Após onda de assassinatos, setor da Farc volta a se armar
Ao abandonar as armas para assinar o Acordo de Paz as Farc deixaram de ser a maior guerrilha da Colômbia para se tornar um partido político. Porém, a violência de Estado e dos paramilitares aumentou e só no governo do presidente Iván Duque, eleito em 2018, já foram assassinados 229 líderes sociais. Diante das violações dos direitos humanos, um setor do “Partido da Rosa”, decidiu retornar à luta armada. O anúncio foi feito por Iván Márquez na quinta-feira (29).
Por Mariana Serafini
Publicado 01/09/2019 08:19
Não só a imprensa e os setores mais atentos à política da América Latina foram pegos de surpresa quando o grupo da Farc anunciou que retornaria à luta armada, mas também o partido como um todo. Em comunicado oficial o líder histórico da guerrilha e um dos principais negociadores dos Acordos de Paz, Iván Márquez, disse que devido à “traição do Estado”, se retira da luta por paz estável e justiça social através da via eleitoral para apostar novamente na tática de guerrilha.
Ao fazer o anúncio, Márquez representa apenas um setor da Farc. O partido foi fundado após a assinatura do pacto de paz, firmado sob a supervisão da ONU e chefes de Estado, com o governo colombiano em 2016 a partir dos Diálogos de Havana. O grupo, apesar de muito pequeno, conta com líderes importantes da antiga guerrilha, entre eles Jesús Santrich, que nos últimos meses sofreu perseguição política e chegou a ser preso.
Imediatamente após o anúncio, a Farc também emitiu um comunicado para esclarecer que esta dissidência não representa o partido, uma vez que os membros da sigla seguem convictos de que o melhor caminho para a paz com justiça social é a via eleitoral e não pretendem, em nenhuma hipótese, voltar às armas.
A justificativa da parcela dissidente não é infundada porque no momento em que as Farc deixaram de ser uma guerrilha e entregaram todas as armas para a ONU, as comunidades camponesas até então protegidas pelos guerrilheiros ficaram vulneráveis à violência dos paramilitares – grupos de extrema-direita financiados principalmente pelo agronegócio e narcotráfico.
Um dos pontos do Acordo é que, com o fim da guerra, o Estado deveria se ocupar da segurança destes territórios, mas não só isso não vem acontecendo, como a violência seletiva contra líderes sociais aumentou. No último ano, período de governo do presidente de extrema-direita Iván Duque, foram assassinados 229 dirigentes de movimentos sociais. Mal comparado com o Brasil, é como se na Colômbia morresse uma Marielle Franco a cada 36 horas.
Por outro lado, a parte que permanece fiel à assinatura do acordo – cerca de 90% dos membros do partido – também tem razão nos pontos que defende. Segundo os principais dirigentes, escolher voltar às armas é uma leitura equivocada da conjuntura política neste momento, visto que a correlação de forças não é a mais a mesma dos anos 60, quando a guerrilha foi fundada já com um estatuto revolucionário apenas um ano após a vitória da Revolução Cubana que inspirou outros movimentos camponeses na América Latina.
Além disso, apostar na via armada neste momento pode colocar em risco a segurança de todos que, após 5 décadas de guerra, se desarmaram através de um processo de paz discutido ao longo de cinco anos em processo coletivo e território neutro, neste caso, Cuba.
Hoje o presidente da Farc se chama Rodrigo Lodoño, mas durante os anos em que dormiu com um fuzil feito travesseiro na selva e liderou a guerrilha, seu nome era Timoleón Jiménez, carinhosamente apelidado de Timochenko. Timo usou o Twitter nesta semana para reafirmar o compromisso do partido com a paz e criticou a postura de Iván. “Com contundência nos reafirmamos em nosso compromisso com a paz e a exigência de seu cumprimento, por cima do eco delirante que alimenta a crueldade dos senhores da guerra”.
Pastor Alepe, outro líder histórico, destacou que este é “o momento de somar muitas lutas pela paz e a implementação do acordo. O retorno às armas é uma aventura que favorece os inimigos da paz”.
Em comunicado oficial, a Farc reconhece que o Estado não tem cumprido sua parte do Acordo de Paz, enquanto a ex-guerrilha não falhou nenhum dos passos até o momento e, sem armas, não tem outra forma de defesa a não ser a confiança de que todos os pontos serão respeitados. O pacto foi debatido durante cinco anos em Havana, onde participaram delegações da guerrilha e do governo, além de observadores internacionais, entre eles presidentes de países europeus e latino-americanos, além da ONU.
Ao aceitar se desarmar, os ex-guerrilheiros saíram aos poucos das áreas rurais onde atuavam e passaram a viver nas chamadas “zonas de transição”. Nestes pequenos sítios eles depositaram as armas em estações da ONU e cumpriram todos os trâmites burocráticos para abandonar a clandestinidade.
A pesquisadora Carolina Ramos, mestre em Relações Internacionais pela USP e autora do livro “A Frente Nacional na Colômbia (1958-1971): A Ditadura Democrática das Classes Dominantes”, esteve nos antigos centros de treinamento das Farc e depois nestas zonas montadas pelo governo para reintegrar os membros da guerrilha. Segundo ela, a estrutura anterior era infinitamente melhor. “Nos acampamentos eles tinham uma organização hierárquica muito bem definida, tinham tempo para se dedicar ao estudo, recebiam materiais de pesquisa, nas zonas de transição não têm nada disso, eles foram jogados nuns sítios improvisados onde precisam se virar em estruturas muito precárias”, conta. Este é só um dos exemplos de que o governo colombiano não cumpre com sua parte do pacto de paz.
“É certo que o cumprimento dos Acordos por parte do Estado marcha a passo paquidérmico, e que nós, os reincorporados, temos passado por sérias dificuldades em distintos sentidos. Ninguém nega que existam importantes setores e interesses que trabalham incessantemente contra o pactuado. Mas os revolucionários enfrentamos a adversidade com otimismo, valorizados altamente a palavra empenhada e não renunciamos aos nossos objetivos por duro que seja o caminho”, diz o comunicado oficial do partido.
É válido destacar que após a assinatura do Acordo, a Colômbia passou por um processo de abertura democrática intenso, uma vez que, durante a guerra os movimentos sociais eram estigmatizados. Assim que foi firmado o pacto, o país explodiu em greves e manifestações, os professores fizeram a maior greve dos últimos 20 anos, os estudantes ocuparam as ruas e as praças em apoio, é como se as pessoas se sentissem seguras novamente para exercer seus direitos cívicos. Mas a esperança de dias de paz é constantemente atacada por episódios de violência.
Com a saída desta parcela do movimento, não é possível afirmar, mas a probabilidade de que a perseguição dos paramilitares aumente é real. Tampouco se sabe qual será o caminho do grupo de Iván Márquez daqui pra frente, afinal, eles não têm mais a estrutura da antiga guerrilha que, em seu auge, chegou a ter mais dez mil membros. Atualmente ainda existem na Colômbia guerrilhas de menor expressão, entre elas o ELN (Exército de Libertação Nacional), cujo diálogo de paz foi suspenso no governo de Duque. É prematuro especular se os dissidentes vão se unir a estes grupos ou fundar novos, a partir de outros estatutos. Uma coisa é certa, o país de Gabriel García Marquez, condenado aos Cem anos de solidão, volta à ter dúvidas sobre sua “segunda chance sobre a terra”.