e ele disse “essa é a única solução pra continuação dos EUA. E voltou e foi lá pro congresso propor essa amálgama, que, claro, foi recusada. Isso é José Bonifácio, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Dolores Duran, Vinicius de Moraes, é toda a história do Brasil. E, principalmente, os índios tupi-guaranis.
Por quê?
Diferente de todos os outros povos e culturas… Por exemplo, o estranho, o desconhecido, o forasteiro, o cara diferente é pra ser estraçalhado, impedido de entrar na tua tribo. Todas as histórias de todos os povos e culturas do planeta têm essa atitude, menos os tupis-guaranis. Olha que impressionante. Como eles têm o mito de que tudo é mistério, e o mistério criou os índios tupis-guaranis pra que eles fossem desvendando o mistério. Então, ao contrário de tudo que é diferente ser estraçalhado, é pra ser adorado e amado. Quando chegaram os brancos com as caravelas, foi direto assim. Isso acontece o tempo todo. No final na década de 1960, lá em São Paulo, por conta da imigração japonesa, a umbanda de lá criou o orixá samurai. A adaptação é imediata.
Queria que você me falasse mais da sua relação com o candomblé.
Meus pais chegaram refugiados do Holocausto e, um mês depois, eu nasci. Minha mãe ficou muito traumatizada por conta de tudo que tinha vivido, porque minha irmã não veio junto, e eu fiquei até os sete anos nas mãos da minha babá. E, pelo menos duas ou três vezes por semana, ela ia pro candomblé e me levava. Ela chegava lá, trocava de roupa e surgia como uma rainha. Me botava no colo, comaçava os trabalhos, os tambores tocando e ela dizia: “seus pais vieram de um lugar de gente muito cruel, muito ruim, mas aqui você vai encontrar seus amigos”. E eu adormecia com ela passando as mãos nos meus cabelos e acordava na camarinha. Aí vinham as meninas e me davam comida na boca, faziam festa. Isso determinou todo o resto da minha poesia, do meu trabalho. Além disso, o candomblé é de uma sofisticação incrível. Tem um jogo de búzios com uma mão só, que tem o dado do acaso, do cálculo da incerteza do Heisenberg (físico alemão). Tem mais ainda. Sabe o I-ching? Na verdade é o Ifá, igualzinho jogado com varetas, e é anterior ao chinês. O candomblé tem todo o conhecimento do mundo quântico, da quarta dimensão, da simultaneidade que as coisas te dão. Tudo está em linguagem poética, mitológica e clarissimamente filosófica.
Você já me citou o candomblé, a História, a filosofia, a física. O que mais ajudou a compor seu conhecimento, sua literatura, sua música?
Primeiro, toda a música popular brasileira e toda a literatura. Desde criança, eu ouço todos os ritmos. E sou apaixonado. No meu livro, Deus da chuva e da morte, eu tenho letras de música caipira, que a turma não gostava muito, canções do nordeste, repentes. Mas é difícil eu te dizer quem mais me inspirou, porque é muito tempo e conheço muita coisa, sou muito curioso. E isso é maravilhoso. Só no Nordeste, são muitos vulcões. Tem o tambor de crioula, o xote, o miudinho, o maracatu, cirandas. É tanta coisa.
Nos anos 70, você fazia parte de um grupo de compositores que ganhou o apelido de “malditos”. Era um grupo de prestígio e ideias modernas, mas de pouco apelo comercial. Ser ou ter sido um maldito é bom ou ruim?
Ser maldito é uma grande honraria. Significava que você estava contra toda uma moral de hipocrisia, toda uma visão distorcida. Vê-se que, ao contrário de maldito, talvez sejam os mais benditos. Aliás, está naquela parábola. Lembra o filho pródigo? Mais vale aquela ovelha que se separou do rebanho e mais tarde voltou a ele, do que aquela que sempre pertenceu ao rebanho. Então, tu que eles chamavam de maldito, era verdade e libertário. Nós fazíamos de propósito, não pra chocar, mas pra informar: “olha só, a verdade é essa aqui. você tem que considerar também isso aqui”. É como se fosse a importância da minoria. Não existe democracia, sem minoria. Assim como não existe alegria que não venha do coração, não existe democracia sem oposição. Mas veja só, Dostoiévski (escritor russo) era um maldito, Augusto dos Anjos (poeta brasileiro), Baudelaire (poeta francês) e por aí vai.
Mas é curioso perceber que esses ditos malditos fazem muito a cabeça de uma nova geração de cantores e compositores brasileiros. No Filho do Holocausto, você, inclusive, está ao lado de uma banda de jovens músicos.
É exatamente isso que você falou. A internet revelou, e os tempos são esses de liberdade, simultaneidade. Tudo isso e vem mais ainda, porque a criação não para.
Você acompanha essa nova geração de artistas? Sei que você é o padrinho da Orquestra Imperial.
Grande Orquestra Imperial! Acompanho sim. Não só pelo meu portal, onde recebo muita coisa. Estou o tempo todo atuando em várias áreas. Palestras com participação da garotada. Desde muito tempo faço isso. Desde a época de só escritor, faço isso. Faço prefácios pra novos poetas que surgiram. Faço muita atividade social e cultural sob esse ponto de vista. Meu portal está aberto pra todos os produtos que recebo. Só no Pontos de Cultura (projeto do Ministério da Cultura), eu e o Nelson Jacobina viajamos cinco anos. Só pra você ver, eu e o Nelson lançamos o Itamar Assumpção (compositor paulista, 1949 – 2003). Ele era músico nosso. De repente, a gente viu ele tocando e obrigamos ele a cantar as músicas. Lulu Santos começou com a gente, Roberto de Carvalho.
Impossível falar da sua trajetória sem falar em Nelson Jacobina (1953 – 2012). Como era essa parceria?
O Nelson trabalhou comigo 40 anos, dia e noite, não só na música. Era também toda a militância política o tempo todo. De todo tipo. Desde a redemocratização no regime Militar, depois e durante. Nossa participação foi muito intensa. E ele morreu assim, quatro anos de metástase terrível do câncer (de pulmão) e nem o Metadone funcionava para aliviar a dor, nem uma pílula especial que vinha dos EUA. E ele foi heroico. O (médico) Dráuzio Varela disse no primeiro mês que era impossível, que ele estava tecnicamente morto, que isso era um milagre. Mas era um milagre impressionante dos neurônios. As dores passavam quando ele entrava no palco ou quando ele começava a participar das reuniões. Olha que coisa impressionante. No meio das dores, ele ainda dava risada.
Como vocês se conheceram e como é, agora, fazer música sem ele?
Vou começar pela última. A ausência dele é imensa, mas, ao mesmo tempo, a presença é maior ainda. Porque ele tá sempre com a gente, tocando. É claro que é insubstituível essa sensação. Ela só é sublimada tocando as músicas dele, lembrando dele o tempo todo. Eu o conheci quando voltei do exílio em 1972. Não sei quem me recomendou, mas eu fui fazer uma palestra na Escola de Música Villa-Lobos (RJ). Eu cheguei, falei sobre Nietzsche (filósofo alemão), Dionísio (deus grego), o candomblé. E o Nelson já tinha lido o Deus da Chuva e da Morte, e ele estava lá. Eu estava com músicas, tinha uma proposta do Midani (produtor fonográfico) e perguntei pra ele: “quer uma carreira artística?”. E ele: “claro”. Ele inclusive está no meu disco Pra iluminar a cidade, 1972. Ele está lá como Carneirinho. Ele já está participando, fez todos os arranjos, toca todas as músicas.
No filme, você aborda sua curta relação com as bebidas alcoólicas. Para alguém que viveu com tanta intensidade os anos 60/70, como foi sua relação com outras drogas?
Teve um período muito terrível, que ressuscitei só por causa dos Narcóticos Anônimos. Minha filha Amora me levou e o Denis Carvalho. E foi por isso que saí desse inferno. Começou com cocaína. Então foi um terror. Tem músicas inclusive. No disco Eu não peço desculpa (2002), a música “Coisa assassina” é só sobre isso. Outra mais recente, que também é muito sobre isso, chama-se “Os pais”. E tem mais uma, que o Nelson até exigia que eu cantasse até o fim, que trata do tema da morte. É “Morre-se assim”. Bem claro, né? O John Lennon, inclusive, disse assim: “o álcool e as drogas me fizeram voar e, depois, me tiraram o céu”.
Suas músicas, sejam os rocks, sambas, marchas ou bossas, tem duas características bem marcantes. Primeiro é uma complexidade poética, que parece simples. Outra é a alegria. É o caso, por exemplo, do “Rock da barata”, que você cantou no Phono 73.
Ah! Eu adoro aquela ali. É de um humor incrível. As crianças gostam muito. Permite o surrealismo muito palpável. Foi um fato real, você sabia? Eu fiquei assim, piso não piso. Decidi não pisar. A Ruth (Mendes, esposa) me deu uma bronca. Aquilo ficou na cabeça e eu botei na letra. Lembrei de um livro sobre o jainismo, aquela seita da Índia, onde os monges vão com um lenço na boca e uma vassoura na frente, pra não engolir nenhum mosquito. Porque toda vida é sagrada. E eu tava influenciado e não queria pisar na barata, então.
Você falou que viajou muito pelos Pontos de Cultura. O que você tem achado da gestão da Cultura durante a gestão do PT?
Acho que tudo que o Gilberto Gil fez está totalmente mais do que correto. Metade da importância do Brasil, além da que o Lula irradiou, veio da irradiação do Ministério da Cultura. O mundo se apercebeu da profundidade da nossa cultura. Já sabiam pela Bossa Nova. Anteriormente pela Carmen Miranda e pelo futebol. Agora a cultura foi o ministério do Gil no mundo todo. Eu sei que os Pontos de Cultura são muitos e têm muitas solicitações para mais, e que tinham problemas, parece, de relatório. Como é muito supervisionado, com toda a razão, já que é um dinheiro público, cada Ponto de Cultura tem que fazer um relatório quase que semanal. E isso muitas vezes não acontece. E isso dá oportunidade para serem interrompidos. Fora que no ministério da Ana de Holanda houve uma interrupção desse dinheiro. O único estado que continuou a todo vapor foi Pernambuco. Agora a Marta Suplicy, me parece que ela dá muita importância. Acho que isso tudo vai continuar. Isso é uma demanda essencial.
Quando você olha pra trás e vê sua obra – discos, livros, cinema, shows, etc. –, o quê você em comum a toda essa produção?
E você ainda coloca por cima minha esposa comigo, mais a Amora, mais minha netinha, é a felicidade total. Eu sinto uma coisa assim que eu comecei na alegria do candomblé, aos sete anos. Agora então, eu nem mereço tanta felicidade. É impressionante.
Fonte: O Povo