Infectologistas exigem protocolo para quem vai ficar sem leito de UTI

O infectologista Marcos Boulos disse ao Vermelho que São Paulo deve precisar de um protocolo de “quem vai morrer”, caso o controle da epidemia por isolamento social não ocorra.

Como garantir cuidados paliativos para pacientes terminais não sofrerem, quando não há leitos para todos?

A Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro está analisando um protocolo que visa estabelecer quem receberá um leito nos hospitais do estado, caso as unidades atinjam capacidade máxima de atendimento e este procedimento se torne rotineiro. O aumento do número de casos de covid-19 tem sobrecarregado os hospitais públicos e, em especial, os leitos de terapia intensiva (UTI).

Em entrevista ao portal Vermelho, o epidemiologista Marcos Boulos, que assessora o governo de São Paulo em relação ‘a pandemia de covid-19, disse que o estado provavelmente vai ter que recorrer ao mesmo expediente. Segundo ele, o avanço da doença deve provocar este tipo de demanda, conforme os leitos de UTI já se tornem escassos, especialmente na região metropolitana da capital.

Este tipo de protocolo é incomum porque pressupõe que, embora saibamos e tenhamos condições de atender à necessidade do doente, devido ao excesso de pacientes, não há recursos materiais suficientes. Nem sequer nos cursos de ética na graduação de medicina, este assunto é abordado de forma profunda.

Mas Boulos, acredita que essa medida deverá ser tomada mais adiante, conforme as medidas restritivas se mostrem insuficientes para reduzir o contágio. Por enquanto, o estado vem dando conta da dimensão epidêmica, segundo ele. Os hospitais paulistanos não esgotaram seus recursos e conseguem atender à demanda na cidade que é considerada o epicentro da epidemia.

“Um protocolo delicado desse não pode ser frio. Não pode ser definido por idade, por exemplo, pois uma pessoa idosa pode ser altamente produtiva, enquanto um encarcerado com crimes graves pode ser mais jovem e impossibilitado de produzir a maior parte da vida”, lembra ele, para mencionar um exemplo ético específico. Segundo ele, regras tão difíceis numa situação de pandemia não podem ser definidas apenas pelos médicos, até porque a família do paciente pode vir a recorrer à Justiça e questionar a decisão do profissional.

O protocolo do Rio de Janeiro está sendo preparado em parceria com o Conselho Regional de Medicina (Cremerj), a Academia Nacional de Cuidados Paliativos, Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, da Sociedade de Terapia Intensiva e a Universidade Federal Fluminense, entre outras instituições. Mas, segundo esses especialistas, deveria envolver o Congresso Nacional.

De acordo com a Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro, estão sendo consideradas para o protocolo, práticas utilizadas em países como Espanha e Estados Unidos. A ideia é evitar o maior número de mortes, no que Boulos concorda, acrescentando que é preciso oferecer conforto aos pacientes terminais que estão sofrendo com problemas respiratórios.

Decisão individualizada

A preocupação da maioria das entidades médicas é com um número insuficiente de leitos de UTI, desigualmente distribuídos pelo país, em que são as equipes médicas que acabam obrigadas a optar entre os pacientes que terão prioridade. Aparentemente, terão que fazer isso sozinhas, já que não há protocolos detalhados pelo Ministério da Saúde e pelas secretarias estaduais sobre como agir nesses casos.

Como a doença era desconhecida e o conhecimento evolui com sua dinâmica epidêmica, os protocolos também mudam. As máscaras que não eram recomendadas inicialmente, tornaram-se itens obrigatórios com sanções para quem não as use. Do mesmo modo, o protocolo de atendimento, em que pessoas com problemas respiratórios eram mantidas em casa, conforme a gravidade do caso, mudaram para um atendimento hospitalar de acompanhamento, que evoluiu para a internação em UTIs. Hospitais de campanha que mantinham leitos de repouso, agora mudam para leitos de UTI com respiradores artificiais.

Um trauma para profissionais

Talvez para evitarem falar da morte, um risco inerente à pandemia, as autoridades estão deixando mais essa carga aos médicos da linha de frente. Discute-se o aumento de recursos para atenuar o problema, mas não se fala de quais seriam os critérios para essa difícil escolha, que deveriam ser transparentes para a população. Nisso concordam médicos, entidades e especialistas em fim de vida, os paliativistas. Segundo eles, apenas hospitais específicos e a Associação Brasileira de Medicina Intensiva (Amib) tomaram iniciativas de elaborar protocolos e recomendações.

Na pandemia, esta é uma situação já excessivamente cruel para os profissionais de saúde, que não devem ser submetidos a mais sofrimento. “É uma situação degradante para os médicos, que não deveriam ter que decidir quem vai viver, numa proporção em que, quem vai morrer, muitas vezes, são várias pessoas para um que vai receber atendimento adequado”, analisa Boulos.

Iniciativa do Congresso Nacional

Profissionais da saúde dizem que o país já deveria estar mais preparado, promovendo a discussão com toda a sociedade, médicos, juristas, bioeticistas, filósofos, líderes religiosos, entre outros. Pela ausência total de protocolo em relação a isso, o debate deveria ser impulsionado por audiência pública no Congresso Nacional, no Ministério Público, em reuniões pautadas pelo Ministério da Saúde ou organizações internacionais.

Esta sugestão considera que é preciso haver iniciativas de legislações específicas que garantam imunidade cível e criminal aos trabalhadores da saúde, para resguardar condutas durante os atendimentos da covid-19. O estado de Nova York, por exemplo, aprovou, no fim de março, uma lei que protege os profissionais de saúde em decisões como limitar ou suspender o suporte artificial de vida ou não reanimar o paciente durante o período de pandemia. 

A recusa terapêutica, independentemente de fim de vida ou não, é reconhecida no Código Civil, desde 2002, mas poucos seguem essa diretriz por desconhecerem-na.

Cuidados paliativos para terminais

A possibilidade e direito de abrir mão ou priorizar procedimentos médicos como o uso de um leito de UTI, não podem ser confundidos com abandono do paciente. Um doente de covid-19 não poderá ficar sem cuidados se não houver leito de UTI para ele. Para isso, existem os cuidados paliativos, oferecidos e conhecidos por menos de 10% dos hospitais brasileiros. O objetivo é reduzir o sofrimento e melhorar a qualidade de vida dos pacientes com doenças crônicas e incuráveis.

A sedação paliativa é um dos procedimentos que costumam gerar polêmica por ser comumente usada pouco antes de a pessoa morrer, mas é importante para aliviar falta de ar e dores excessivas. A elaboração de um “testamento vital”, procedimento que explodiu a demanda durante a pandemia, nesses casos, pode ser necessário para proteger os profissionais e garantir o desejo do paciente.

A tecnologia também tem sido aliada para conectar os pacientes, por vídeo e voz, com seus familiares. Profissionais de saúde promovem visitas virtuais de familiares nas UTIs (por meio de tablets e outros aparelhos) e garantem a transparência de informações ao doente, ao dar notícias difíceis, durante a pandemia.

Uma estratégia que logo se espalhou pelo mundo foi usar, por cima das roupas brancas dos profissionais, uma foto do rosto deles, no peito, para mostrar quem está por trás de todo o aparato de proteção, que faz com que se assemelhem a máquinas nas alas de internação. Fotos com sorrisos largos são as preferidas por transmitir carinho, mesmo embrulhados em EPIs (equipamentos de proteção individual).

A extubação (a retirada do tubo) dos pacientes internados em UTIs é um procedimento igualmente envolvido em polêmicas. A recomendação da Amib é para que todos os doentes sejam incluídos no plano de triagem para as vagas de UTI, inclusive os que já estão ocupando vagas por outras enfermidades. Isso significaria, portanto, extubar o paciente que possa ter menos chance de sobrevida.

Diante de decisões judiciais na contramão dessas orientações de extubação, entidades paliativistas publicaram nota ressaltando que “a extubação paliativa é uma opção, em casos muito específicos, permitindo a evolução natural da doença, e jamais visando causar a morte ou realizada de forma impositiva”. Protocolos institucionalizados evitariam este tipo de questionamento que põe em risco os direitos dos profissionais de saúde.

Protocolo mínimo

Diante da omissão jurídica, o que se tem até o momento é o documento da Amib, feito com o objetivo de amparar os médicos. Intitulado “Princípios de triagem em situações de catástrofes e as particularidades da pandemia covid-19”, o artigo indica os parâmetros de admissão de pacientes em UTIs, baseados na resolução 2.156 do CFM, de 2016.

A gravidade do quadro clínico atual do paciente e a probabilidade de sobrevivência são os principais pontos para definir a prioridade entre os doentes, conforme o artigo. A Amib também recomenda que as decisões sejam coordenadas com diretor técnico hospitalar e autoridades de saúde em nível local, regional ou nacional, além de documentadas no prontuário de cada paciente.

As equipes de triagem para cuidados intensivos devem ser compostas, no mínimo, por três pessoas, dois médicos e um outro profissional de saúde, experientes no cuidado de pacientes graves, especialmente com disfunção respiratória. São elas que devem decidir juntas, baseadas em critérios previamente definidos para priorizar pacientes.

A maior preocupação é evitar decisões subjetivas, relacionadas com o status social do paciente, por exemplo. A idade também não pode ser o primeiro critério, e sim o último, num possível desempate. Discriminações de ordem racial ou classista também são frequentemente mencionadas pela subjetividade que envolvem.

Afinal, a crise sanitária escancara as contradições raciais na saúde, no que tange a acesso a serviços, racismo interpessoal entre profissionais de saúde e pacientes – já documentado inúmeras vezes –, e também à maior prevalência de doenças crônicas em pessoas negras, o que as tornam mais vulneráveis ao contágio e também à morte. A pobreza da maioria da população negra, assim como pessoas pobres de outras etnias, as tornam mais vulneráveis à hipertensão e diabetes, doenças crônicas que as tornam grupo de risco para morte por covid-19.

Os critérios da AMIB

Níveis recomendados

– Prioridade 1: pacientes que necessitam de intervenção imediata, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de recursos curativos (podendo receber todas as intervenções para serem salvas). Exemplo: uma pessoa com uma pneumonia grave, com necessidade de ventilação mecânica, sem doenças prévias ou com doenças que não limitam a expectativa de vida (asma, hipertensão controlada, diabetes controlado…);

– Prioridade 2: pacientes que necessitam de monitoramento intensivo, com alto risco de precisarem da intervenção imediata, e sem nenhuma limitação de suporte;

– Prioridade 3: pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, mas com baixa probabilidade de recuperação ou com alguma limitação terapêutica;

– Prioridade 4: pacientes com limitação de intervenção terapêutica, como os que têm câncer avançado, doença cardíaca e pulmonar avançadas – nesses casos, as intervenções avançadas podem ser fúteis e não indicadas;

– Prioridade 5: pacientes com doença em fase terminal, sem possibilidade de recuperação.

Situação do paciente

Serão avaliados: quadro clínico atual; presença de comorbidades (mais de uma doença); comprometimento irreversível de funções cognitivas; e fragilidade.

Não discriminar

As decisões não devem levar em consideração: idade, religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor da pele, orientação sexual, condição social, opinião política ou deficiência.

FONTE: AMIB – PRINCÍPIOS DE TRIAGEM EM SITUAÇÕES DE CATÁSTROFES E AS PARTICULARIDADES DA PANDEMIA COVID-19 (março de 2020)