Pedro Serrano: É a ciência, estúpido!

Não adianta alegar razões econômicas para sabotar a quarentena. Bolsonaro tem o dever de seguir as recomendações das autoridades sanitárias.

Foto: Silvia Izquierdo/AP

A pandemia tem imposto, no ambiente político, uma série de medidas extraordinárias – portarias, decretos e normas próprias de uma situação de emergência, com um fim específico e transitório. Importante esclarecer que, no campo teórico, há uma distinção clara entre legalidade extraordinária e estado de exceção.

Enquanto o estado de exceção é regido pela anomia, ou seja, pela ausência de norma, caracterizada pela suspensão dos direitos para se combater o inimigo ou atender a alguma emergência, a legalidade extraordinária é o instrumento por meio do qual o Estado Democrático de Direito responde juridicamente a uma situação de emergência social, de necessidade pública.

A legalidade extraordinária não implica, portanto, a supressão de direitos, mas sim a instauração de um regime jurídico especial, para um momento particular. O poder público age por dever, e não por poder. Em situação de normalidade, os governantes agem também por dever mais do que por poder, mas em circunstâncias emergenciais isso se justifica com muito mais intensidade. O exercício desse dever esbarra, porém, em limitações. Os governantes não podem se utilizar dos poderes excepcionais que lhe são conferidos nestes momentos para fins políticos, como perseguir adversários.

Uma boa medida para que não haja excessos é que as leis vigentes sejam aplicadas, evitando-se produzir legislação extraordinária. Vale observar que a ordem jurídica brasileira possui instrumental suficiente para enfrentamento de uma emergência sanitária como a que estamos vivenciando. Não cabe, portanto, como foi cogitado por alguns integrantes do governo, a decretação de estado de defesa ou de sítio para combater a pandemia.

Destaque-se o excelente artigo de Lênio Streck sobre esse tema, demonstrando claramente que o estado de sítio ou o estado de defesa são institutos que servem, sobretudo, para garantir a segurança nacional e a paz social. Ou seja, são aplicáveis em situações de guerra ou de desordem pública. Não são adequados para questões sanitárias.

lockdown, que é a imposição de medidas mais rígidas de isolamento social, comprovadamente eficiente em algumas partes do mundo para contenção da pandemia, parece a justa medida para o momento atual. Pode ser adotado independentemente da decretação de estado de sítio e de defesa, como aponta Streck. É natural, em situações de emergência sanitária, haver restrição ao direito de ir e vir. Essa restrição ocorre, inclusive, em situações de normalidade e cotidianas, como o bloqueio de vias para a realização de eventos culturais e desportivos.

Evidentemente, o critério que deve comandar quais as medidas restritivas e qual a extensão delas é a ciência. É a ciência que deve determinar se é necessário ou não o lockdown, isolamento mais ou menos restritivo.

Esse tema é há muito tempo tratado pelo Direito. O professor Themístocles Brandão Cavalcanti, ministro do STF na década de 1960, dizia que a ciência deve ser o parâmetro para as decisões governamentais no tema da quarentena. Segundo o jurista, o elemento técnico e científico deveria justificar alterações na “medida da restrição policial”, contra a qual não se poderiam sobrepor nem interesses econômicos nem comerciais.

Deve prevalecer a medida tida como mais cautelosa pelo conhecimento científico, a que seja mais eficiente para salvar vidas e preservar a saúde da população. Aos que se valem do discurso de que as restrições prejudicam a economia, é sempre bom frisar que a ciência também é o modo mais seguro de mitigar danos econômicos.

O presidente da República equivoca-se quando lança mão de orientações “alternativas”, que chegam ao ponto do negacionismo da pandemia, indo não só contra o consenso majoritário da ciência, mas também contra o da ampla maioria dos chefes de Estado do mundo. Bolsonaro pode ter as próprias opiniões, mas o dever do chefe de Estado, em um momento de calamidade pública, é de guardá-las para si e seguir o que a ciência recomenda.

O presidente e seus seguidores têm pregado verdadeira desobediência civil aos comandos das autoridades sanitárias e dos governadores e prefeitos. Trata-se de um comportamento que, em tese, pode caracterizar crime de responsabilidade e, eventualmente, até mesmo prática de crime comum.

É uma postura inaceitável no plano jurídico e no plano moral, em absoluto desacordo com a Constituição e os consequentes deveres de agir que ela estabelece para o chefe do Executivo. É inadmissível que Bolsonaro e seus asseclas continuem tratando a questão com deboche e descaso, enquanto milhares de brasileiros lamentam a perda de seus familiares e amigos.

Fonte: CartaCapital

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