“Sem mudar sistema de proteção social, aumento do gasto não resultará em crescimento inclusivo”

Ex-ministro de Finanças do México, Santiago Levy alerta para perda de arrecadação e de produtividade causada pela desproteção do trabalho informal e da formalização por meio de pequenos negócios.

Na última terça-feira (19/10), enquanto no Brasil o governo titubeava em anunciar a proposta de R$ 400 para o novo Auxílio Brasil, fazendo dólar subir e bolsa desabar devido às ameaças de rompimento do teto de gastos para bancar esse valor, Santiago Levy, ex-ministro de Finanças do México, criador do Bolsa Família desse país, fazia um alerta em webinar promovido pelo Banco Mundial: sem uma alteração profunda no sistema de proteção social vigente nos países latino-americanos, dificilmente essas economias escaparão da armadilha de baixo crescimento e alta pobreza em que estão presos há décadas, e que mantém a região como a mais desigual do mundo, com exceção da África Subsaariana. Levy, hoje pesquisador da Brookings Institution, atribui parte da incapacidade da América Latina em superar esses problemas a um desenho equivocado das políticas, que se multiplicaram nas últimas décadas carecendo de uma visão integrada, e que hoje incentivam a informalidade e atividades econômicas pouco produtivas. “Sem uma discussão séria para reorganizar o atual sistema, qualquer aumento de gastos com proteção social, investimento em educação e reforma de mercado continuará produzindo baixo resultado”, afirma. 

Um dos elementos desse círculo vicioso, que ganhou relevância com a pandemia, é a desproteção ao trabalhador informal, fruto de desenho de seguridade social que oferece várias soluções ao empregado com carteira assinada em caso de demissão ou problema de saúde e nenhuma ao informal, que em geral ganha menos e possui uma relação de trabalho muito mais vulnerável a flutuações da economia. Ele cita como exemplo o caso do México. Observando a evolução do mercado de trabalho no país entre 1997 e 2015, Levy identificou que, em média, os trabalhadores mexicanos estiveram formalmente empregados em menos da metade (46%) desse período. “Os que recebiam salários menores tiveram um tempo de trabalho formal ainda mais curto, de 13% do total, enquanto os que receberam uma renda do trabalho média ficaram 52% do tempo em empregos formais, e os com renda alta, 74%”, descreve. Em outros nove países latino-americanos pesquisados, incluindo o Brasil, o resultado foi semelhante, diz Levy. “Isso indica que temos uma política errática e incompleta, que deixa os trabalhadores de baixa renda descobertos e com pouco tempo de contribuição para garantir sua aposentadoria.”

Em geral, os esforços para conter o avanço da informalidade também tiveram efeito pequeno ou contrário, lembra o ex-ministro. Pelo lado da proteção social, grande parte dos programas de benefícios não contributivos excluem de seus favorecidos pessoas que conquistam um vínculo formal de trabalho. Já os programas de formalização de pequenos negócios com regimes tributários especiais – como o MEI e o Simples no Brasil – pecam por desincentivar o crescimento desses empreendimentos, defende, devido ao aumento de impostos e contribuições que isso representaria. “Dessa forma, os países perdem tanto com a queda de arrecadação quanto com a possibilidade de serem mais produtivos, levando em conta que pequenos negócios em geral têm produtividade menor do que os empreendimentos que crescem e ganham escala”, diz. Levy destaca o caso do Peru, em que 98% das empresas são negócios com menos de dez trabalhadores, que empregam 73% da população. Nos Estados Unidos, as empresas com esse perfil somam 60% e representam 9,7% do total dos empregos. “Não à toa, nos últimos 15 anos a produtividade da economia peruana cresceu apenas 0,2%”, cita, lembrando que sem aumento de produtividade, lembra Levy, não há a criação de empregos de mais altos salários, tampouco a possibilidade de um país crescer mais.  “O que, por sua vez, amplia a demanda de compensação com programas de transferência de renda, isenções de impostos e subsídios, erodindo ainda mais a base tributária, induzindo mais informalidade e baixa produtividade”, descreve.

Esse diagnóstico, detalhado em recente publicação de coautoria de Levy, coordenada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), é a base dos estudos sobre produtividade que o economista tem desenvolvido em seu trabalho como pesquisador, e sobre o qual conversou com a Conjuntura Econômica em 2019. “A pandemia intensificou a necessidade de se pensar em reformas profundas”, afirma Levy, comparando o atual momento com a saída da chamada década perdida, nos anos 1980. “No início da década de 1990, havia consenso de que tínhamos que mudar de rumo: melhorar a gestão macroeconômica, ter bancos centrais autônomos, inflação baixa, câmbio flexível e equilíbrio fiscal. Desde então, conseguimos a estabilidade macro, mas sob um modelo ainda de desequilíbrios, que depende de uma reforma profunda da proteção social, que inclui a forma de financiá-la”, diz.

E como fazê-lo? No estudo para o PNUD, Levy e Guillermo Cruces (Universidad Nacional de La Plata) defendem  a migração do sistema para um modelo voltado à universalização de benefícios, em que toda a população exposta a determinado risco tenha os mesmos direitos de cobertura, não importando seu vínculo empregatício – o que inclui aposentadoria, pensões e sistema de saúde – com programas que sejam financiados pela mesma fonte de recursos. Essa visão integrada também deve guiar, na defesa de Levy, o desenho do sistema tributário, o que incluiria um imposto de renda negativo, que devolveria renda aos mais pobres.  “É preciso reduzir distorções, levando em conta os objetivos sociais que perseguimos. Tomemos como exemplo o imposto de renda pessoa física. A diferença de arrecadação entre os países latino-americanos e os da OCDE é de 5 pontos percentuais. Essa diferença financiaria toda a reforma da proteção social em matéria de saúde e aposentadorias não contributivas em condições melhores do que hoje são dadas aos trabalhadores formais”, diz. Levy reconhece que é uma agenda difícil. “Não é preciso fazer as reformas todas de uma vez, mas é preciso que elas estejam embarcadas em uma visão global, e tenham sequência lógica”, diz. “É preciso comunicar com clareza à sociedade aonde queremos ir, e mostrar que nenhum contrato social será viável sem economias mais produtivas, que cresçam mais e sejam mais inclusivas”, conclui.

Fonte: Blog da Conjuntura Econômica