Ran Greenstein: Se não é apartheid, o que é o regime de Israel?

Já há alguns anos, textos de opinião e artigos na mídia sul-africana e israelense têm mostrado confusão sobre o significado da comparação entre Israel e a África do Sul do apartheid. Como podemos organizar a bagunça conceitual que aflige os debates sobre o assunto?

Por Ran Greenstein*, na +972 Magazine

Colonos judeus na Cisjordânia - Reuters

Primeiro, examinemos o significado de apartheid. O tempo define um regime baseado em raças, de dominação política e marginalização social que governou a África do Sul entre 1948 e 1994.

Junto com este significado, outra definição surgiu no direito internacional, tirando lições do exemplo sul-africano, mas gradualmente afastando-se dele. Com a queda do regime de apartheid, em 1994, seu significado legal tomou um passo decisivo de distância das realidades sul-africanas.

O estatuto de 2002 do Tribunal Penal Internacional não contém referências à África do Sul, e considera apartheid “um regime institucionalizado de opressão sistemática e dominação de um grupo racial sobre outro grupo racial”.

Precisamos também ter em mente que a Convenção Internacional de 1965, sobre a eliminação da discriminação racial, estende o termo para cobrir “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor, descendência, ou origem nacional ou étnica”. Em outras palavras, não se restringe à “raça”, no sentido comum, que invoca diferenças biológicas reais ou imaginárias em sua definição.

Enquanto o apartheid continua associado, em nossas mentes, com suas origens sul-africanas, legalmente ele não tem relação, necessariamente, com a África do Sul. Não precisamos encontrar práticas idênticas àquelas prevalecentes na África do Sul pré-1994 para determinar se existe apartheid em outros lugares. A questão central é a identificação de um regime que pratica opressão sistemática e dominação de um grupo sobre o outro. Como, então, isso se aplica a Israel?

Para responder a isso, precisamos esclarecer outro conceito: Israel. Enquanto usualmente visto estabelecido dentro de suas fronteiras pré-1967 [quando passou a ocupar territórios árabes, a partir da Guerra dos Seis Dias], o regime israelense exercita controle sobre os palestinos nos territórios ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.

Durante os últimos 46 anos, todos os residentes dentro da Grande Israel têm vivido sob o mesmo regime, que se afirma como a única autoridade política e militar legítima. O Estado controla o território entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, governando mais de oito milhões de cidadãos portadores de direitos (75% deles são judeus) e quatro milhões de sujeitos palestinos a quem são negados direitos civis e políticos.

Para completar o quadro, milhões de refugiados palestinos (que nasceram no território ou descendentes diretos de pessoas que nasceram ali) não podem sequer pisar em sua terra natal, que dirá determinar seu futuro político como cidadãos.

Como a noção de apartheid é relevante para esta realidade?

O regime israelense é baseado em uma distinção étnica/religiosa entre os de casa, judeus, e os estranhos, palestinos. Ele expande a cidadania para além de seus territórios, potencialmente, a todos os judeus, sem importar as suas ligações ao país, e contrai a cidadania dentro dele: palestinos nos territórios ocupados e refugiados fora deles não têm cidadania e não podem se tornar cidadãos israelenses.

O regime combina modos diferentes de governo: autoridade civil com instituições democráticas dentro da Linha Verde (fronteiras pré-1967), e autoridade militar para além dela. Em tempos de crises, o modo militar de governo se esparrama para além da linha e se aplica aos palestinos cidadãos em Israel. Em todo momento, o modo civil de governo se esparrama para além da linha e se aplica aos colonos judeus [nos territórios palestinos].

Como resultado, a distinção entre os dois lados da linha está erodindo constantemente, e as normas e práticas desenvolvidas sob a ocupação também se aplicam em Israel.

Israel, como um “Estado judeu democrático”, é “democrático” para os judeus, e “judeu” para os árabes.

O país é, na realidade, um “Estado demográfico judeu”. A demografia (o medo de que os judeus se tornem uma minoria) é a preocupação principal por trás das políticas do Estado. Todas as instituições e práticas estatais são alinhadas para corresponder ao empenho por uma maioria judia permanente que exerça o domínio político absoluto.

Essas condições são particularmente visíveis nos territórios ocupados: os colonos judeus vivem em comunidades exclusivistas, das quais os palestinos locais são barrados (com a exceção, ocasionalmente, dos “lenhadores e dos que trazem água”). Eles viajam por estradas exclusivas para judeus, gozam da proteção militar israelense e ao acesso a todos os privilégios e serviços que acompanham os direitos da cidadania, inclusive o do voto no Parlamento israelense.

Os sujeitos palestinos têm acesso negado a qualquer um dos citados, e não têm palavra sobre qualquer aspecto da forma como são governados. “Nenhum imposto sem representação” é um princípio político nobre que não se aplica a eles, apenas aos colonos israelenses.

Como podemos chamar um regime que deixa milhões dos seus sujeitos sem qualquer direito político, que pratica a segregação em todos os aspectos da vida, e que nega a eles o direito básico de determinar o seu futuro?

Verdade, também há a Autoridade Palestina, mas ela não tem qualquer poder sobre questões cruciais de segurança, terras, água, de movimento de pessoas e bens, indústria ou comércio.

Tudo o que importa é controlado pelas autoridades militares israelenses, que opera em nome e em benefício dos colonos e dos grupos de interesse israelenses. Que os territórios não foram anexados formalmente a Israel é irrelevante; isso não muda qualquer das práticas opressivas às quais os palestinos são sujeitos diariamente.

Algumas pessoas preferem não dar nome a este regime de apartheid porque ele é, realmente, diferente (não melhor), em alguns aspectos, daquele existente na África do Sul, antes de 1994. É justo, mas então, existe termo melhor?

*Ran Greenstein é um professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Wits, na África do Sul.

**Título original: "Se não é apartheid, então o que é?"

Fonte: +972 Magazine
Tradução: Moara Crivelente, da redação do Vermelho