Apenas a OMS pode decretar o fim da pandemia!
Nenhum país pode rebaixar a classificação da Covid-19 e determinar a mudança de status de pandemia para endemia, seja por meio de decretos, atos normativos ou portarias. O Brasil não está numa redoma, isolado do resto do mundo.
Publicado 19/04/2022 20:48
No último dia 13 de abril, a Organização Mundial da Saúde (OMS) comunicou que a pandemia de Covid-19 continua a ser uma “Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional” (PHEIC, Public Health Emergency of International Concern). Neste domingo de Páscoa (17/04), destoando da decisão da OMS, o Ministro da Saúde Marcelo Queiroga, anunciou em cadeia nacional de rádio e TV, que irá editar um ato normativo para encerrar a ESPIN (Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional), pondo fim ao estado de emergência devido à pandemia de Covid-19. Queiroga justificou a decisão com base na situação epidemiológica favorável, na boa cobertura vacinal da população e na capacidade de assistência do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, a justificativa para esta medida é outra: 2022 é ano eleitoral!
A retirada da condição de ESPIN pode impactar diversas ações de combate à disseminação da doença como o controle das fronteiras, estabelecimento de quarentena, adoção de passaporte vacinal e de máscaras em locais fechados, realização de testes para diagnóstico de Covid-19 em farmácias, teletrabalho e telemedicina. Também pode afetar medidas de controle da doença, como por exemplo, ampliação de leitos de hospital, compra de insumos e materiais hospitalares em caráter emergencial, mobilização de servidores, aplicação de vacinas aprovadas pela Anvisa em caráter emergencial e temporário, como a CoronaVac (apenas as vacinas da Pfizer/BioNTech, AstraZeneca/Oxford e Janssen/Cilag possuem registro definitivo), uso de medicamentos como sotrovimab, evusheld e o paxlovid, que contam apenas com autorização de uso emergencial aprovado pela Anvisa.
Para que as vacinas e medicamentos contra Covid-19 possam continuar a ser usados, a Anvisa teria que prorrogar a autorização do seu uso emergencial quando da publicação do ato normativo. Em nota publicada no dia 18 de abril, a Agência informou que o Ministério da Saúde já solicitou a prorrogação do uso emergencial por um ano. A aprovação da solicitação ainda depende de análise da Diretoria Colegiada da Anvisa. Muito provavelmente, a ESPIN não será revogada de imediato e teremos um prazo de algumas semanas entre a edição da portaria e a data real para marcar o fim da Emergência em Saúde Pública.
Vacinação e vigilância – Graças ao avanço da vacinação, o cenário epidemiológico é favorável, porém estamos longe do fim da pandemia. O Brasil registrou 65 óbitos causados pela Covid-19 nas últimas 24 horas, atingindo média móvel de 98 mortes nos últimos sete dias. Desde o início da pandemia, a doença já tirou a vida de pouco mais de 662 mil brasileiros e brasileiras (número que não leva em conta a subnotificação). Conforme dados dos cartórios de registro civil, a Covid-19 é a doença que mais mata no país. O número de casos vem caindo, mas ainda registramos 10.393 novos casos nas últimas 24 horas, com média móvel de 14.252 casos nos últimos sete dias.
Até o momento, 88,3% da população vacinável, com cinco anos ou mais, tomou a 1ª dose da vacina e 81,4% da população com cinco anos ou mais tomou a 2ª dose ou a dose única. No entanto, a cobertura vacinal de pessoas com 18 anos ou mais que tomaram a dose de reforço é de pouco mais de 51,8%. Com relação à vacinação infantil, desde o início da campanha em janeiro de 2022, apenas 56,2% das crianças na faixa etária 5 a 11 anos tomaram a primeira dose e pouco mais de 28,9% tomaram a segunda dose. O país precisa avançar na vacinação infantil e na aplicação da dose de reforço em pessoas com 18 anos ou mais, em programas de testagem da população e vigilância genômica, o que permitirá a identificação das rotas de espalhamento e transmissão do vírus e de novas variantes de preocupação.
Também é importante que a CoronaVac seja aprovada pela Anvisa para vacinação de crianças de 3 a 5 anos. Após parecer das sociedades médicas e dos estudos enviados pelo Instituto Butantan, a Anvisa solicitou novos dados sobre a CoronaVac para crianças de 3 a 5 anos:
1. Dados que demonstrem qual é a proteção conferida pela vacina CoronaVac em população pediátrica após no mínimo 2 meses, idealmente após 3 meses, da vacinação completa com o esquema primário de 2 doses, em cenário de predominância da variante Ômicron;
2. Protocolo de estudo de efetividade da vacina CoronaVac em população pediátrica no Brasil que inclua a avaliação da duração de proteção conferida pela vacina em população pediátrica;
3. Protocolo de estudo clínico para avaliação de imunogenicidade e segurança da terceira dose ou dose de reforço da vacina CoronaVac em população pediátrica (todas as faixas etárias);
4. Dados integrados de segurança apresentados como suporte para esta solicitação de ampliação de uso, em um formato de um relatório único com a visão geral de segurança da vacina CoronaVac para crianças de 3 a 5 anos;
5. Relatório clínico com os dados atualizados do estudo clínico de fase III (PRO-nCOV-3002-1), conduzido na China para avaliação comparativa de imunogenicidade em crianças e adultos;
6. Relatório clínico com os dados atualizados de eficácia, segurança e imunogenicidade, do estudo multicêntrico de fase III, conduzido na África do Sul, Chile, Malásia e Filipinas, para avaliar a imunogenicidade, segurança e eficácia da vacina Covid-19 (Vero Cell), inativada (CoronaVac®) em crianças e adolescentes de 6 meses a 17 anos.
Um estudo de fase 4 da Fiocruz Minas, envolvendo 1.587 pessoas vacinadas, mostrou a importância de uma dose de reforço com a vacina da Pfizer/BioNTech para quem tomou duas doses da CoronaVac, em esquema de vacinação heteróloga. Os dados indicam a importância da resposta de proteção induzida pela CoronaVac após duas doses e como esta resposta se torna ainda mais robusta após aplicação de uma dose de reforço com a vacina da Pfizer/BioNTech, protegendo contra as variantes Delta e Ômicron. Mesmo para idosos acima de 60 anos, onde os níveis de anticorpos entre o quinto e o sétimo mês após a segunda dose foram menores que em pessoas entre 18 e 30 anos, a dose de reforço da Pfizer/BioNTech restabelece a resposta imune.
O estudo da Fiocruz também destaca o valor da imunidade híbrida, visto que participantes que tiveram Covid-19 e depois foram vacinados, mostraram índices de anticorpos superiores após a vacinação, quando comparados com os voluntários que não foram infectados. Outro estudo do projeto VigiVac da Fiocruz,publicadona revista Lancet Infectious Diseases, mostra a efetividade das quatro vacinas contra a Covid-19 em uso no Brasil (Coronavac, AstraZeneca, Janssen e Pfizer-BioNTech) em aumentar a proteção contra desfechos graves em pessoas previamente infectadas pelo Sars-CoV-2.
Embora em queda consistente, ainda temos um número alto de casos e de óbitos. Que fique claro: apenas a OMS pode decretar o fim da pandemia. Nenhum país pode rebaixar a classificação da Covid-19 e determinar a mudança de status de pandemia para endemia, seja por meio de decretos, atos normativos ou portarias. O Brasil não está numa redoma, isolado do resto do mundo.
Para a entidade, o vírus Sars-CoV-2 segue em evolução considerada imprevisível, com ampla circulação e alta taxa de transmissão em humanos, causando altos níveis de morbidade e de mortalidade em populações mais vulneráveis nos países de baixa renda, com baixa taxa de cobertura vacinal e que ainda há risco de disseminação internacional. A OMS mantém a meta de vacinar 70% das populações de todos os países até julho de 2022, com prioridade para profissionais de saúde, idosos e grupos de risco. Até o momento, 65% da população mundial recebeu pelo menos uma dose, o que representa 11,47 bilhões de doses de vacinas aplicadas. Ainda segundo a OMS, 64 países, incluindo o Brasil, atingiram 70% de vacinados. No entanto, apenas 15,2% das populações mais vulneráveis em países de baixa renda receberam pelo menos uma dose e há 21 países com cobertura vacinal abaixo de 10%, incluindo países em zonas de conflito.
Cenário epidemiológico atual – Em virtude do avanço na cobertura vacinal, o cenário epidemiológico vem melhorando significativamente no Brasil, com redução da ocupação das unidades de terapia intensiva (UTIs) para Covid. Dados do Boletim do Observatório Covid-19 Fiocruz, divulgados no dia 08/04/2022, mostram tendência de queda de indicadores de novos casos graves, internações e óbitos por Covid-19, destacando que, pela primeira vez desde maio de 2020, nenhum estado brasileiro superou a marca de 0,3 óbitos por 100 mil habitantes. Sem dúvida, estamos vivendo o melhor momento desde o início da pandemia, em 11 de março de 2020, mas não podemos deixar o excesso de otimismo contribuir para um relaxamento ainda maior.
Nova subvariante XE da Ômicron – Aparentemente, a antes temida recombinação entre as sublinhagens BA.1 e BA.2 da variante Ômicron (variante XE) parece ser mais transmissível, mas não suficientemente perigosa para ser considerada pela OMS uma variante de preocupação (VOC), assim como aconteceu com a Deltacron, que consistia em uma mistura das variantes Delta e Ômicron. Segundo a Rede Genômica Fiocruz, a sublinhagem BA.2, responsável pelo aumento de casos na Europa e no leste da Ásia, está se tornando mais frequente no Brasil. A tendência é a variante XE desaparecer, embora seja necessário constante monitoramento e vigilância genômica. A vacinação deve continuar, pois nós não podemos ignorar o risco de novos surtos e ondas de Covid-19.
Kit covid – Cloroquina, ivermectina, nitazoxanida e azitromicina, medicamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid-19, continuam na lista dos mais vendidos no Brasil. Considerando apenas os medicamentos vendidos em farmácias, foram 97 milhões de unidades comercializadas em 2021 e 102 milhões em 2020, comparados com apenas 40 milhões de unidades em 2019. Ou seja, a farsa do kit Covid dá lucro!
Definitivamente, charlatanismo e trapaça não têm limites no Brasil e o discurso negacionista dos picaretas antivacinas e defensores do kit Covid virou um discurso de poder. E essa máquina de produção de desinformação vai continuar defendendo o kit Covid, pois são muitos os interesses financeiros e os dividendos políticos. Isso parece o que psicólogos chamam de efeito da verdade ilusória: uma mentira contada mil vezes, não vira verdade, apenas parece confiável para algumas pessoas em virtude da intensa repetição.
Diversos estudos clínicos sérios, padrão ouro, randomizados, com grupo placebo, mostram a ineficácia da ivermectina. Um estudo brasileiro recente muito robusto, publicado no The New England Journal of Medicine (30/03/2022) mostrou que pessoas que tomaram ivermectina e depois testaram positivo para Covid-19, tiveram um desempenho pior do que o grupo que recebeu apenas o placebo. Um editorial recente na revista British Medical Journal (BMJ) salienta os escândalos éticos e as fraudes por trás de estudos que mostravam algum possível benefício com a ivermectina.
Até quando vai durar essa trapaça?
Luiz Carlos Dias é Professor Titular do Instituto de Química da Unicamp, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro da Força-Tarefa da UNICAMP no combate à Covid-19.
Do Jornal da Unicamp