Médicos, Brasileiros, Estrangeiros, tristeza, vergonha e raiva.*
Ao abrir um sítio virtual, antes das 08h de um dia comum, deparo-me com uma matéria abordando a chegada de médicos estrangeiros ao Brasil – assunto do momento.
Publicado 28/08/2013 14:18 | Editado 04/03/2020 17:07

“[…] Depois de espernearem contra a vinda de médicos cubanos e debocharem de suas declarações solidárias e humanistas, agora é a vez dos nossos brancos de branco saírem do Facebook pra protestar nas ruas.
Em Fortaleza, mais de 50 bem nascidos doutores da alegria se posicionaram em frente à Escola de Saúde Pública do Ceará para recepcionar os cubanos contratados pelo programa Mais Médicos. Ao saírem do curso, os estrangeiros foram cercados e hostilizados com gritos de: “ES-CRA-VOS! ES-CRA-VOS! ES-CRA-VOS!" (assista ao vídeo). Senti falta de outro grito de guerra médico entoado recentemente: "Somos ricos, somos cultos, fora imbecis corruptos!"
É a hospitalidade Padrão Médico-Brasileiro!
Nossos doutores não estão sozinhos. A amiga internauta Micheline, por exemplo, abriu o coração:
Esses lutadores, além de representarem o alto grau de politização do jovem rico brasileiro, mostram que o gigante acordou e não está de brincadeira.
Nosso Golias levantou do berço esplêndido, asseou seus cabelos lisos e louros, vestiu o jaleco e chamou David pra briga. […]”
Penso que seria muita ingenuidade acreditar que o foco da questão está, como ouvi recentemente, na exigência ou não da revalidação dos diplomas. Até porque dessa questão bem específica não se falava quando do início dos protestos acalorados contra a vinda de médicos estrangeiros e, mais ainda, cubanos – afinal, é destes que mais se fala.
Quem faz comentários como o que se vê na matéria não o faz por conta de um diploma não revalidado. Faria-os mesmo contra Pós Doutores com revalidações em todas as universidades do nosso Brasilzão verde e amarelo, contanto que tais profissionais fossem pretos, do cabelo pixaim e, obviamente, não viessem de países ricos.
Quero que, nas cidades do interior, mas do interior do interior do interior, naqueles municípios que a gente nem sabe que existem, onde os médicos brasileiros não querem ir, justamente nessas localidades onde há crianças morrendo com diarreia, quero que aí cheguem médicos até de Plutão, contanto que sejam médicos, contanto que curem nossa população. Ora, que paradoxo deve representar uma nação que valoriza seus médicos, mas que deixa sua população morrer com doenças de cura simples, não é mesmo?
Trazer profissionais e não exigir a revalidação dos diplomas pode ferir o princípio da isonomia. Mas essa revalidação é necessária para que médicos estrangeiros tenham permissão para atuar em qualquer lugar do Brasil, por tempo indeterminado, sendo que não foi para isso que foram os profissionais em questão foram convocados, mas, sim, para atuar em áreas específicas, durante a vigência do programa Mais Médicos. Ou seja, o foco da questão, sem dúvida alguma, não é esse. Não tem sido esse. Ver piadinhas com sugestões de bata onde se lê "Fulana de Tal – Médica Brasileira" é só um exemplo disso. O comentário que se lê na matéria transcrita é outro exemplo. As vaias aos médicos que chegam são outro exemplo. Os gritos de "Escravos! Escravos!" são outro exemplo. Será que toda essa campanha contra os médicos estrangeiros, em especial aos cubanos – repita-se, de quem se ouve mais falar -, tem como razão única, ou principal, a questão da não exigência da revalidação dos diplomas?
Merece crítica preconceito de toda ordem. E nós, em algum momento da vida, ou sofremos ou iremos sofrer com isso, sendo vítimas desse sentimento, que não se explica, que não se justifica. Porém, o que está acontecendo vai além de um preconceito pontual. É pior, porque é mais escrachado e naturalizado como bandeira de protesto de uma categoria – categoria esta que, historicamente, em um país colonizado como o nosso, é, em sua imensa, esmagadora e indiscutível maioria, formada por pessoas brancas e de classe média, mesmo porque é bem sabido que para se cursar uma faculdade de medicina, durante muitas dezenas de anos e atualmente, foi e é preciso ter nascido bem e ter estudado em bons colégios, pois não se trata de um curso barato e de acesso fácil. E é mesmo para ser difícil, para que apenas os mais preparados tornem-se os que cuidarão de nossas vidas. Mas quem possui um mínimo de observação de mundo sabe que o que diferencia quem entra e quem sai dos cursos de medicina no nosso país é o dinheiro que se tem para preparar-se, desde o jardim na infância, para ocupar consultórios, postos de saúde e hospitais.
Essa lógica que descrevo com tristeza gera o problema que se vivencia: um país imenso, cheio de médicos das mais diversas especialidades, os quais, em sua maioria, não aceitam cuidar da população mais necessitada, trabalhando em condições inóspitas – afinal, é nessas condições que vivem seus pacientes em potencial. Por isso penso, com vergonha, com tristeza e com um pouco de raiva, que esse protesto não é por uma causa nobre.
Respeito os médicos que estão nadando contra essa corrente de preconceito e de intolerância, os que têm visão classista de sua categoria e os que se dispõem a promover a integração dos colegas que acabam de chegar a nossas terras.
Quero ter a grandeza de espírito e a dignidade que falta em quem ofende seus irmãos de continente por uma justificativa vazia. Quero ter a grandeza e a dignidade de quem, mesmo não sendo rico, trabalha por prazer. Quero uma sociedade em que não seja absurdo dizer o que digo, na qual a lógica de se trabalhar apenas por dinheiro e por status seja vista como absurda, na qual as pessoas não sejam vaiadas por serem solidárias.