Como a ausência do Estado tira 20 anos de vida do morador da periferia

Precisamos lutar pelo empoderamento da periferia paulistana, para alcançar oportunidades semelhantes às dos bairros mais centrais – nem que seja pelo menos na expectativa de tempo e qualidade de vida

Cheguei ao Grajaú com meus pais com quase 10 anos. Dormimos uma noite gelada em cima do capim de brejo e embaixo de um barraco improvisado de plástico preto. Ao lado, a barraca maior era laranja, esburacada pelo uso e gasta pelo tempo. Dentro dela funcionaria a cozinha aonde comeríamos macarrão parafuso com molho de tomate nas próximas semanas. Pai, mãe, três irmãos e várias outras famílias vigiavam o terreno onde estávamos, esperando para ocupar – cada família esperançosa de ter um lar. Somente após anos descobri que aquela vigília era para impedir que outro grupo ocupasse primeiro.

Era 26 de abril de 1988. Lembro como hoje o cheiro da terra preta e mato que íamos cortando enquanto meus pais cercavam nosso primeiro pedaço de terra em São Paulo. O grupo inicial de 50 famílias logo se tornou mais de 2 mil e em pouquíssimo tempo – todos os lugares vagos foram ocupados. Muita gente realmente precisava da terra para morar e por ali ficou. Dois ou três anos depois, o grupo de crianças que se formou e ali brincava viraram 27 jovens, filhos dos fundadores iniciais ou novos moradores que compraram as casas por ali. Era o início da década de 1990.

A migração para São Paulo era fortíssima – a cidade era o futuro promissor de muito migrante, trabalhadores sonhadores com filhos jovens. Mas naquela região não tinha nada. Não tinha saneamento, água, luz ou qualquer sinal de Estado. As drogas tomavam conta da sociedade – e no nosso bairro não foi diferente. O IBGE passou por aqui em 1992 e nunca mais voltou, deixando-nos uma esperança torturante de ter água canalizada, energia elétrica “oficial” e asfalto – uma esperança de passar a ser notado pelo Estado como cidadão.

A água encanada e luz regularizada demoraram pelo menos cinco anos para chegar. O asfalto só chegou dez anos depois da água. Trabalhar era a única opção para pais e mães. Como os empregos ficavam a mais de uma hora de ônibus do nosso bairro, eles passavam o dia fora de casa. Poucos tinham dinheiro para pagar alguém que pudesse cuidar dos filhos. Resultado: quando não estavam na escola, os filhos ficavam sozinhos em casa ou na rua. Infelizmente, boa parte desses jovens foi seduzida pelo consumo de drogas e álcool e acabou se envolvendo com a marginalidade.

Mortes faziam parte do cotidiano no Grajaú. Em pelo menos três que presenciei, tive de correr para não morrer, mesmo não tendo qualquer envolvimento com drogas ou com o crime. Me lembro claramente das várias situações em que passei por um fio.

Trabalho desde os 9 anos. Estava com 14 quando vendi areia para um cliente e fui ao pequeno terreno onde ficava o estoque, para liberar o material e retirá-lo no carrinho de mão. Quando voltava, ouvi um tiro. Estava segurando uma pá, dessas ovais de construção civil. Me encolhi instintivamente ao ouvir passando do lado da minha orelha esquerda um zunido agudo que explodiu em um barulho de metal, na caixa quadrada do registro de luz, no poste de alumínio, muito comum na periferia. Só então percebi que alguém havia atirado em mim.

Não tinha a mínima ideia de onde havia partido o disparo. Olhei para trás e, a uns 200 metros de distância, um cara branco estava com uma arma apontada para mim. Senti que ele ia dar outro tiro. Mas eu queria saber o porquê. Acenei com os dois braços em um gesto de pergunta e uma expressão no rosto – um “por quê?”. Ele pôs a mão acima dos olhos, como quem quer fazer uma aba de boné para melhorar a visão, e abaixou a arma. Com o outro braço, num gesto rápido, a mão vazia indo de baixo pra cima, a feição de impaciência, ele acenou como se dissesse: “Ah! É a pessoa errada. Vai embora, não é quem eu pensava que era. Vai, vai, vai…”. E apontou a arma novamente para mim: “Ou quer que eu atire em você?!”.

Eu me virei e caminhei. Andei os próximos passos à espera do outro tiro. Não poderia correr, senti que, se fizesse isso, pareceria culpado sei lá do quê. Quando olhei por cima do ombro, vi que ele saía caminhando tranquilamente para o beco que ficava à esquerda da bifurcação. Voltei para o balcão da loja para atender ao próximo cliente. Nunca soube quem atirou em mim, por que ou quem o atirador pensou que eu era. A única coisa que sei é que naquele dia eu teria morrido de graça. Mesmo trabalhando de domingo a domingo, ia morrer de graça.

Por essa e outras – várias outras –, era difícil fazer planos de longo prazo. Afinal, que futuro se eu acreditava piamente que não chegaria aos 24 anos?

A violência na periferia fazia parte do nosso cotidiano e as principais vítimas eram jovens do sexo masculino, negro, com baixa escolaridade e pouca qualificação profissional. Filho de rico, quando usa drogas, é considerado garoto problemático em uma fase que vai passar. Filho de pobre é considerado delinquente e empurrado socialmente para a marginalidade.

O fácil acesso às armas de fogo contribuía com mais de 50% dos casos de homicídios em 1991 e foi aumentando durante a década. Em 1993, o município de São Paulo tinha números alarmantes de assassinatos. Por aqui, morriam mais de 50 homens a cada 100 mil habitantes. Eu via meus colegas da mesma rua morrerem rápido. O grupo que antes dava dois times de futebol de campo fácil, com “próximo” esperando para entrar no disputado “30 minutos ou dois gols”, passou a ser somente um time de futebol de society. Mesmo assim, antes dos 20 perdemos o goleiro. Em 1996, a taxa de homicídios no município de São Paulo já era de 55,6 por 100 mil habitantes.

Fui trabalhar fora da periferia em 1997 para ficar longe do cotidiano violento. Sempre tive a sensação de que poderia fazer algo para melhorar a condição de vida dos jovens dali – e sempre com a ideia de que eles, pelo menos, tivessem a mesma chance que eu de sobreviver à adolescência. Quando cheguei aos 22, passei a enxergar um possível futuro. Entrei na faculdade aos 24. Percebi que seria a única chance de ser ouvido. Que seria a única chance de ser respeitado quando tratasse da violência na periferia. Estudei Estatística, Atuária, demografia, direito e hoje tenho mestrado em Estatística pela USP. Mas só consegui chegar aqui aos 40.

Algumas coisas mudaram na cidade de São Paulo. A nossa periferia, porém, não melhorou tanto. O distanciamento do poder público ainda é notável. Por aqui, “poder público” é sinônimo de repressão policial.

Apesar da queda nos números da violência por armas de fogo (de 55,6 em 1996 para 10,14 por 100 mil em 2018), a vulnerabilidade ainda continua alarmante entre a população periférica – e expressivamente mais alta quando se fala na população negra da região. Os indicadores de renda, de saúde, de educação, quando reunidos, mostram que a expectativa de vida na periferia é cerca de 20 anos menor que em bairros mais ricos em média. Isso mesmo: são duas décadas de diferença.

Em média, não chegam sequer a 60 anos de vida os moradores de distritos paulistanos como Cidade Tiradentes, Marsilac, Grajaú, Jardim Ângela, Parelheiros, Anhanguera e São Rafael. Por outro lado, Moema, região nobre do Centro expandido, tem expectativa de vida superior a 80 anos. O recorte racial também é evidente: homens negros tem três vezes mais chances de morrer assassinado do que homens brancos.

Mesmo com de todas as vantagens que já tem, a região central terá um aumento de 189% nos investimentos em manutenção de vias e áreas públicas em 2020. Para a Subprefeitura Sé, serão destinados cerca de R$ 100 milhões neste ano. Já na periferia, a Subprefeitura Capela do Socorro – a segunda mais populosa da cidade – teve um corte de 30% do orçamento em comparação com 2019. É a clara manutenção do privilégio.

Muita coisa precisa melhorar! É por isso que precisamos lutar pelo empoderamento da periferia paulistana, para alcançar oportunidades semelhantes às dos bairros mais centrais – nem que seja pelo menos na expectativa de tempo e qualidade de vida.

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