Em artigo, Fernando Dantas denuncia o abandono de monumentos

A importância da preservação dos monumentos de Salvador, como patrimônio histórico da cidade, é o tema do artigo produzido pelo diretor da Federação dos Bancários Bahia-Sergipe (FEEB-BA/SE), Fernando Dantas, que também é graduado e pós-graduando em História. Dantas denuncia o abandono e a destruição dessas obras que, para ele, são representativas para a formação da identidade do povo local.

Dado o problema, Dantas sugere o desenvolvimento de uma política de preservação dos monumentos, como forma de o poder público até gerar na sociedade um maior interesse pelo patrimônio material de Salvador – ele destaca as igrejas e as fontes públicas de água. Confira o artigo na íntegra.

A “Invisibilidade” dos Monumentos Históricos em Salvador

Por Fernando Antonio Duarte Dantas*

Quando falamos do Patrimônio Cultural Histórico, logo imaginamos se tratar de um conjunto de bens materiais ou imateriais herdados do passado, considerados representativos para a formação de identidade cultural de um povo pertencente a uma nação (CANANI, 2005). Partindo dessa premissa, os monumentos, os objetos artísticos, as manifestações culturais e os bens naturais, deveriam despertar na população o interesse em preservá-los. Então, como explicar o distanciamento do povo, em muitas cidades do Brasil, pelos bens arquitetônicos? No cotidiano podemos constatar que, no imaginário do coletivo social da maior parte dos habitantes dessas cidades, o patrimônio cultural é algo alheio, que não faz parte da sua vida, consequentemente desprovido de significado cultural e ignorado por boa parte da sociedade.

Sabemos que essa situação, em parte, está intrinsecamente ligada às desigualdades sociais no Brasil, que sempre marginalizou a maior parte do povo, lhe negando direitos básicos, como educação. Contudo, sabemos que há também elementos de caráter ideológico que favoreceram essa condição. Conforme FUNARI (2001), de forma estratégica, por muito tempo no Brasil o patrimônio cultural resumia-se às Igrejas Católicas do período colonial e às edificações construídas pelas elites detentoras do poder, que reafirmavam seu domínio através da cultura. Logo, os símbolos e espaços culturais privilegiados pelo poder público não dialogavam com a verdadeira história da maioria da população: as classes mais pobres da sociedade.

Apesar das grandes transformações socioculturais operadas no curso da história, com a valorização das classes subalternas e o surgimento de leis que visavam proteger o Patrimônio Histórico, como o Decreto-lei Nº 25/1937, que criou o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), definindo-o como: “o conjunto dos bens moveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (CANANI, 2005), o Brasil permanece priorizando, claro que em menor proporção, as edificações arquitetônicas e as manifestações artísticas originária das elites.

Salvador representa bem essa realidade, apesar de sua diversidade cultural. A capital baiana é considerada uma das cidades com o maior número de descendentes africanos e as manifestações culturais produzidas por essa enorme parcela da população sempre enfrentou resistência por parte das classes dominantes e dos órgãos oficiais em aceitá-las como patrimônio cultural. O exemplo disso foram os terreiros de Candomblé que levaram muito tempo para ser tombados pelo SPHAN e reconhecido pelo seu valor cultural, etnográfico e histórico do povo negro.

Outro aspecto que sempre contribuiu para o desinteresse da população pelos Monumentos Históricos em Salvador foram as sucessivas gestões públicas (salvo algumas exceções) que têm desprezado o patrimônio arquitetônico histórico, condenando-o ao abandono e à destruição. Mesmo com algumas iniciativas pela preservação, assistimos a deteriorização das igrejas (vários estilos: barroco, neoclássico, gótico etc.) e do vasto casario construído no período colonial, quando 

Salvador era a principal cidade da Coroa Portuguesa. A falta de uma política de valorização por parte da gestão municipal e a ganância desenfreada do capital imobiliário disseminam na sociedade um sentimento de indiferença e de descaso com esses patrimônios.

As Fontes de Àgua Públicas

Desde o período colonial até o século XIX (1857), a principal forma de abastecimento de água de Salvador eram as Fontes públicas de água natural, que brotavam em diversos pontos da cidade, aliás, um dos motivos para a escolha do local para a construção da primeira cidade na América Portuguesa era justamente por sua abundância em água (AZEVEDO, 1949). As fontes eram utilizadas, naquele momento, por toda a população, e com elas surgiram as ocupações de aguadeiros, indivíduos que transitavam por toda a cidade transportando água no lombo de jumento, recebendo o pagamento pelo transporte. Além dos aguadeiros, muitos “escravos de ganhos” rendiam “contos de réis” para os seus senhores, transportando talhas de água na cabeça – essas atividades estabeleceram elementos socioeconômicos na sociedade, naquele contexto. Nos lugares de origem onde brotavam a água, a administração colonial construía nos padrões arquitetônicos do período os acessos para a população, e hoje, se estivessem devidamente preservados, continuariam a ter utilidade para a coletividade e seriam reconhecidos como raridades arquitetônicas, portadores de significado sociocultural daquela época.

Com o aumento da população e a ampliação da cidade no inicio do século XIX, a demanda por água havia também crescido, exigindo dos poderes públicos novas medidas para atender o consumo. Em 1852, através da Lei 451, decidiu-se construir chafarizes e mais fontes e a criar um serviço de abastecimento de água potável, a Companhia de Água do Queimado, a primeira do país (ROCHA, 2011). Em decorrência das medidas, Salvador passava a contar com muitas fontes públicas, entre elas: a Fonte dos Padres, localizada na Ladeira do Taboão (a primeira construída pelos jesuítas); a Fonte das Pedreiras, localizada na av. Contorno (hoje utilizada para lavar carros); Fonte da Graça, construída no século XVI (segunda a lenda a Índia Catarina Paraguaçu se banhava nela); Fonte de Santa Luzia, localizada na Igreja de Santa Luzia no Pilar (atribui-se a ela poderes milagrosos); Fonte do Queimado, localizada no Largo do Queimado (uma das poucas Fontes tombadas pelo Decreto Estadual nº 30.483/84, entretanto descaracterizada); Fonte dos Perdões, localizada no Barbalho (completamente destruída e coberta de lixo); Fonte do Dique do Tororó, localizada próximo ao Dique do Tororó (tombada pelo Decreto Estadual nº 28.398/81, em funcionamento). No decorrer do tempo, a maioria delas desapareceu, outras estão parcial ou totalmente destruídas, e as que permanecem funcionando perderam as suas características originais, sem falar no estado da água que é imprópria para o consumo.

Sem a intenção de fazer comparativos, inversamente a Salvador, nas cidades históricas de Minas Gerais, estado que faz divisa com a Bahia, o patrimônio arquitetônico histórico tem outra dimensão e significado para a população e para os poderes públicos. Além das Igrejas Barrocas, quase todas em bom estado de conservação, as Fontes de Água Públicas mantém as mesmas características do período que foram construídas (século XVII), graças a restaurações frequentes e ao sentimento de pertencimento da população pelos seus bens culturais históricos. Nas Fontes, além a beleza arquitetônica, é possível ainda beber de sua água em estado de pureza que continua a jorrar. Sem entrar no cerne do processo que contribuiu para o compromisso da sociedade e poder publico voltada para a preservação da memória histórica e o patrimônio cultural nessas cidades, percebesse que há uma participação efetiva dos atores sociais na manutenção desse propósito.

Enfim, precisamos refletir sobre o que eu chamo de “Invisibilidade dos Monumentos Históricos” em Salvador e como esse fenômeno impacta negativamente na formação da identidade cultural da nossa população, sobrepujando o sentimento de assimilação e pertencimento ao conjunto arquitetônico cultural e histórico da cidade, gerando comportamentos de indiferença e abandono por esses bens e desprezo pela memória histórica. A ausência dos poderes públicos no trato da questão não pode representar um desalento para que a sociedade civil organizada venha a cumprir seu papel de apropriação e participação nas ações de preservação do Patrimônio Cultural Histórico. Nesse sentido, a educação e a participação da sociedade têm uma função muito importante, como afirma ANA CARMEN (2005), editora da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do IPHAN, em um artigo sobre a educação patrimonial: “É a dimensão coletiva, conquistada e reafirmada, que permite ao individuo resignificar termos como cidadania, participação, responsabilidade e pertencimento.”. Portanto, cabe a nós alterar a realidade em que vivemos, validando o patrimônio cultural como elemento de valorização do passado, transformação do presente e construção do futuro.

*Fernando Dantas é graduado em História, pós-graduando em Especialização em História da Bahia e é diretor da Federação dos Bancários Bahia-Sergipe.