China enfrenta pandemia de Covid-19 mantendo crescimento e inovação

Em debate promovido pela Fundação Maurício Grabois, o professor Diego Pautasso falou sobre a dianteira da China desde o transporte ferroviário e predomínio mundial de sua malha portuária até o avanço em sistemas de telecomunicação e robótica, entre outros fatores

A China coloca o povo em primeiro lugar l Foto: Divulgação

A pandemia catalisou tendências sistêmicas que já vinham se gestando. Quais são essas tendências sistêmicas que vinham se gestando há pelo menos três ou quatro décadas? Basicamente em duas dimensões: uma dimensão geoeconômica e uma dimensão geopolítica.

Do ponto de vista geoeconômico, a partir dos anos 1970 se desencadeia uma revolução científico-tecnológica, cujo epicentro era a microeletrônica, a informática, que vai se desdobrar na robótica e em outros mecanismos inclusive de reorganização da produção, localmente e globalmente, e mais recentemente esse processo se aprofunda com aquilo que tem se chamado de indústria 4.0, que inclui inteligência artificial, impressora 3D, e uma série de mecanismos a elas associados.

O que vinha se desenvolvendo há décadas me parece evidente que, no contexto da pandemia, foi catalisado. Mais do que nunca serviços de e-commerce, ensino à distância, atividades formativas que é o que estamos fazendo, atendimento de saúde, padrões de saúde e de informação, a própria dinâmica política, mais do que nunca adentram nessa arena das novas tecnologias.

Isso me parece uma variável fundamental e é claro que a pandemia acelerou isso. A pandemia também colocou em evidência e acelerou as contradições decorrentes do desmonte dos aparelhos estatais nas últimas duas, três décadas, o ataque aos Estados de Bem-Estar e a escalada do neoliberalismo e expôs a fragilidade dos Estados, sobretudo os Estados da Europa Ocidental – do antigo epicentro do sistema mundial – em lidar com a pandemia e seus efeitos no campo da saúde, da economia, do emprego e assim por diante e, obviamente, acelerou o desemprego, vem dificultando a retomada da economia, e expôs da maneira mais evidente as contradições da polarização social.

E obviamente, nesse quadro da pandemia, a gente assiste a um recrudescimento tanto da competição interestatal quanto intercorporativa que também já vinha se desenvolvendo nesse quadro de transição sistêmica. Então esses aspectos me parecem muito importantes do ponto de vista geoeconômico e se conectam a outros elementos geopolíticos.

Vou elencar o elemento fundamental que diz respeito à ascensão da China. Mais uma vez, cabe retomar a uma dinâmica de algumas décadas e que, me parece, que, agora, no contexto da pandemia, se acelera sobremaneira. Poderíamos voltar também no contexto da década de 1970, quando se conforma o eixo Pequim-Washington, o processo de reaproximação da China é determinante para o desencadeamento do novo ciclo de globalização e de reestruturação global do capitalismo que a gente vem assistindo.

Esse contexto vai deslocando a dinâmica produtiva do Atlântico Norte para a Bacia do Pacífico. Há um dado que eu peguei esses dias que me parece bastante ilustrativo dessa dinâmica: dos dez maiores portos do mundo, sete são chineses e só um não é da região, ou seja, não é da Bacia do Pacífico, é o décimo, é o porto de Dubai.

Quer dizer, não há nenhum porto entre as principais potências do Atlântico Norte entre os dez maiores do mundo. E se nós pegarmos os 50 maiores, 29 são da Bacia do Pacífico, da Ásia Oriental, sobretudo, ante apenas 13 do Atlântico Norte, Estados Unidos e Europa Ocidental.

Isso inegavelmente é um bom mensurador de como a dinâmica geoeconômica se desloca, obviamente afetando a correlação de forças e afetando a dinâmica geopolítica.

Um outro elemento que me chama a atenção e que foi noticiado este ano é que, na última lista das 500 maiores corporações da Fortune, é a primeira vez que a China ultrapassa os Estados Unidos, com 124 corporações.

Eu me dei ao trabalho de procurar saber como foi ou como tem sido a escalada chinesa nos últimos anos. Em 2005, portanto há apenas um década e meia atrás, a China tinha um pouco mais de 15 empresas listadas nas 500 maiores e, nesse período muito curto, conseguiu ultrapassar os Estados Unidos.

E quando a gente olha o conjunto dessas empresas a gente verifica que uma grande parte delas são empresas intensivas em tecnologia. Ou seja, a China mudou completamente o seu padrão de exportação, padrão de inserção internacional e isso me parece bastante evidente.

E tem um dado que passou despercebido, que não recebeu o devido tratamento, cerca de ¾ dessas 124 empresas são estatais, governamentais, ou públicas, portanto, estão diretamente entrelaçadas aos interesses da inserção internacional do próprio Estado chinês.

Isso me parece também muito claro e é uma variável a ser considerada nessa dinâmica de reestruturação da ordem mundial.

Um outro elemento muito claro que se conecta a essa reestruturação produtiva da China que se aprofundou sobremaneira na última década diz respeito a essa dinâmica de inovação que está se fazendo sentir em diversos campos.

A China lançou recentemente um plano chamado Made in China 2025, cujo objetivo é elencar dez setores fundamentais de inovação e internalizar os elos mais estratégicos das cadeias produtivas para economia chinesa.

Quando a gente observa alguns setores, a gente percebe uma mudança muito acelerada.

Em um primeiro momento a China produzia bens de baixo valor agregado, muito simples, cópias grosseiras, ainda no início dos anos 90. Depois as cópias se tornaram um pouco mais elaboradas, replicando e mimetizando os produtos de melhor qualidade do Ocidente.

Progressivamente a China foi inovando, criando produtos, criando marcas, e o que a gente vê em diversos setores é a China tomando a dianteira em relação às antigas corporações ocidentais que lideravam essas dinâmicas de inovação.

Por exemplo, a China avança a passos largos no mercado de pagamento eletrônico. O WeChat, por exemplo, organiza de uma maneira incrível e inovadora toda a dinâmica de pagamento e de relação de padrão de consumo, além da questão de comunicação. A Alibaba é muito mais do que uma Amazon.

Os smartphones chineses, que antes eram réplicas simples, hoje têm determinados atributos que foram lançados ou conectados ou vinculados a esses produtos que ainda as grandes corporações ocidentais, sobretudo a Apple, mas também outra concorrente da Ásia, a Samsung, não conseguiram ainda replicar.

Sem falar no campo da Inteligência Artificial, da energia limpa. Quando a gente observa a questão da produção da energia solar, energia eólica, a dianteira da China é simplesmente fantástica, a dianteira em relação ao resto do mundo é surpreendente.

Quando a gente fala da produção de motores elétricos, 99% dos ônibus elétricos hoje são produzidos na China. Grandes cidades chinesas já substituíram completamente sua frota.

A questão dos trens de alta velocidade, a maneira com que a China está implantando uma muralha revolucionária de integração, em uma economia continental que é gigantesca, a velocidade é impressionante.

Em 1996, Xangai não tinha 1 km sequer de metrô e hoje tem aproximadamente 1.000 km de metrô de excelente qualidade. Precisa de uma capacidade construtiva, de reestruturar e construir uma infraestrutura dinâmica simplesmente surpreendente.

Claro, esse crescimento da China tensiona com os Estados Unidos e essa tensão se expressa de diversas formas. A guerra comercial, portanto, é muito mais do que uma guerra tarifária, voltada a um certo protecionismo dos Estados Unidos, tendo em vista um déficit comercial que é gigantesco. Ele é isso também, mas envolve outras camadas de contradição.

Uma delas é uma camada tecnológica-produtiva, os Estados Unidos se preocupam diante de uma potência desafiante que domina setores estratégicos.

O caso da tecnologia 5G talvez seja o mais emblemático. Virou um cavalo de batalha dos Estados Unidos tentar não só evitar a presença da Huawei no mercado americano, mas fazer o possível para que seus principais aliados excluam, incluindo o Brasil, a Huawei desse novo ciclo de inovação absolutamente estratégico.

No campo da governança global as contradições também ficaram muito aguçadas no contexto da pandemia. Quando a gente compara o comportamento chinês e o comportamento estadunidense, o que a gente observa?

Os Estados Unidos se ocuparam, por um lado, em culpabilizar a China e, por outro, em fragilizar a principal organização, a OMS, responsável por liderar mecanismos políticos e sanitários que ajudassem a superar esse problema.

Não só isso, como expôs a fragilidade do Estado de Bem Estar e da Seguridade de Saúde, sobretudo nos Estados Unidos.

No caso da China, a gente tem uma corrida por desenvolver uma tecnologia, uma vacina nova, e colocá-la como um bem público global.

E, simultaneamente, disponibilizou uma quantidade importante de recursos para os países do Terceiro Mundo, mais de US$ 1 bilhão, para que eles pudessem enfrentar as vicissitudes decorrentes dessa pandemia.

E isso também acelera dinâmicas que combinam, de um lado, uma China que busca reformar as estruturas hegemônicas até então lideradas pelos Estados Unidos, sobretudo Banco Mundial e FMI, mas por outro lado trabalha de maneira sistemática para criar novos mecanismos de governança, novos mecanismos de organização sistêmica.

Podemos falar do Novo Banco de Desenvolvimento, o banco do Brics, podemos falar do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, podemos falar no Sistema de Pagamentos Internacional que a China está criando alternativo ao Swift.

O China Union Pay, em detrimento às bandeiras Visa e Mastercard, o Centro de Avaliação de Crédito Universal, em detrimento da Moody’s e do Standard Poor’s. E agora recentemente criou a Parceria Regional Abrangente, que é o maior acordo comercial do mundo, com os países da Ásia e outros parceiros regionais.

Dito isto, me parece muito claro que a economia chinesa está passando por um novo ciclo de inovação e crescimento e está transbordando regionalmente, fazendo a China se tornar também mais assertiva no campo internacional.

É por isso que eu venho trabalhando com a hipótese de que a nova Rota da Seda é uma espécie de projeto chinês de globalização. Que se inicia no âmbito euroasiático, mas que tem claras pretensões de se transformar em uma dinâmica global de globalização, assentada na produção, assentada na infraestrutura, assentada na integração regional.

E essa dinâmica, não há como sofismar, ela tende a entrar em contradição, em choque, com o paradigma liderado pelos Estados Unidos, com o paradigma do Consenso de Washington, com o paradigma do neoliberalismo e com o paradigma do recorrente recurso à força para resolver as problemáticas e os conflitos mundiais.

Parece-me que vivemos em um contexto, em uma encruzilhada histórica, em que as duas potências, uma potência que tem primazia, uma primazia dada há quase um século, se depara com uma potência desafiante, cujos modelos de desenvolvimento e de inserção possuem elementos substantivamente diferentes.

Parece-me que aí se encerra o epicentro da contradição global e seus desfechos vão passar inegavelmente por isso. Resta saber como a pandemia e como a superação dessa dinâmica pode afetar os novos, digamos assim, descaminhos da ordem global.

Essa é a ideia que eu queria colocar sobre a pandemia como catalisador dessas dinâmicas que vinham se desenhando, mais lançar esse panorama para que em um segundo momento possamos fazer um ciclo de debates, de perguntas, e trocar informações e reflexões com os colegas que compõem a mesa.

Fonte: Hora do Povo


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