Curuguaty, o símbolo da resistência pela terra na América Latina

Há três anos o Paraguai levava um golpe. Não se tratava do golpe de Estado contra o presidente Lugo, ainda. Antes deste, o povo paraguaio foi golpeado pelo latifúndio. No dia 15 de junho de 2012 as famílias que viviam no assentamento Marina Kue, em Curuguaty, foram surpreendidas por um aparato policial digno de produção hollywoodiana, cuja missão era desocupar a área. Não pouparam de violência e o saldo desta ação foi a morte de 11 camponeses e seis policiais. Todos pobres.

Por Mariana Serafini

Massacre de Curuguaty - Cigarrapy

O episódio ficou conhecido como “Massacre de Curuguaty” e foi usado como desculpa para desestabilizar o governo de Fernando Lugo. Exatamente sete dias depois, em 21 de junho, o presidente era deposto por meio de uma manobra da oposição fortemente amparada pelo judiciário e pela mídia hegemônica do país.

O assentamento de Marina Kue foi desfeito e as famílias despejadas buscaram ajuda nos assentamentos próximos, onde foram acolhidas. Algumas vivem ainda hoje à margem da estrada, onde quem passa se pergunta o por quê daquelas barracas de lona preta, cruzes e uma bandeira do Paraguai. É a resistência. As famílias continuam, apesar do golpe, a luta pela reforma agrária.

Obviamente a polícia jamais foi culpada pelas mortes, e no lugar de oficiais investigados, há 15 camponeses presos, sem absolutamente nenhuma prova capaz de incriminá-los. O julgamento acontecerá na próxima segunda-feira (22) e ao que tudo indica eles serão condenados por um crime que jamais poderiam ter cometido. Isso porque, as poucas armas que portavam eram instrumento de caça e, de acordo com um estudo feito pela Coordenadoria de Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy), não foram disparadas durante o conflito. O laudo mostrou também que todos os policiais mortos levaram tiros certeiros na cabeça, ou foram atingidos por projéteis capazes de perfurar o colete de proteção. Ou seja, a peleia parece ter sido contra "camponeses" com medalha de ouro em tiro ao alvo nas Olimpíadas. Mesmo com a pressão popular e o movimento de solidariedade internacional, o crime nunca foi esclarecido. A população paraguaia segue perguntando “Que pasó en Curuguaty?”.

Passados esses três anos, Curuguaty continua sendo um símbolo da resistência camponesa e um exemplo para toda a América Latina. O Paraguai tem uma das maiores concentrações de terra do mundo, segundo dados oficiais, 2,6% dos proprietários detêm 85% de toda a terra cultivável. Não à toa o movimento pela Reforma Agrária cresce a passos largos. Essa divisão escandalosa foi feita durante a ditadura de Alfredo Stroessner e, hoje, boa parte dessas terras são consideradas “malhabidas” (irregulares), ou seja, devem ser destinadas ao processo de redistribuição.

A região de Curuguaty faz parte desse território de terras “malhabidas” e por isso foi ocupada pelos camponeses que exigem a redistribuição. No entanto, foram reclamadas pelos Riquelme, uma família detentora de poder, dinheiro e influência. Mais de três anos depois o Indert (equivalente ao Incra no Brasil) ainda não se posicionou e não recorreu para reapropriar as terras do Estado.

Depois de Curuguaty outros despejos aconteceram, também com mortos, feridos e famílias inteiras jogadas às margens da estrada em lonas pretas. Mas nenhum outro resultou em um golpe parlamentar. Afinal, o Partido Colorado voltou ao poder. Lugo havia quebrado a supremacia de 62 anos consecutivos da sigla conservadora na presidência, mas com as eleições realizadas logo após o golpe o colorado Horácio Cartes voltou a assumir o mais alto cargo da República. Um mestre do agronegócio que trouxe ares de modernidade ao partido anacrônico.

Cartes é o perfil desta nova direita latino-americana, um jovem muito bem sucedido em vários ramos empresariais, presidente do clube 18 vezes campeão do futebol paraguaio, o Club Libertad, e ex-diretor de seleções da Associação Paraguaia de Futebol. Tamanha é sua experiência política que no dia 15 de agosto de 2013, durante as eleições presidenciais, ele admitiu que votava pela primeira vez, em si mesmo.

A administração de Cartes para o povo paraguaio é algo próximo ao desastroso. Não à toa, a classe operária fez a maior greve geral dos últimos 20 anos, com quase 90% de adesão exatamente um ano depois da posse. Além disso, centenas de outras manifestações já aconteceram durante a administração do empresário, em defesa da reforma agrária, de saúde e educação públicas de qualidade e contra a corrupção. Os despejos violentos crescem a passos largos e o Exército divide cidades com o crime organizado, onde há interesse em manter a resistência camponesa calada.

A luta pela terra continua. Curuguaty é um dos tantos focos de resistência espalhados pela América Latina que lutam pelo fim do modelo agroexplorador, cujo objetivo é atender apenas ao grande empresariado. Sabemos o que passou em Curuguaty, agora a luta é por justiça.