2 de outubro: o Brasil protesta por outro Brasil

O Brasil que protesta tem de gritar e ir às ruas neste sábado 2 de outubro, e tem de voltar a sair de novo e gritar e exigir tudo o que falta, sem ignorar o que já ganhou no caminho percorrido, tanto em experiência quanto em acúmulo para transformações que toquem a raiz das desigualdades, da fome e da pobreza alastrada.

O assédio contra a democracia – que vai desde o aplauso aos que cometeram gravíssimas ações contra os direitos humanos nos tempos do regime de exceção, que passa pelos clamores a que as forças armadas exerçam um despropositado “poder moderador”, e que terminam na omissão cúmplice ante os que evocam o retorno do AI-5 – não ocorre porque no Brasil não tenha avançado em um processo de regeneração democrática desde 1988, senão para conter a afirmação de um projeto participativo e deliberativo que a Constituição orientou há quase 33 anos e do qual o país começou a se apropriar.     

O bloqueio de uma política exterior independente no Brasil – que vai do ingresso à OTAN como auxiliar regional das suas aventuras militares, o torpe posicionamento contra a China, a autoexclusão da reunião da CELAC, realizada recentemente no México, e a visita há alguns dias de Graig Fallon, Chefe do Comando Sul dos Estados Unidos – não são para mostrar galhardia decisória nas relações internacionais, senão para tornar o Brasil uma peça sem importância no tabuleiro gerenciado pela estrutura de poder sob poderio militar americano.      

O castigo contra os brasileiros e brasileiras em termos de desemprego, inflação, retração econômica e que chega à mesa e torna disputável os restos de açougues e restaurantes, que iriam para fazer sabão ou comida para cachorros, mostram a ineficácia e o descaso com a criação de medidas para o desenvolvimento e satisfação das necessidades mínimas das pessoas. Enquanto alguns aceitam a fatalidade da corrupção, que tornou a administração da pandemia uma fonte de negócios gigantesca, e outros consentem com a imoralidade de que os grandes bancos serão, ao final, beneficiados pelas taxas de juros cobradas aos adquirentes de créditos, há quem se resista a ser considerado impotente e a que este abandono social seja o destino inevitável.

O sentido de uma campanha para desmoralizar o que resulte alternativo ou de oposição ao governo, que usa plataformas e redes sociais para veicular matérias contendo injurias e ameaças, de maneira vulgar e tosca, consiste em reproduzir o que seus autores consideram o “estigma” de “ser de esquerda”, “de ser comunista”, “de ser vermelho” como se isto não fosse mais que a opção consciente, alegre e comprometida com a transformação desta estrutura cruel e opressiva contra a civilização. Porém o propósito vai além. Os que se utilizam desses expedientes atentam contra a dignidade de quem tem algo diferente a dizer, buscam quebrar os laços humanos do debate, separar, dividir, minar a transmissão de visões e a troca sadia de experiências impedindo a superação dos desafios que impõe a crise estrutural de um sistema que só oferece miséria, na base do silêncio. Pretende-se fazer calar ao descontente e ao aguerrido, que foi declarado “o inimigo”, enquanto se sublima o cataclismo de impropérios da boca do chefe do executivo e dos amigos de palácio com o pretexto de que se trata de “uso da liberdade de expressão”, como se houvesse autorização moral ou jurídica para dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.   

O objetivo de destilar o ódio contra mulheres – “soco até ser preso” “você não merece ser estuprada” -, contra a diversidade sexual, contra os povos originários e afrodescendentes, contra a ciência e a reflexão crítica, é ir reproduzindo as bases de uma sociedade cada vez mais violenta, mediocrizada e precarizada em termos de valores como a solidariedade e conhecimento, que legitima a desigualdade e da continuidade às dominações injustas do cotidiano. Pretende-se conduzir ao desencantamento dos seres humanos com o melhor que a civilização há construído para a paz e para a vida e em seu lugar impor a matriz do cinismo e do egoísmo, almejando uma sociedade na qual ninguém se deve tomar a moléstia de aceitar ao outro. O exemplo de membros do governo que sabem muito bem do que falam quando patrocinam a exclusão de pessoas com deficiência de salas de aula e imaginam uma sociedade de indivíduos exclusivos, uniformizados e sob os cânones de uma moral na qual alguns devem ser segregados sob a hipocrisia dos “separados mais iguais”, própria do apartheid da metade do século XX, põe de manifesto os perigos do fascismo escondido nas entrelinhas discursivas.  

Foto: Roberto Parizotti

O espetáculo bizarro e lamentável da banalização da morte pelo presidente, que mente o tempo inteiro ao dizer que o Supremo Tribunal Federal o impediu de conduzir um plano nacional de atenção à saúde porque determinou que a competência para atender essa necessidade social é concorrente e, portanto, cabe também aos Estados, a cada município e ao Distrito Federal – algo estampado nas competências federativas constitucionais – é complementado pelas suas manifestações em programas semanais que minimizaram desde o começo a gravidade do quadro da pandemia no país. O presidente e alguns de seus ministros encabeçaram sim uma sistemática oposição ao tratamento fundado na ciência e sua atitude colocou em risco um número de seres humanos que hoje não estão mais participando do convívio de familiares e amigos. Existe uma responsabilidade concreta a ser apurada na ausência de execução de políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco dos males ocasionados pelo Covid-19.

O Executivo foi irresponsável na fiscalização, no controle, na execução dos passos necessários para dispor dos elementos de contenção e não disseminação da pandemia. E isso é crime: de responsabilidade!

O tom golpista do presidente faz uma pausa, mas não desapareceu do cenário brasileiro. O presidente sabe que parte da sua perspectiva eleitoral depende do apoio do grande capital, mas também, do relacionamento que tenha com os demais órgãos do poder e a possibilidade de satisfazer uma pauta conservadora. A trégua tática, que ninguém leva a sério, possibilita retirar a saturação ocasionada pela discórdia e pelo estilo de choque e o confronto permanente, cansativo e que começou a ser identificado como propositalmente inflamado, porém ao final covarde.

O Brasil que protesta tem de gritar e ir às ruas neste sábado 2 de outubro, e tem de voltar a sair de novo e gritar e exigir tudo o que falta, sem ignorar o que já ganhou no caminho percorrido, tanto em experiência quanto em acúmulo para transformações que toquem a raiz das desigualdades, da fome e da pobreza alastrada. O Brasil tem direitos e tem o direito a ter direitos e esperanças. A unidade das mais diversas forças para um programa de choque emergencial e urgente de desenvolvimento aliado a essa mobilização é a consigna que traduz as expectativas do momento.

O Brasil tem que julgar os responsáveis por este panorama sombrio. Do contrário, o risco será sempre repetir a história e isso este país não merece. 

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