A direita vai com muita sede ao pote

É comum um partido, ao vencer nas urnas pela primeira vez ou retornar após longo interregno, confrontar-se com as instituições e os demais Poderes do Estado moldados ou dominados por forças rivais ao tentar implementar políticas e nomear adeptos. Foi o caso das esquerdas latino-americanas nas vitórias obtidas no fim dos anos 1990 e primeira década do novo milênio, as quais lidaram com a situação de diferentes maneiras.

Por Antonio Luiz M. C. Costa*

Mauricio Macri e Ramos Allup - Vermelho

No Brasil, tentou-se a conciliação, com cujos problemáticos resultados o governo e a nação hoje têm de lidar. Em outros países, principalmente naqueles onde venceram os movimentos ditos bolivarianos, escolheu-se o enfrentamento, que em alguns casos também cobrou um alto preço. Mas mesmos nesses casos, passou-se pela confirmação da vitória por mais eleições, processos constituintes e referendos dentro de princípios democráticos e com amplo debate público, apesar de forças conservadoras acusarem autoritarismo e inconstitucionalidade.

Bastou, porém, estas terem a chance de vencer uma eleição para um dos Poderes, na Venezuela e Argentina de dezembro de 2015, para se julgarem autorizadas a desmantelar da noite para o dia toda a herança de mais de uma década de hegemonia da esquerda, mesmo se em ambos os casos prometeram manter os programas mais populares e zelar pelas maiorias.

Isso se explica por se verem como legítimos proprietários do poder a expulsar invasores, pôr fim a uma aberração e restaurar a ordem natural das coisas, mas essa convicção pode não ser compartilhada por uma parte decisiva dos eleitores que os puseram nos cargos com a expectativa de uma correção de rumo e não de uma guinada de 180 graus ou os deixaram vencer para “dar uma lição” às próprias lideranças, pois ambas as vitórias foram conseguidas mais pela abstenção de descontentes da esquerda do que por um crescimento do voto de direita. Afobar-se e ultrapassar seu real mandato pode levar a reações não só dos Poderes ainda controlados pela esquerda, como das massas.

O caso mais crítico é a Venezuela. Ali a oposição ganhou 56% dos votos e dois terços do Legislativo, mas os outros quatro Poderes (Executivo, Judiciário, Eleitoral e Popular) continuam bolivarianos. A nova maioria parlamentar priorizou uma anistia para os oposicionistas presos, demanda razoável, apesar do potencial de conflito com o Executivo e o Judiciário, mas também “implementar um mecanismo para mudar o governo em seis meses”, o que não é de sua competência e pode ser feito por meio de um referendo revocatório contra Nicolás Maduro que depende apenas das assinaturas de 20% dos eleitores. Foi invocado em 2004 contra Hugo Chávez (e vencido por ele) quando os chavistas tinham maioria na Assembleia. Maduro referiu-se explicitamente a essa possibilidade e prometeu acatar a decisão da maioria.

Outro choque inútil foi o desacato à suspensão cautelar pelo Supremo Tribunal da posse de 3 dos 112 deputados oposicionistas (e um dos 55 governistas) até o julgamento de uma impugnação do partido chavista PSUV. Em resposta, o Judiciário declarou nulos todos os procedimentos do Congresso. Após uma semana de impasse, durante a qual o deputado chavista e ex-presidente da Assembleia Diosdado Cabello chegou a sugerir ao Supremo assumir o papel do Legislativo, o novo presidente oposicionista da Assembleia, Henry Ramos Allup, cedeu e afastou os parlamentares contestados.

Cabello, mais intransigente do que Maduro, é a segunda figura em importância no PSUV, mas perdeu o cargo e parte do prestígio com a derrota e tem interesse em aumentar sua projeção pelo enfrentamento. Foi, porém, preterido na sucessão por Chávez e não parece ter apoio dos militares. Seria de se esperar que a oposição evitasse lhe dar espaço, apresentasse propostas e demonstrasse respeito pelas Forças Armadas, que contiveram os militantes chavistas e garantiram a posse tranquila da nova Assembleia e a festa oposicionista e às quais cabe garantir uma nova eleição e uma transição pacífica caso a oposição vença o referendo.

Sua opção é, porém, pelo confronto. Ramos Allup mandou retirar os retratos de Chávez e Simón Bolívar (este criado a partir da reconstituição de legistas, com traços mestiços mais evidentes do que nas pinturas tradicionais), que até a véspera dominavam o plenário. “Eu não quero ver um quadro aqui que não seja o retrato clássico do Libertador. Levem essa porcaria para Miraflores (palácio presidencial) ou joguem na privada. Ou levem para as filhas, as viúvas (de Chávez)”, diz aos funcionários em vídeo publicado na internet.

Pior que fútil, foi contraproducente. As figuras de Chávez e Bolívar são muito mais populares que o periclitante Maduro e seu partido. Vinculá-los só fez inflamar seus militantes, indispor as massas e dar pretexto a autoridades e militantes chavistas para mostrar sua indignação e espalhar retratos de Chávez e Bolívar por toda parte. Isso deu início, na prática, à campanha pela confirmação do mandato de Maduro. De quebra, enfureceu os generais da Força Armada Nacional Bolivariana e deu ocasião a um ato de desagravo pelo ministro da Defesa, general Vladimir Padrino, contra o “ultraje à FANB, à honra militar e à pátria toda” e reafirmar sua lealdade a Bolívar, “pai da pátria e símbolo sagrado”, Chávez, “comandante supremo” e Maduro, “máxima autoridade do Estado, eleito pelo voto popular”.
Seria de se pensar que Ramos Allup aposta em acirrar os ânimos no quadro de recessão e inflação galopante, em vias de agravamento pela drástica queda dos preços do petróleo, para deflagrar uma guerra civil para motivar uma intervenção externa, o que estaria de acordo com seu perfil.

Em mensagem de 2006 vazada pelo WikiLeaks e intitulada “Ação Democrática: um caso sem esperanças”, Ramos Allup, dirigente desde 2000 desse partido originalmente social-democrata (e vice-presidente da Internacional Socialista desde 2012), era criticado pelo então embaixador dos Estados Unidos em Caracas como “bruto, abrasivo, arrogante e suscetível, o pior problema de seu partido, extremamente centralizado mesmo pelos padrões venezuelanos. Tão excessivamente confiante quanto sem imaginação, dorme sobre louros obsoletos como ‘líder do maior partido de oposição’, título que reivindica repetidamente. Em vez de cortejar os eleitores, sua estratégia política é buscar ajuda internacional”.

Na Argentina, a vitória da oposição neoliberal foi no Executivo, enquanto os peronistas continuam a ser a maioria no Legislativo e deixaram sua herança no aparato legal e no Judiciário, mas o impasse é semelhante. Os 261 decretos de Mauricio Macri em seus primeiros 21 dias de governo, após promessas de acatar as regras democráticas e dialogar com a oposição, puseram suas credenciais democráticas em dúvida até no jornal britânico Guardian: “Nem Cristina Kirchner fez algo tão absurdo”, garantiu-lhe o constitucionalista antiperonista Daniel Dabsay sobre as nomeações de dois juízes do Supremo por decreto no recesso do Legislativo, para tentar driblar a maioria kirchnerista do Senado.
Outra medida de constitucionalidade mais que duvidosa foi a revogação parcial da Lei de Mídia, referência para muitos movimentos latino-americanos de democratização da comunicação, seguida pela extinção da Afsca, agência reguladora criada por Cristina Kirchner e nomeação de um interventor. Na segunda-feira 11, dois juízes suspenderam esses decretos, mas no dia seguinte a polícia impediu a entrada na sede do órgão do titular Martín Sabatella. Ao mesmo tempo, o popular radialista Víctor Hugo Morales era demitido da Radio Continental (do grupo espanhol Prisa, o mesmo de El País) por pressão presidencial.

Medidas institucionais não são justificáveis como emergenciais, ao contrário dos decretos econômicos, criticados, mas não legalmente contestados pela esquerda. Isso inclui a liberação do câmbio, alta do dólar de mais de 40% e isenção de impostos para agroexportadores, com déficit público beirando 7%. As demissões de funcionários atingiram 18 mil e devem chegar a 65 mil e os subsídios à eletricidade e ao gás serão retirados pelo menos dos “30% mais ricos”.

É duvidoso se tais medidas poderão equilibrar a balança comercial e baixar o déficit e a inflação, próxima de 30% em 2015. Alimentos, combustíveis e tarifas tiveram fortes altas com a desvalorização, mas o primeiro resultado esperado, a entrada de 400 milhões de dólares em divisas dos exportadores, não se concretizou, talvez porque os cerealistas atrasam as operações com a esperança de ver o dólar subir ainda mais. Enquanto isso, sindicatos kirchneristas e antikirchneristas começam a se unir para exigir compensações pelos aumentos de preços.

Junte-se ao enfrentamento político um ano difícil no cenário internacional e a inexperiência política de um ministério de empresários e tecnocratas neoliberais e pode-se contar com um período mais turbulento que o de Sebastián Piñera no Chile. Antes de Macri, a Argentina teve dois presidentes não peronistas democraticamente eleitos, Raúl Alfonsín e Fernando de la Rúa. Ambos renunciaram antes do fim dos mandatos, sob a pressão de crises catastróficas, das ruas e do movimento sindical. O terceiro começa o governo com mais dogmatismo e vontade de confronto e um quadro político e econômico mais precário.