Mundo falha na pandemia e no aquecimento global, avalia líder da ONU
Em entrevista à agência de notícias portuguesa Lusa, António Guterres diz que a Covid-19 é um “teste” ao qual a comunidade internacional está falhaando. Outro teste é o da crise climática, e para esse “não há vacina”.
Publicado 17/10/2020 12:17
O secretário-geral da ONU defende que “o maior desafio existencial” que o mundo enfrenta é a crise climática, alertando que “não há vacina para o aquecimento do planeta”. Sobre a pandemia da Covid-19, o ex-primeiro-ministro português não é mais otimista: é outro grande desafio, que está funcionando como “teste” à comunidade internacional, mas, infelizmente, o mundo está falhando.
“O maior desafio existencial que enfrentamos é a crise climática. Não há vacina para o aquecimento do planeta”, disse António Guterres, quando questionado sobre quais foram os outros grandes desafios, a par da atual crise pandémica do novo coronavírus, que enfrentou desde que assumiu a liderança da Organização das Nações Unidas (ONU) em janeiro de 2017.
Para Guterres, contudo, o desafio da pandemia, que se está colocando à comunidade internacional neste momento, não está a ser superado. “A pandemia de Covid-19 constitui um grande desafio mundial – para toda a comunidade internacional, para o multilateralismo e para mim, enquanto secretário-geral das Nações Unidas. Infelizmente, é um teste que, até ao momento, a comunidade internacional está falharndo”, disse.
“Morreram já mais de um milhão de pessoas e mais de 30 milhões foram infetadas, porque não se verificou um nível de coordenação suficiente na luta contra o vírus”, enfatizou. Isto mostrou “sem sombra de dúvida” a fragilidade do mundo atual, disse, lamentando a falta de demonstração de uma “solidariedade necessária” para com os países que, sem apoio, não podem sobreviver ao impacto económico e social da pandemia. “Se não forem tomadas medidas fortes e coordenadas, um vírus microscópico pode empurrar milhões de pessoas para a pobreza e a fome, com efeitos económicos devastadores nos próximos anos”, sublinhou.
Guterres afirmou ter “orgulho” no trabalho desenvolvido “pela família das Nações Unidas” que se mobilizou para “salvar vidas, controlar a transmissão do vírus e aliviar as consequências económicas”. “Enviámos equipamento para mais de 130 países, na ordem das centenas de milhão de unidades; proporcionámos educação a 155 milhões de crianças e formámos quase dois milhões de profissionais de saúde e comunitários”, referiu.
Mas, e apesar da gravidade da atual crise da doença Covid-19, António Guterres advertiu que a fragilidade global “é o verdadeiro desafio” que o mundo enfrenta, e essa “vai muito além da pandemia”. E enumerou: “A crise climática já está causando estragos em alguns países e regiões, e não estamos no caminho certo para implementar o Acordo de Paris [sobre as alterações climáticas]. Criminosos e terroristas estão a explorar ‘áreas cinzentas’ na regulação do ciberespaço. O regime de desarmamento nuclear está enfraquecendo e o risco de proliferação está aumentando. A xenofobia e o discurso de ódio estão envenenando o debate democrático”.
“Portanto, a pandemia deve ser um sinal de alerta. A resposta exige unidade e solidariedade, que possibilite uma recuperação forte baseada em comunidades e economias resilientes e sustentáveis, e permita enfrentar os outros seríssimos desafios que enfrentamos”, concluiu.
Sobre o dossiê climático, o secretário-geral da ONU frisou que, nos últimos quatro anos, tem vindo a insistir para que os líderes de todo o mundo se comprometam seriamente com a aplicação do Acordo de Paris (sobre as alterações climáticas) e demonstrem ambição para ir mais além, “de modo a evitar um aumento catastrófico das temperaturas globais”. É que, disse, a crise climática é, olhando para a big picture, o maior desafio de todos e, para esse, não há vacina. “O maior desafio existencial que enfrentamos é a crise climática. Não há vacina para o aquecimento do planeta”, disse.
Assinado em dezembro de 2015 durante a conferência das Nações Unidas sobre o clima (COP21) na capital francesa, o objetivo principal do Acordo de Paris é limitar o aumento da temperatura média mundial “bem abaixo” dos 2ºC em relação aos níveis pré-industriais e em envidar esforços para limitar o aumento a 1,5ºC. O alcance de tal meta está assente na aplicação de medidas que limitem ou reduzam a emissão global de gases com efeito de estufa, nomeadamente uma redução até 2030 de, pelo menos, 45% nas emissões globais em relação aos níveis de 1990 e também uma neutralidade carbónica antes de 2050.
“Estamos fazendo muito pouco, muito tarde, como provam as consequências de furacões, inundações, incêndios florestais e secas a que temos vindo a assistir. Precisamos de uma mudança radical para responder com seriedade e rapidez acrescidas face ao que tem sido feito até agora”, prosseguiu. Sobre o Acordo de Paris é preciso lembrar que os Estados Unidos, um dos maiores emissores mundiais de gases com efeito de estufa, anunciou em junho de 2017 a saída deste acordo climático.
Apesar das palavras de alerta, António Guterres admitiu, no entanto, que constata que “existem sinais de mudança positivos”, “não apenas a nível governamental, mas também nas empresas, nas cidades e da parte de líderes regionais”. “É essencial que a COP26, que se realizará em Glasgow no próximo ano, seja bem-sucedida e que todos os nossos esforços se orientem pela ciência”, referiu.
A 26.ª Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP26), que pretendia relançar o Acordo de Paris (após o anúncio da retirada norte-americana), estava prevista para este ano em Glasgow (Escócia, Reino Unido), mas por causa da pandemia da doença Covid-19, e à semelhança de outras reuniões internacionais, foi adiada e está prevista para novembro de 2021.
A poucos meses de concluir quatro anos de mandato, o secretário-geral da ONU reconhece ter uma “enorme frustração” motivada pela “falta de unidade” da comunidade internacional para procurar “soluções coerentes” para os muitos desafios mundiais, nomeadamente os conflitos. “É, para mim, motivo de enorme frustração a falta de unidade da comunidade internacional na procura de soluções coerentes para os principais desafios mundiais, incluindo, entre outros, os conflitos que se arrastam no Afeganistão, Iémen, Síria”, disse.
Conflitos estes que, frisou, “são fonte de sofrimento para milhões de pessoas em zonas de guerra” e “estão na origem de um número recorde de pessoas que se veem forçadas a abandonar as suas casas como refugiados e deslocados internos”. “No mundo interligado em que vivemos, urge reconhecer uma verdade essencial: ao demonstrarmos solidariedade, zelamos também pelos nossos interesses próprios! Todos perdemos, quando se ignora esta realidade”, reforçou.
E argumentou que a continuação de conflitos em vários pontos do mundo “gera instabilidade, acentua fragilidades e aumenta todos os tipos de riscos”, incluindo o extremismo e o terrorismo global, que “são uma ameaça para todos”.
Afirmando que não cabe ao próprio enumerar tudo o que foi alcançado até ao momento no decorrer do mandato, Guterres referiu, porém, que foram feitos alguns progressos na reorientação do trabalho da organização internacional em matéria de paz e segurança em torno da prevenção de conflitos. “É difícil comprovar o sucesso da prevenção, mas estou convicto que houve várias ocasiões em que os nossos esforços contribuíram para aliviar crises, evitar potenciais situações de violência e salvar vidas”, disse.
Ainda sobre conflitos, o secretário-geral da ONU afirmou sentir-se “encorajado” pelo fato de o apelo para um cessar-fogo global, que lançou em março deste ano no âmbito do combate à pandemia do novo coronavírus, ter sido apoiado por cerca de 180 Estados-membros da organização, por mais de 20 movimentos armados e por centenas de organizações da sociedade civil e regionais. “Estamos determinados em continuar a trabalhar neste objetivo até ao final do ano para que nos possamos concentrar no nosso inimigo comum: a pandemia da Covid-19”, sublinhou.
Sobre outras áreas de atuação, o secretário-geral da ONU mencionou ainda o seu “Apelo à Ação” no domínio dos direitos humanos, a agenda de desarmamento que propôs e os esforços que desenvolveu para promover a cooperação em tecnologia digital. As questões da igualdade de género são outras das matérias mencionadas pelo responsável.
“Apraz-me registar que, no decurso do meu mandato como secretário-geral, tenha sido alcançada paridade de género entre todos os altos funcionários da ONU. Não se trata, apenas, de garantir oportunidades iguais para as mulheres; a paridade é essencial para garantir a eficácia e eficiência da ação das Nações Unidas. A nossa equipe deve ser representativa do universo das pessoas que servimos”, vincou.