Pandemia e corrupção põem Guatemala à beira da convulsão

Julio Coj, coordenador da Comissão de Organização da União Sindical de Trabalhadores da Guatemala (Unsitragua) fala sobre o desastroso o governo de Alejandro Giammattei e necessidade de constituição de uma aliança estratégica da oposição.

"Médicos e enfermeiros sem salários e equipamentos, hospitais sem investimentos nem medicamentos e, para completar, milhões de quetzales gastos em testes de coronavírus que eram falsos"

“Embora tenha tomado posse há pouco mais de um ano, ninguém aguenta mais o governo de Alejandro Giammattei. Diante de algo tão grave quanto a pandemia da Covid-19, deixou médicos e enfermeiros sem salários e equipamentos, hospitais sem investimentos nem medicamentos. Para completar, gastaram milhões de quetzales(*) em testes de coronavírus que eram falsos”, denuncia Julio Coj, coordenador da Comissão de Organização da União Sindical de Trabalhadores da Guatemala (Unsitragua). Integrante da Assembleia Social e Popular (ASP), articulação de movimentos do país centro-americano, Julio Coj reitera a importância de conformar uma “aliança estratégica para combater o inimigo comum, defender a democracia e a soberania”, condena a situação de miserabilidade em que a população se vê jogada e alerta que “a pandemia e a corrupção colocaram a Guatemala à beira da convulsão social”. Com 11,7 milhões de habitantes, o país registrava até este sábado (3) mais de 295 mil casos e 6.875 mortos pelo coronavírus, números que as organizações de direitos humanos acreditam subestimados. Os vacinados são pouco mais de 21 mil pessoas, cerca de 0,13% da população, bastante limitados à cúpula e ao entorno do governo.

Qual é a situação da pandemia na Guatemala diante do quadro de abandono na saúde?

É importante esclarecer que há 41 anos nenhum governo guatemalteco fez qualquer tipo de investimento na Saúde. Foi uma prática de abandono, que se viu ainda mais agravada nos últimos anos com o ajuste neoliberal vivido nos países da América Latina, com políticas de privatização e de concessão no setor. Por isso, a defesa da vida se coloca agora tão difícil, pois não houve interesse nem vontade política por parte de sucessivos governos.

Algo extremamente delicado ocorreu no ano passado. Tivemos o agravamento deste quadro, com a pandemia avançando sem que nada pudesse lhe deter, já que muitos dos trabalhadores da saúde, médicos e enfermeiros contratados e deslocados para hospitais de campanha ficaram sem salários. Vale lembrar que além de não lhes pagarem por meses, lhes deixaram até mesmo sem equipamentos de proteção.

Profissionais estratégicos ficaram sem receber seus salários por cinco, seis meses, precisando deixar de atender pacientes para ir às ruas protestar, já que foram abandonados pelo governo de Giammattei. Algo que nunca foi resolvido. Alguns, inclusive, foram despedidos; outros abandonaram seus postos à procura de outro emprego. Isso, naturalmente, só agravou ainda mais a crise. Há departamentos como em Quiché ou Huehuetenango onde além da falta de salários e de equipamentos, também protestaram contra a ausência de medicamentos.

O governo fala que estes trabalhadores estão na linha de frente, mas isso é mera demagogia, já que o Ministério da Saúde não investe, não cumpre com sua palavra.

E como está a questão da vacinação?

A situação é grave e o governo não tem priorizado a Saúde. Para ter uma ideia, nesta etapa da crise do coronavírus, em que temos pouco mais de 0,13% da população vacinada, Giammattei e o Exército estão propondo comprar aviões militares. Ao mesmo tempo o sistema de saúde cai pelas tabelas, completamente sem atenção ou investimento.

O fato é que os níveis de corrupção na Guatemala vêm sendo cada vez mais altos, há muitos anos. Falemos desde o primeiro governo civil, entre aspas, de Marco Vinicio Cerezo Arévalo (1986-1991). Mas cada governo que chega vai incrementando a corrupção, é pior. A situação mais dramática é a de Otto Pérez Molina (2012-2015), que devido aos protestos populares foi preso ao lado de sua vice-presidenta. Temos Jimmy Morales (2016-2020), que elevou ainda mais o grau de corrupção e agora Alejandro Giammattei, que aumenta tudo terrivelmente.

Vou dar um exemplo: fizeram um processo de compra de testes para o coronavírus pelo qual pagaram mais de sete milhões de quetzales (um milhão de dólares) e que logo se comprovou que eram falsos. Algo que era para lutar pela vida foi totalmente desperdiçado.

O governo também fez um empréstimo milionário para poder subsidiar as pessoas que ficaram sem trabalho, em condições de precariedade ou pobreza. Disseram que iam dar três meses de ajuda de mil quetzales (cerca de 130 dólares) mensais, mas além de lhes pagarem apenas duas parcelas, também atrasaram meses. Na última remessa foi ainda pior: entregaram tão somente 250 quetzales. Da mesma forma, prometeram uma cesta de alimentos, o que nunca ocorreu.

A gravidade da situação em muito se deve ao fato de o governo de Otto Pérez Molina ter retirado do país o colombiano Iván Velásquez, da Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (Cicig), órgão independente de apoio ao Ministério Público, que ficou sem respaldo para lutar contra a corrupção.

“Ninguém aguenta mais o governo Giammattei”, afirma Julio Coj, dirigente da União Sindical de Trabalhadores da Guatemala (Unsitragua)

Diante deste caos, como estão as mobilizações para construir uma alternativa?

No ano passado ocorreram intensas e inúmeras mobilizações da sociedade civil para exigir a renúncia de Giammattei, a mais forte no início de dezembro, em frente ao Congresso. Uma manifestação pacífica em que as pessoas estavam acompanhadas de suas famílias, de crianças, e a repressão foi violentíssima, implacável, inclusive com bombas de gás lacrimogêneo. Fizeram de tudo para tentar aterrorizar. Depois disso, os protestos continuaram, mas sem a mesma força. É como se a panela estivesse acumulando, ganhando mais pressão.

Há denúncias sobre manipulação na indicação do Tribunal de Justiça. O que ocorreu?

Este governo manipulou recentemente a eleição de magistrados do Tribunal de Justiça. Giammattei conseguiu indicar seu pessoal, escolheu a dedo envolvidos em inúmeros delitos. Essa gente, obviamente, não será investigada nem julgada, da mesma forma como a Procuradora-Geral e chefe do Ministério Público, Consuelo Porras, tudo fez para acobertar Giammattei, os juízes e deputados acusados de corrupção e atos ilegais. Para eles, uma mão lava a outra.

E para isso perseguem a imprensa.

Claro. Desfalcaram o Estado através do Ministério da Saúde e, quando os jornalistas perguntam sobre o que está ocorrendo, gente do presidente cassa a palavra, intimida ou busca uma forma de silenciar. Esta é uma prática corriqueira, com vários jornalistas comunitários presos. Há uma prática de criminalização, perseguição e assassinatos para que sejam mantidos – e nunca questionados – os projetos de mineração, de hidrelétricas e de monocultivo que atentam contra o interesse dos povos indígenas e de todos os guatemaltecos.

Como os diferentes partidos e movimentos populares têm atuado para se contrapor a este quadro?

A situação é bastante complexa. Nós, como Sintragua, desde os tempos de Otto Pérez Molina temos trabalhado e realizado ações conjuntas, a partir da Assembleia Social e Popular, a ASP, uma articulação em que há mulheres, estudantes, indígenas e trabalhadores. Inclusive agora, próximo à Semana Santa, estivemos em frente ao Congresso da República protestando contra a indicação destes magistrados ao Tribunal de Justiça.

Acreditamos que é necessária a constituição de alianças estratégicas, algo similar ao que construiu a Bolívia com Evo Morales, para termos uma força que consiga enfrentar o abuso de poder e a corrupção, que retome a democracia e a soberania, algo pelo qual lutamos com os Acordos de Paz, e que nos garanta justiça, de uma forma coerente com o Estado de direito. 

Aqui o preço do transporte público aumentou mais de 100% nos últimos oito meses. De onde vivo até a capital, a passagem saltou de 4,50 quetzales para 10 quetzales. Da mesma forma, subiu o preço do gás, da gasolina, em tudo há uma enorme extorsão. Ao mesmo tempo, várias empresas baixaram brutalmente o pagamento do salário mínimo de três mil para mil e quinhentos quetzales. E não há um Ministério do Trabalho nenhum juiz para julgar e punir os abusos. E não há imprensa livre para  denunciar. A pandemia e a corrupção colocaram a Guatemala à beira da convulsão social

* Um quetzal guatemalteco equivale a 0,13 Dólar americano

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