Covid-19 mata no Brasil mais que qualquer doença, agressão ou acidente
Nos últimos dez dias de abril, a covid-19 matou ao menos 365 pessoas por dia, em média. As doenças cerebrovasculares, principal causa de morte no país, matavam 273 por dia. Dr Boulos diz, ao Vermelho, que esses números devem arrefecer com o fim da epidemia.
Publicado 08/05/2020 17:35 | Editado 08/05/2020 18:25
O crescimento no número de mortes levou a covid-19 a causar, nos últimos dez dias de abril, uma média de óbitos diárias maior do que qualquer doença ou causas externas do país, segundo dados do SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade), do Ministério da Saúde.
Segundo o infectologista Marcos Boulos, em entrevista ao portal Vermelho, esta é uma característica de epidemias como a covid-19. Em sua opinião, ao contrário das demais doenças mais letais, a síndrome respiratória deve se amainar com o passar do tempo, conforme os infectados forem se imunizando com anticorpos do vírus e tratamentos forem encontrados.
“Epidemia é assim: você não tem nada e de repente ela explode, passa todas as doenças e depois vai embora. Temos essa epidemia importante, talvez a maior em cem anos no Brasil. No caso de um vírus novo, ninguém tem resistência a ele e todos que têm contato acabam adoecendo. Por isso, a exorbitância dos números.”
Só mais uma gripe
Boulos não confirma que o Sars-Cov2 seja mais agressivo que outros vírus do tipo. Embora se fale dos efeitos danosos sobre outros órgãos vitais em pacientes com comorbidades como algo inédito, isso pode ocorrer em outras síndromes respiratórias.
Para ele, o que determina a alta letalidade no momento, é o contágio exorbitante decorrente de uma epidemia. É o alto contágio de Sars-Cov2 que determina o número maior de mortes, do que outras gripes, do que a letalidade específica do vírus. Com a gradual redução do contágio, a covid-19 deve matar com a mesma letalidade de outras gripes que atingem pacientes com comorbidades.
“Não acho que a covid-19 vai continuar matando mais que outras doenças muito mais letais, como as cardiovasculares ou cânceres, conforme a epidemia for superada”.
A resistência é paliativa
Outro elemento que agrava os números de mortes é a total ausência de um tratamento protocolar. Não existe nada de efetivo, segundo o médico, e unificado para tratar o doente, senão paliativos que alguns hospitais escolhem para indicar a seus pacientes.
“Não existe nenhum medicamento de eficácia comprovada contra esse vírus. Todas as perspectivas de antivirais em teste não se tornarão protocolares para tratamento dessa epidemia, ainda, devido à demora para se tornarem comprovadas”, enfatizou.
Boulos explicou que só o que se pode fazer é manter o paciente sintomático vivo, para que se prolongue sua recuperação permitindo sair do contágio com vida. Este é o papel dos respiradores, pois, sem eles, a pessoa com dificuldades respiratórias certamente morrerá antes de superar o ataque viral. “O vírus tem uma fase aguda, age e depois vai embora; se nessa fase aguda a pessoa não tiver acesso à respiração artificial, ela morre antes do vírus arrefecer o ataque”, explicou. Isso não vale para pessoas com depressão imunológica que podem morrer mais rápido, por falta de resistência ao ataque do vírus. Mas a maioria das pessoas se recupera com o respirador, por isso, sua importância neste momento.
O infectologista também salienta que, embora proliferem notícias com esperança de desenvolvimento de vacinas em andamento, elas não devem ficar prontas em menos de 18 meses, mesmo fazendo fast-track e passando por cima de procedimentos para acelerar a utilização. “É possível que, quando essa vacine estiver pronta para utilização, a epidemia já tenha passado”, afirmou.
Sobre expectativas de onde deve vir a primeira vacina, Boulos acredita que deve vir dos EUA, onde estão os maiores laboratórios públicos e privados. “Mesmo as melhores universidades não conseguem competir com a indústria farmacêutica e depende dela e de sua tecnologia avançada para desenvolver pesquisas. Por verem lucro no produto, essa indústria investe muito mais”, explicou ele.
Covid-19 versus AVC
Segundo os dados mais recentes do SIM, a principal causa de morte no país são as doenças cerebrovasculares — grupo que engloba as disfunções relacionadas a vasos sanguíneos que irrigam o cérebro, como AVC (Acidente Vascular Cerebral) — com 99 mil registros em 2018. Uma média de 273 óbitos por dia.
Se levarmos em conta todas as causas nos últimos cinco anos com dados disponíveis, as doenças cerebrovasculares historicamente têm os maiores números, e tiveram seu ápice em 2016, com taxa de mortalidade diária de 282 por dia.
Outras causas de mortes com números altos já foram superadas com folga pela covid-19. É o caso de infarto, pneumonia, diabetes, hipertensão e qualquer tipo ou agrupamento de câncer. Mortes por acidentes ou agressões (que inclui assassinatos e suicídios), em 2018, também não chegam nem sequer à metade da média diária da covid-19 no final de abril.
O gargalo estatístico
Os dados foram divulgados pelo UOL que os obteve comparando, desde 2015, o banco de dados do sistema que faz a contagem oficial de óbitos no país — que especifica o número de mortes por causa —com o do Portal da Transparência da Arpen (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), que tem divulgado em tempo real as causas inseridas nos registros de óbito.
Os dados mais recentes do SIM são referentes a 2018. Além desse ano, a reportagem consultou também todas as causas de morte a partir de 2015. Nos últimos dez dias de abril, a covid-19 matou ao menos 365 pessoas por dia, em média — os dados finais ainda serão acrescidos com novas ocorrências a serem inseridas no portal.
Apesar de já superar a média de todas as outras causas, dois fatores ainda pesam a favor da letalidade da covid-19. O primeiro é que, como os cartórios têm até 13 dias — cinco para efetuar o registro de óbito, e depois até oito para enviar o ato à Central Nacional de Informações do Registro Civil — para atualizar os dados, os números ainda são parciais e têm atualizações constantes até o fim desse prazo. Além disso, há uma série de mortes registradas apenas com causas genéricas — SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), pneumonia ou insuficiência respiratória — que podem ter por trás, como agente infeccioso, o novo coronavírus.
Os dados dos cartórios são mais atualizados que os informados diariamente em boletim pelo Ministério da Saúde — que recebe os dados das secretarias estaduais, que por sua vez são abastecidos pelas secretarias municipais de saúde.
Um exemplo do atraso é o fato do pico de mortes por dia que, segundo os dados do ministério, teria ocorrido no dia 20 de abril, quando eram computadas 255 óbitos. No caso dos cartórios, esse número já é de 305. No dia 28, temos o ápice das mortes, segundo os cartórios, quando já são 410 mortes diagnosticadas pelos médicos como covid-19.
Boulos não acredita que a subnotificação de mortes seja muito significativa, a depender da capacidade dos municípios de todo o país registrá-las. Embora a realidade em municípios maiores e mais estruturados seja mais confiável, ele reafirma que, mesmo depois do óbito, é possível realizar o teste para covid-19.
Outro dado que o infectologista busca desmistificar, por falta de dados comprobatórios efetivos, é o de que haveria algum motivo biológico para o baixo contagio e letalidade da doença em certas localidades, com os estados do Mato Grosso do Sul e Tocantins, que estão no fim da fila com números muito baixos de casos e óbitos.
Para ele, isso se deve a estrutura urbana dessas localidades. Metrópoles com aglomerados populacionais muito concentrados, com deficiências estruturais de saneamento e habitação, assim como circulação muito alta de pessoas entre regiões, tendem a espalhar o vírus com maior velocidade. É o caso das periferias de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Manaus e Fortaleza. As cidades menores e mais planejadas como essas do interior, evitam automaticamente a alta concentração de indivíduos, mesmo com quarentenas flexibilizadas.
Volta ao século passado
A vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), Bernadete Peres, explica que as mortes por causas infecciosas vinham caindo no Brasil ao longo dos anos, e cita que a curva foi bruscamente alterada com a chegada do novo coronavírus.
“O Brasil, ao longo de décadas, vem passando pela transição epidemiológica onde as doenças crônicas não transmissíveis superaram as doenças infecciosas. Com esse cenário atual, voltamos ao início do século passado”, diz.
Diferente do ponto de vista do doutor Boulos, que não acredita em subnotificação relevante de óbitos, apenas de contágios, Bernadete avalia que os dados reais são muito maiores que os divulgados oficialmente — e que dificilmente saberemos o número exato um dia.
“O Ministério da Saúde não divulga suspeitos, só define como caso confirmado com teste. Como estamos entre os países que menos testam, e não tem fechamento de caso por critério clínico-epidemiológico, provavelmente vários óbitos por SRAG estão sendo fechados como pneumonia atípica”, explica.
Um dos exemplos citado por ela está nas mortes ocorridas em Manaus, onde o mês de abril registrou um aumento de 578% no número de mortes por causas respiratórias, sendo apenas um quarto delas registrada como covid-19. “Nosso problema é que não testamos, então não sabemos a dimensão real do problema. A gente só olha quem está grave, como se a epidemia fosse de SRAG.
Só que a doença é a covid-19, e é fundamental sabermos sobre todos os infectados, não só a ponta do iceberg. Muita gente que morre em casa não está entrando nas estatísticas”, completa Bernadete. A vice-presidente da Abrasco também lembra que o Brasil ainda não enfrenta o período de pico da doença, e acredita que a superlotação hospitalar deve elevar ainda mais o número absoluto e a taxa de mortalidade da doença. “Além desse colapso aumentar a letalidade, temos que encarar ainda a dificuldade de insumos, ambulâncias e até de transferência segura”, finaliza.
Com informações do UOL