Índia vai se tornando rapidamente numa grande tragédia da pandemia

Saídos de severa e antecipada quarentena, indianos vão avançando no podium da pandemia, sem sistema de saúde adequado, muita desnutrição e nenhuma notificação oficial de óbitos.

Desnutrição generalizada torna ainda mais vulnerável à Covid-19 a população indiana. Na foto, distribuição de alimentos para população carente. foto India Water Portal

Em março, o governo indiano impôs rigoroso confinamento para seus 1,3 bilhão de habitantes, com bloqueios policiais nas ruas e fechamento total da economia. Mas o tombo histórico na economia, de 24% do PIB, forçou a reabertura, e o número de infecções bate recordes diários: já são mais de 4,2 milhões, o segundo maior contingente do mundo.

Vizinho da China, o país agiu rápido e decretou o confinamento total no fim de março, quando sequer havia contágio comunitário, para tentar evitar a disseminação do novo coronavírus. Como a maioria da população vive de trabalho informal, sem poder trabalhar, muitos tiveram que voltar a suas comunidades rurais. Mas o despreparo do governo foi tal, que milhões de pessoas muito pobres precisaram se deslocar a pé pelo país por seis semanas, tendo ocorrido mortes e muito sofrimento.

A reabertura gradual começou em junho, com 284 mil contágios, e nas últimas semanas a Índia assistiu à escalada da doença e ao recorde no número de casos diários confirmados – foram 94 mil só nesta segunda-feira. Apenas cinemas, escolas e fronteiras continuam fechadas, mesmo com a população assistindo à explosão de infecções por todo o país.

Agora, o país passou o Brasil no número de casos, são mais de 4,2 milhões, e é o terceiro em número de óbitos, sendo que o problema da subnotificação de causa mortis no país é dos mais problemáticos do mundo.

A epidemiologista da Vital Strategies, Fátima Marinho, organização que auxilia 63 países no combate à pandemia e que esteve na Índia no começo de 2020, detalha as particularidades do sistema de saúde indiano, o que deu errado no lockdown por lá e os desafios de países pobres para frear a Covid-19.

Porque o lockdown rigoroso não foi suficiente para conter a circulação do vírus? Segundo a epidemiologista, foi justamente depois da extinção do lockdown que começa a explosão de casos. Mas ela avalia que a doença já tinha ampla circulação entre a população que é muito jovem, e portanto, assintomática. Outro motivo da explosão da curva epidêmica tem a ver com o aumento na testagem da população, na medida em que os números aumentam em todos os países em que a testagem é expandida.

A médica tem dificuldade de fazer a crítica das medidas governamentais, já que se seguiu os protocolos recomendados. Mas ela afirma que o lockdown foi decretado muito cedo no país, quando ainda não havia contágio comunitário (482 casos e nove mortes). O ideal seria fazer rastreamento de casos pela vigilância sanitária, enquanto ainda eram tão baixos. Assim como no Brasil, ela diz que houve um desgaste da população e da economia com tanto tempo de fechamento do comércio em cidades onde ainda nem havia casos ou mortes.

“Quando você tem poucos casos, você tem tempo de rastrear casos e contatos. Faça isso! Deixe para fazer o lockdown quando estiver numa outra fase, quando tiver perdido a batalha para o rastreamento de casos e contatos. Você não consegue manter lockdown por muito tempo, e acaba acontecendo o que se vê na Índia, começando a relaxar quando há expansão do contágio”, explicou.

Ela observa que o sul da Índia ainda apresenta pouco contágio por Covid-19, o que pode ser um sinal do tamanho da expansão que ainda pode ocorrer. Com a crise econômica, muita gente está ficando sem trabalho e voltando das grandes cidades para suas comunidades de origem, levando o vírus consigo. Ele comparou esse fenômeno ao caso da Amazônia, em que índios que foram à cidade buscar o auxilio emergencial tiveram que viajar de volta para suas aldeias levando a pandemia junto, muitas vezes sem conseguir o dinheiro.

Saúde pública

Fátima explica que o sistema de saúde começa público, em 1983, mas é responsabilidade dos estados, fazendo com que 70% da população tenha que recorrer ao sistema privado. Só em 2018 ele se torna nacional, portanto ainda com atendimento muito baixo da população. “Tem outro problema: a Índia investe um por cento do seu PIB em saúde, o que é muito menos que outros países pobres. Não é apenas subfinanciamento, mas um grande subfinanciamento”, informa ela.

Segundo pesquisas, uma parcela grande dessa população, que também é superlativa, não tem condições de pagar pelo atendimento médico. Em estados mais pobres do país, a oferta de saúde pública é irrisória, revelando as assimetrias do sistema de saúde que deve mudar nos próximos anos com a centralização do financiamento.

De acordo com a epidemiologista, países em desenvolvimento, vulneráveis a crises econômicas graves, sofrem mais com a pandemia. Para ela, falta sistema de saúde para rastreamento de casos e contatos, por exemplo, que depende de muitos profissionais trabalhando e ampla testagem de antígenos. A  hospitalização prolongada é outro problema por ser muito cara.

Fátima conta que o Brasil tem uma assistência hospitalar muito melhor que a da Índia. “Por mais que todo mundo reclame, é muito mais avançada, tem muito mais tecnologia, muito mais gente preparada, além de ser muito mais organizado”.

Ela conta que na Índia, quando alguém fica doente, uma boa parte da família vai junto para o hospital. A família se instala no hospital com o internado, causando enorme aglomeração. “A mídia no Brasil cansou de mostrar pacientes nas macas em corredores de pronto socorro. Na Índia, eles ficam tomando soro deitados no chão. É muito mais precário!”, concluiu.

Subnotificação total

Outro mistério indiano é a baixa letalidade da Covid-19, se comparada com o alto número de contágios. Para mais de 4 milhões de casos, estão notificadas “apenas” 72 mil mortes. No Brasil, por exemplo, essa correlação é quase o dobro, mesmo com subnotificação calculada em cerca de 50%. Fátima diz que o número de óbitos não faz sentido, pois existe um número enorme de subnutridos no país, o que os tornam mais vulneráveis à gravidade da doença, por não ter sequer capacidade de resposta imunológica à Covid-19.

Ela conta que na Índia, existem muitos adultos subnutridos, especialmente entre as mulheres. “Se alguém tem que comer numa família é o homem. As mulheres comem se sobrar comida. É o único país do mundo em que mulheres, em todos os grupos de idade, morrem mais que homens”, pontuou Fátima.

Assalariados diários, mão-de-obra migrante, idosos e sem-teto, estão sofrendo o impacto da pandemia na Índia. Com os ganhos cortados, obter refeições tornou-se impossível.
Voluntários do Cruz Vermelha tentam ajudá-los com suprimentos. foto: IndianRedCross

Outro elemento que explica a baixa notificação de mortes é que a Índia sequer tem um sistema de registro de causa de mortes. É um dos poucos países, junto com outros africanos, em que isso ocorre. Existem teorias não comprovadas cientificamente de que os indianos seriam mais imunes a certas doenças, e que a maioria jovem da população também reduziria o número de mortes. Mas Fátima considera certo que a falta de um registro de causas de mortes afeta muito o levantamento oficial de estatísticas da Covid-19. “Na Índia, dados de mortes são estimados, porque o dado real não traz a causa mortis”, explica. Segundo ela, a estimativa é feita a partir de pesquisa anual, em que são entrevistadas 10 mil famílias de mais de um bilhão de habitantes sobre a causa mortis do membro da família no ano anterior.

Edição do podcast O Assunto, do G1.

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