A história dos genocídios e o golpe militar de 1964

A palavra “genocídio”, aliás, surgiu exatamente para situar as atrocidades contra os povos desde que o mundo começou a viver sob constante ameaça de guerra.

A “Ordem do dia alusiva ao 31 de Março de 1964” assinada pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva; Ilques Barbosa Junior, comandante da Marinha; Edson Leal Pujol, comandante do Exército; e Antonio Carlos Moretti Bermudez, comandante da Aeronáutica, é um primor de propaganda do regime totalitário e corrupto de 1964.

A nota começa afirmando, contra todos os fatos, que “o movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira”. “O Brasil reagiu com determinação às ameaças que se formavam àquela época”, diz o texto, recorrendo aos acontecimentos do século XX como justificativa.

Segundo a nota totalitária, nesse período histórico “ideologias totalitárias em ambos os extremos do espectro ideológico ameaçavam as liberdades e as democracias”. Mentindo sobre o mais relevante acontecimento do século XX, a Segundo Guerra Mundial, os totalitários dizem que após a derrota do nazifascismo “outras ameaças buscavam espaços para, novamente, impor regimes totalitários”.

Regime corrupto

Num trecho, a nota totalitária resvala para o anticomunismo mais rasteiro, típico da ideologia nazifascista. “Naquele período convulsionado, o ambiente da Guerra Fria penetrava no Brasil.  Ingredientes utópicos embalavam sonhos com promessas de igualdades fáceis e liberdades mágicas, engodos que atraíam até os bem-intencionados”, devaneia o texto.

Como resposta, “as instituições se moveram para sustentar a democracia, diante das pressões de grupos que lutavam pelo poder”, prossegue. “A sociedade brasileira, os empresários e a imprensa entenderam as ameaças daquele momento, se aliaram e reagiram. As Forças Armadas assumiram a responsabilidade de conter aquela escalada, com todos os desgastes previsíveis”, dizem os totalitários.

O texto entra por outras mentiras, como a de que “o Brasil estava pronto para transformar em prosperidade o seu potencial de riquezas” – uma negação dos desastres  da teoria de fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo, que levou à explosão social do final da década de 1970 e início da década de 1980, estopim das crises econômicas que se sucederam até os dias atuais – e conclui dizendo que o “movimento de 1964 é um marco para a democracia brasileira”. “Muito mais pelo que evitou, enfatiza.

Mas o que mesmo aquele regime corrupto e assassino evitou? Essa nota totalitária é uma mera reprodução das teses que justificam as torturas e os assassinatos pelas milícias instaladas nos porões da ditadura militar, institucionalizadas por aquele regime.

Plataforma de Adolf Hitler

São ideias com raízes no histórico de genocídios do século XX. A palavra “genocídio”, aliás, surgiu exatamente para situar as atrocidades contra os povos desde que o mundo começou a viver sob constante ameaça de guerra. Ela se consolidou no Tribunal de Nuremberg, que condenou os crimes nazistas da Segunda Guerra Mundial, por iniciativa do jurista polonês Rafał Lemkin, integrante do grupo de trabalho encarregado de preparar os julgamentos.

Lemkin, que estudara o Genocídio Armênio, dizia que o mundo precisava banir a “barbárie” e o “vandalismo”, termos que, segundo ele, caracterizam o massacre e a destruição da cultura de um povo. O conceito foi aprovado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 9 de dezembro de 1948, num documento conhecido como Convenção sobre o Genocídio.

Seu artigo 2 define o genocídio a partir da intenção de extermínio em massa. Essa definição se baseava nos acontecimentos da Segundo Guerra Mundial, quando o regime de Adolf Hitler deliberadamente promoveu o genocídio dos judeus e planejou a escravização dos eslavos. Em janeiro de 1933, quando ele se tornou chanceler alemão, sua plataforma política já era bem conhecida; ela estava no livro Mein Kampf  (Minha Luta), de sua autoria.

Hitler discorreu longamente sobre o problema do “espaço vital” — Lebensraum, em alemão. “Se na Europa de hoje falarmos em terras, haveremos de ter em mente apenas a Rússia e as nações vizinhas a ela subordinadas”, afirmou o líder nazista. Ele perseguiria esse objetivo até o seu fim. Para Hitler, o destino tinha sido generoso ao entregar a região à direção dos comunistas — o que, segundo sua teoria, era o mesmo que entregá-la aos judeus.

A estratégia nazista estava clara. Primeiro, era preciso aniquilar a França apenas como condição para o avanço de seus exércitos rumo ao Leste. Hitler tomou a Áustria, a região dos Sudetos, na Tchecoslováquia, e a parte ocidental da Polônia. Em setembro de 1938, os líderes da Alemanha, Inglaterra e França assinaram o “Pacto de Munique”, permitindo ao exército alemão iniciar sua marcha para a Tchecoslováquia. O próximo passo seria a invasão da União Soviética.

Guerra das nações

Todos os acontecimentos daquela tragédia só podem ser compreendidos em sua inteireza a partir desse ponto de partida. Os genocídios, além do morticínio na resistência à ofensiva nazista, estão diretamente relacionados a essa ideia. Sua base vem do século XIX, quando as estruturas da guerra se adaptaram às mudanças das sociedades. Já naquela época, as convenções e conferências de Genebra (Suíça) e Haia (Holanda) tentaram criar regulamentos para “humanizar a guerra”.

Como descreve o pesquisador iugoslavo Vladimir Dedijer, na obra On military conventions, as sociedades capitalistas pariram, nessa época, o monstro da “guerra total”. Segundo ele, as competições entre as nações produzem hostilidades permanentes. Consequentemente, produzem engenhos cada vez mais mortíferos, que não distinguem combatentes da população civil.

Foi assim que surgiu a “guerra das nações”, a Primeira Guerra Mundial. Inglaterra e França, como as principais potências capitalistas da época, puxaram a fila de países que constituíram impérios coloniais. Com guerras de agressão e genocídios para exportar mercadorias e capitais, subtraindo das nações colonizadas matérias-primas e força de trabalho, esse colonialismo criou uma espécie de sub-humanidade, uma ideologia essencialmente racista.

Genocídio de Winston Churchill

Assim como o nazifascismo, outros regimes promoviam genocídios. Quando o Tribunal de Nuremberg começava a surgir para julgar os crimes do regime de Hitler, por exemplo, os franceses massacraram 70 mil argelinos em Séfit, Guelma e Kerrata, um genocídio ocorrido em 8 de maio de 1945. Recentemente, o escritor e ex-diplomata indiano Shashi Tharoor publicou um artigo no jornal norte-americano The Washington Post sobre o genocídio britânico em seu país, tendo à frente ninguém menos do que Winston Churchill.

Essa concepção ganhou nova forma no pós-Segunda Mundial, agora sob a hegemonia dos Estados Unidos e seu famoso One world. Ela permite compreender como a estrutura das guerras coloniais se transformou de “guerra total”, em que a força encontra reciprocidade, em “guerra colonial”, contra populações civis. A Guerra da Coreia e a vitória da Revolução Chinesa, liderada por Mao Tse-tung, marcaram uma nova etapa de conflitos entre o império com pretensão à univocidade e os movimentos de libertação do povos.

Esse conflito foi sangrento também no Vietnã, onde os Estados Unidos chegaram a formar campos de concentração, em muitos aspectos semelhantes aos de Hitler. Foram combates que se desenvolveram com o conceito de guerra popular, apoiada no auxílio da população interna – princípio adotado pelo PCdoB na concepção da Guerrilha do Araguaia –, de um lado, e o terrorismo genocida pelo invasor.

O racismo da ideia de sub-humanidade a ser exterminada ou escravizada ficou claro em declarações de autoridades do regime norte-americano. Segundo o general William Childs Westmoreland, comandante das tropas norte-americanas na Guerra do Vietnã, entre 1964 e 1968, a guerra era “para mostrar que a guerrilha não vale a pena”, um recado enfático aos que pretendiam pegar o caminho da guerra popular.

Era a mesma ideia que fora aplicada no Japão, quando a máfia Yakusa foi usada pelas forças de ocupação norte-americanas para suprimir dirigentes políticos de esquerda. Processos similares aconteceram no Sudeste Asiático. Na década de 1960, a tomada do poder pelo presidente Suharto na Indonésia foi a apoteose de um banho de sangue anticomunista que dizimou meio milhão de pessoas. Com a bênção de Washington e o financiamento de empresas locais, o regime de Suharto sobreviveu até recentemente.

No Vietnã, o objetivo confesso dos Estados Unidos era cercar a China socialista para evitar a expansão da guerra popular. O regime de Washington impôs o seu controle na Tailândia e ocupou dois terços do Laos. David Dean Rusk, então secretário de Estado dos Estados Unidos, declarou que o objetivo era estabelecer “uma linha de defesa no Pacífico”.

A política de provar que “a guerrilha não compensa” chegou também na América Latina com a cadeia de golpes militares inspirada no Plano Truman. Para enfrentar aquele cenário expansionista militarizado, seriam necessários muitos vietnãns, disse Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana. Nessa região, ainda são historicamente recentes os crimes contra a humanidade, como os praticados no confronto com a Guerrilha do Araguaia.

A mesma ideia orientou o ex-presidente dos Estados Unidos George W. Bush em sua “nova ordem mundial” – termos usados por Hitler – após a queda do bloco soviético. Com essa política, o regime norte-americano deu banhos de sangue no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, na Sérvia e agora na Síria (além da grave ameaça de nova guerra com esse assassinato bestial do iraniano Qassem Soleimani). As ameaças são constantes também contra Cuba, Coreia do Norte e Venezuela.

A conquista do Estado

Esses genocídios representam um ataque a todo o gênero humano. São crimes que fazem daqueles que conscientemente se omitem – ou apoiam – cúmplices dos seus praticantes.

O regime de 1964 foi criminoso em todos os sentidos. A começar pelos resultados das teses dos economistas que assumiram o controle depois do golpe. Eles chegaram dizendo que o dilema inflação-desenvolvimento era discussão da pré-história. Segundo Roberto Campos, ícone brasileiro deste pensamento, este dilema era um “idílio” — ou produto de fantasia; devaneio, utopia.

René Dreiffus, que analisou brilhantemente o golpe militar de 1964 no livro A Conquista do Estado, definiu com bastante precisão a intenção daquele regime quando abordou a mudança de qualidade entre a educação como transmissão da cultura geral da humanidade e como investimento produtivo.

“O conceito de educação muda substancialmente. Transforma em capital humano o que, devidamente investido, pode produzir lucro social e individual. (…) A educação é vista como investimento apenas quando prepara indivíduos para o trabalho. Não é mais um processo de transmissão da cultura geral da humanidade, do conhecimento universal. É instrumentalizada para o trabalho, de maneira que o indivíduo se torne mais produtivo na empresa que o contrate”, escreveu ele.

Mentor operacional

Para chegar a esse governo criminoso, os golpistas, como nessa nota totalitária sobre os 56 anos do início do regime de latrocidas, criaram uma onda de que o “comunismo” estava às portas do poder com a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros.

Os comunistas haviam apoiado Goulart nas campanhas para vice-presidente em 1955 e 1960 e os ministros militares tentaram impedir sua posse. Eles divulgaram um manifesto no qual disseram que no governo do vice de Jânio Quadros as Forças Aramadas seriam “transformadas” em “simples milícias comunistas”.

Nessa linha golpista, os jornais carregavam na tinta para agitar febrilmente a bandeira anticomunista. A viagem do presidente à China rendeu manchetes berrantes. Uma simples reunião de trabalhadores era “noticiada” como a “marcha da revolução comunista”.

O mentor operacional do golpe foi o adido militar de Washington no Brasil, general Vernon Walters, ex-oficial de ligação do Exército dos Estados Unidos junto à Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial. Walters era o confidente dos conspiradores militares e encorajou o general Humberto Castelo Branco, chefe do Estado-Maior do Exército que fora seu companheiro de quarto na Itália, a deflagrar o golpe.

Uma semana antes da tomada do poder pelos golpistas, o adido militar norte-americano telegrafou a Washington dando os detalhes completos da conjura. Castelo Branco, já como presidente, ofereceu um jantar ao convidado especial Walters.

O programa do golpe havia sido elaborado pela Escola Superior de Guerra, com ajuda de técnicos dos Estados Unidos. A doutrina dos golpistas e de seus apoiadores era a de que o Brasil deveria se alinhar incondicionalmente aos norte-americanos na marcha para a Terceira Guerra Mundial.

Capital monopolista

Uma das primeiras medidas adotadas pela ditadura foi a elaboração de uma “doutrina de segurança nacional”, baseada em dois conceitos: a divisão do mundo em dois blocos antagônicos e a adesão do Brasil ao “bloco democrático e cristão”, sob a direção dos Estados Unidos — dos quais o Brasil deveria considerar-se um satélite privilegiado — para combater o bloco socialista, liderado pela União Soviética.

O Ato Institucional (AI) passou a ser o instrumento para a ditadura “legalizar” suas ações políticas não previstas na legislação e contrárias à Constituição. O AI-1, de 9 de abril de 1964, transferiu o poder aos militares golpistas e suspendeu por dez anos os direitos políticos de centenas de pessoas.

Em outubro de 1965, o AI-2 concedeu à Justiça Militar a competência de julgar “crimes contra a segurança nacional”. A estrutura do poder ditatorial foi sendo montada gradativamente, com o Executivo concentrando funções e sob controle do Estado-Maior das Forças Armadas, do Alto Comando das Forças Armadas e do Departamento de Administração da Polícia Civil (este último um organismo de consulta).

Foram também criados mais dois órgãos: o Conselho de Segurança Nacional (CSN) e o Serviço Nacional de Informações (SNI). O poder legislativo foi restringido — e, posteriormente, com o AI-5, fechado — e o poder judiciário limitado à função de supervisionar os atos determinados pelo CSN. Todos os suspeitos de atividades contra a “segurança nacional” passaram a ser julgados por tribunais militares.

Capital e trabalho

O Brasil já havia passado por quarteladas — como a derrubada do governo de Getúlio Vargas em 1945 e a tentativa de impedir as posses de Juscelino Kubitschek e João Goulart. Mas em 1964 foi levado a cabo um projeto das forças mais reacionárias internas e externas, que vinha sendo gestado desde a criação da Escola Superior de Guerra em 1949, no berço da Guerra Fria.

A brusca e forçada mudança na correlação de forças entre capital e trabalho obedecia, ainda, a regra do capital monopolista internacional e seu centro dominante — os Estados Unidos —, de expandir o modelo brasileiro para outros países vizinhos.

As ditaduras fascistas insufladas pelos norte-americanos logo se espalharam pela América Latina. Falando ao jornal O Estado de S. Paulo na ocasião, o embaixador de Washington no Brasil, Lincoln Gordon, disse que “a revolução de 64” estava entre os acontecimentos mais importantes para o “ocidente”, ao lado “do Plano Marshall, do bloqueio de Berlin e da derrota dos comunistas na Coréia”.

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Um comentario para "A história dos genocídios e o golpe militar de 1964"

  1. Aqui é a , Cristina Nunes eu gostei muito do seu artigo seu conteúdo vem me ajudando bastante, muito obrigada.

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