Setor farmoquímico, que poderia fabricar IFA, encolheu 60% em 24 anos

Em 1995, eram 242 estabelecimentos que empregavam 13,9 mil funcionários. Em 2019, a quantidade caiu para 98 com 4,8 mil vínculos empreagatícios.

Brasil depende de IFA importado da China - Fotos: Valdo Leão / Semcom

O processo de desindustrialização que vive o Brasil é uma preocupação de boa parte dos economistas. Com a pandemia do novo coronavírus, uma face dramática da ausência de política industrial para o país ficou visível. Se tivesse investido no complexo industrial da saúde, o Brasil teria enfrentando melhor a pandemia e poderia, inclusive, ser um dos líderes na corrida pela vacina.

No momento, o Instituto Butantan e a Fiocruz, fabricantes, respectivamente, da CoronaVac e da vacina de Oxford/AstraZeneca, aguardam a entrega do Ingradiente Farmacêutico Ativo (IFA) importado da China para continuar envasando e distribuindo as doses. Um insumo como o IFA, seja de um remédio ou de uma vacina, é produzido pela indústria farmoquímica, que faz extração das matérias-primas usadas em medicamentos. Este segmento está em acentuado declínio no Brasil.

A pedido do Portal Vermelho, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) fez uma tabulação de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, acompanhando o número de estabelecimentos e empregados do setor farmoquímico de 1995 a 2019.

Em 1995, eram 242 estabelecimentos que empregavam 13,9 mil funcionários. Em 2019, a quantidade de estabelecimentos despencou 60%, para 98. Já o número de vínculos empregatícios caiu 65,5%, para 4,8 mil. Na avaliação de Rosângela Vieira dos Santos, economista técnica do Dieese, se o setor tivesse recebido incentivo, o país poderia viver uma situação mais confortável em um momento em que os países lutam para adquirir insumos escassos em meio à crise sanitária.

“É claro que a gente percebe que a China virou um grande produtor de tudo. Como as empresas trabalham com margens de lucro, acabam se movimentando para países onde a mão de obra é mais barata. Agora, isso não quer dizer que outros países não poderiam adotar esse tipo de estratégia. Parte de uma posição do Estado em não promover nenhum tipo de articulação, nenhum tipo de parceria com grandes institutos. Na Argentina, vai ser possível suprir a demanda de IFA por conta da ação do Estado, que firmou parceria com uma indústria de fármaco”, afirma Rosângela.

O epidemiologista Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pesquisador do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que as indústrias de fármacos existentes no país acabaram ficando “um pouco para trás” em termos de capacidade tecnológica. “As poucas empresas farmoquímicas que temos conseguem produzir IFAs mais simples, não sei se conseguem para vacina. IFAs mais complexos, com moléculas mais complexas, eu creio que nós não conseguimos produzir”, afirma.

Segundo ele, no entanto, é preciso atentar também para o fator geopolítico. “Não é um problema exclusivamente de capacidade tecnológica, científica. É um problema de oportunidade, de política industrial. Nós não temos condições de competir em preço com os IFAs da China e da Índia”, diz. 

Segundo Guimarães, o Brasil até poderia desenvolver a própria vacina, mas a falta de orçamento para pesquisas é um entrave. “Para você fazer vacina do zero, tem que sair de Bio-Manguinhos [unidade produtora da Fiocruz], do Butantan e ir para os grupos de pesquisa nas universidades. E você vê como está o financiamento da pesquisa. Nós temos algumas tentativas [de vacina] em curso. Tem uma na UFMG com a Fiocruz de Minas, tem na USP, o próprio Bio-Manguinhos acho que está trabalhando em nível pré clínico, mas são coisas muito incipientes. Não vão ficar prontas em um ano, dois anos. Vai demorar, principalmente em uma situação de falta de dinheiro para o financiamento dessas etapas iniciais”, comenta.

Economia de guerra

Em maio do ano passado, quando o Brasil vivia os primeiros meses da pandemia, o Dieese divulgou uma nota técnica em que sugeria ao governo a reconversão industrial. Trata-se da alteração provisória da planta de uma indústria para fabricar produtos em caráter emergencial. “Naquele momento, a gente estava falando sobretudo da necessidade de respiradores. A gente tinha uma capacidade produtiva muito pequena e uma necessidade grande de importação em um momento de grande demanda internacional”, explica a economista Rosângela Vieira dos Santos.

Segundo ela, no entanto, em nenhum momento o governo federal adotou a estratégia, conhecida também como economia de guerra, em alusão às guerras mundiais. “As experiências nesse sentido aqui no Brasil foram pontuais, partiram da iniciativa privada. Não houve nenhuma coordenação do Estado, nenhum financiamento específico, decreto, tentativa de aprovar uma legislação Foi muito mais relacionado à própria necessidade de adaptação das empresas”, afirma.

Segundo Rosângela, além de preservar empresas e empregos, a reconversão evita que itens básicos como respiradores, máscaras cirúrgicas e equipamentos de proteção individual (EPIs) faltem ou sejam adquiridos a um preço muito elevado, devido à alta demanda e às taxas de câmbio.

Ela lembra que o Brasil já teve um Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde sob a coordenação do Ministério da Saúde, com o objetivo de detectar gargalos e pensar políticas públicas junto às empresas do setor para resolvê-los. “Foi criado em 2008. Em 2016, no governo Temer, começa a ser desestruturado e em 2019 acaba. Se a gente tivesse esse grupo de pesquisadores em 2020, teria um olhar mais sistêmico sobre a pandemia, entendendo as necessidades produtivas e onde estavam os produtores. Mas o que se viu foram ações muito mais locais”, diz.

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