O erro de Bolsonaro ao justificar violência doméstica no confinamento

O presidente erra ao justificar a violência contra mulheres pela dificuldade financeira da família. Também ignora que casais com maior renda têm maior incidência de agressões.

Violência doméstica aumenta durante quarentena do Covid-19. Foto de Marcos Santos / USP

O recente dado divulgado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que mostra que as denúncias de violência doméstica para o 180 aumentaram 17% desde o início da quarentena foi usado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), no domingo (29), ao voltar de um passeio por Brasília, para atacar a quarentena orientada por especialistas em epidemiologia para evitar o avanço do Covid-19.

“Tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Como é que acaba com isso? Tem que trabalhar, meu Deus do céu. É crime trabalhar?”, declarou ele a jornalistas, em entrevista coletiva.

Pesquisadores e especialistas sobre o tema da violência doméstica foram ouvidos pela reportagem do site Universa desmentem a argumentação do presidente ao  afirmar que os casos de agressões contra mulheres devem aumentar ainda mais com o isolamento, mas afirmam que o motivo disso não é o confinamento nem a falta de emprego ou de dinheiro. Leia a seguir o que diz quem entende do assunto:

“Fatores externos, como problemas financeiros, podem ser gatilho para explosão de tensões, mas nunca a causa, mais relacionada à desigualdade e o desequilíbrio dos papéis sociais de homens e mulheres”, afirma a promotora Silvia Chakian, do Gevid (Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher), do Ministério Público de São Paulo.

Mais renda, mais violência

Cofundadora da Rede Feminista de Juristas, Isabela Guimarães Del Monde explica, com base em dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) divulgados em 2019, que a incidência de agressões é maior em famílias com maior renda.

“Ao contrário do que o senso comum difunde, o índice de violência contra mulheres economicamente ativas (52,2%) é praticamente o dobro do que o registrado pelas que não compõem o mercado de trabalho. Nesse sentido, em casas em que há mais renda, gerada pelo homem e pela mulher, há mais casos”, afirma.

Ela considera “leviano” e “preconceituoso” com as pessoas pobres afirmar que falta de dinheiro causa violência. “A fala do presidente é um desrespeito e naturaliza a violência como algo que necessariamente vai acontecer, e não algo que é inadmissível em qualquer circunstância”, diz.

“Bolsonaro, infelizmente, trabalha com base em achismos e não em dados e ciência, e ignora que a violência doméstica assola todas as classe.”

A justificativa financeira para o crime

Psicóloga especializada no atendimento de vítimas de violência doméstica há 15 anos, Artenira da Silva e Silva, pós-doutoranda em Direitos Humanos pela UFPA (Universidade Federal do Pará) e pesquisadora do mestrado em Direito da UFMA (Universidade Federal do Maranhão) é taxativa: “De nenhuma forma crise financeira justifica agressões contra a mulher”. “Da mesma forma que uso de álcool e drogas pode potencializar a violência doméstica — e por isso são chamados fatores de risco —, a crise ou qualquer outro tipo de frustração maior num casal, que pode ser perda de um filho, por exemplo, também é”, afirma. “Mas não é causa. A causa da violência contra a mulher é sempre o machismo, introjetado e a ponto de ser acionado”, diz a psicóloga, que atualmente tem 28 pacientes, todas de classe alta.

Autorização para a violência

Isabela ainda critica o fato de Bolsonaro se referir à situação de uma mulher apanhando como “briga”. “Conflito é parte indissociável de qualquer relação e é justamente o modo como se lida com ele que diferencia uma situação de violência doméstica. Ela existe não porque um discorda do outro, mas porque, diante da discordância, o homem vira um tapa na cara da esposa. Isso não é briga, é crime”, afirma.

“O perigo de isso sair da boca dele é que, como um líder nacional, ele influencia diretamente comportamentos. Muitos homens dentro de casa vão se sentir autorizados a bater na esposa porque estão passando por um momento difícil, e isso justificaria a violência”, analisa Isabela.

Como explica a promotora Silvia Chakian, a linguagem para abordar o tema precisa ser cuidadosa, para não contribuir com a banalização das agressões, tratando-as como algo corriqueiro, que “simplesmente acontece”.

“Estamos falando de um país com números assustadores de violência doméstica e feminicídio, qualquer abordagem que não seja séria e responsável no trato dessa questão é inaceitável”, diz.

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, um caso de violência doméstica é registrado a cada dois minutos no país. Em relação a feminicídios, há uma morte a cada sete horas, em média.

O que explica?

Silvia afirma que não há uma resposta simples para essa pergunta. “Não há causa isolada, e sim conjugação de fatores. A construção de um comportamento masculino que vê a parceira como objeto de posse é um deles”, explica.

Para Isabela, a violência doméstica é parte da educação dada aos homens, desde a infância, que os estimula a lidarem com suas frustrações, inseguranças e tristezas com violência.

“Os homens são o grupo social que mais morre, mais mata e mais se mata. Isso significa que temos a ideia de que ser homem é responder às situações cotidianas violentamente”, explica.

Por Camila Brandalise do www.uol.com.br/universa

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