República volta a se vingar de dom Pedro I, ao desterrar seu coração
Contra o desejo do leito de morte do príncipe português, é a segunda vez que militares resolvem tirar seus restos mortais de Portugal, envolvendo-o numa efeméride que pouco lhe interessava.
Publicado 23/08/2022 15:40 | Editado 23/08/2022 18:28
Preservado em formol, o coração do imperador dom Pedro I chegou à Base Aérea de Brasília na manhã da segunda-feira (22), como parte das comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil, no dia 7 de setembro. A relíquia foi para o Palácio Itamaraty, na Esplanada dos Ministérios, onde poderá ser vista pelo público.
Em nota divulgada ontem, o Itamaraty afirma que “a vinda do coração de D. Pedro I ao Brasil será oportunidade para que o povo brasileiro homenageie figura central para o processo de independência do Brasil”. No Twitter, o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Luiz Ramos, classificou a recepção brasileira ao órgão do monarca como “um dia histórico”.
Em 1972, aos 150 anos da Independência, a ditadura militar fez coisa semelhante trazendo restos mortais de dom Pedro I e de outros integrantes da Casa Imperial para sepultá-las em uma cripta que fica sob o Monumento à Independência, no Parque da Independência, em São Paulo. O coração, no entanto, permanecia escondido num canto escuro da Igreja de Nossa Senhora da Lapa, na cidade natal do nobre, o Porto.
Segundo historiadores, o príncipe português foi enterrado apenas com insígnias de seu país natal. A opção pelo sepultamento no Porto foi um pedido explícito antes da morte. Portanto, esta é a segunda vez que o português é tirado de seu descanso eterno para viajar a uma terra, “onde seu coração não estava”.
Simbolismo custoso
As cerimônias serão acompanhadas pelo presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, que na quinta-feira de manhã também presidirá, no Instituto Rio Branco, a uma palestra intitulada: “Dois povos unidos por um coração – o significado político e simbólico de D. Pedro para Portugal e o Brasil.” O coração de D. Pedro regressa à cidade do Porto em 9 de setembro, ficando novamente em exposição nos dias 10 e 11, antes de voltar a ser guardado a cinco chaves.
No entanto, a medida divide opiniões da intelectualidade brasileira e portuguesa devido ao valor simbólico da medida e o alto custo desse tipo de operação. A complexa operação envolve voos exclusivos da Europa a vários pontos do país, transporte delicado de uma relíquia frágil, perícias técnicas, e ainda a obrigatoriedade de um seguro apropriado, extremamente caro. Registre-se o momento de dificuldades de preservação da memória histórica, cientifica, artística e cultural no Brasil de Bolsonaro, onde incêndios de museus são frequentes. Sem mencionar o cenário de insegurança alimentar no país.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) enviou nesta segunda-feira (22) um ofício ao presidente Jair Bolsonaro (PL) pedindo informações sobre os custos totais envolvidos na vinda do coração de d. Pedro 1º ao Brasil. “Sem prejuízo da relevância das comemorações solenes ao bicentenário da independência, é preciso mais que nunca sinalizar sobriedade e comedimento nos gastos públicos, seja pelo estado de penúria econômica generalizada que o país atravessa […], seja pelo risco de abuso da máquina pública que ronda o uso político desta solenidade para fins de promoção pessoal em pleno calendário eleitoral”, diz o texto enviado ao chefe do Executivo.
“O coração será recebido no Brasil como chefe de Estado, e será tratado como se Dom Pedro I fosse vivo entre nós, não é? Portanto, ele será objeto de todas as medidas que se costumam atribuir a uma visita oficial, uma visita de Estado, de um soberano estrangeiro, no caso de um soberano brasileiro ao Brasil”, declarou o ministro Alan Coelho de Séllos, chefe do cerimonial do Itamaraty.
O tratamento cerimonial de chefe de Estado a um órgão humano morto, também tem sido motivo de ridicularização. Segundo a coluna de Leonardo Sakamoto, no UOL, os próprios diplomatas envolvidos na operação consideram o protocolo vergonhoso, absurdo e vexaminoso para o país. Disseram isso no anonimato, naturalmente.
Um dos diplomatas citou que não há previsão nos protocolos cerimoniais do Itamaraty de que um coração no formol seja tratado da mesma forma que o governante de outro país. As honras estão previstas somente em caso de óbitos recentes do presidente da República, de outras autoridades civis e militares brasileiras, de chefe de Estado estrangeiro e de chefe de missão diplomática estrangeira.
A construção do Grito do Ipiranga
A saída de dom Pedro I do Brasil foi tumultuada, sob constantes crises políticas, justamente com o Partido Republicano. O golpe militar que derrubou sua família do poder monárquico para instaurar a República torna ambos os episódios, de 1972 e 2022, uma ironia cínica contra a família Orleans de Bragança.
Além disso, a literatura histórica recente revela que o protagonismo do príncipe na declaração da independência é muito mais uma construção histórica das elites econômicas do que um feito heroico. Muitas outras datas, geografias e personagens podiam protagonizar o simbolismo da Independência. Segundo “O sequestro da Independência – Uma história da construção do mito do Sete de Setembro” (Companhia das Letras), de Carlos Lima Junior, Lilia M. Schwarcz e Lúcia Klück Stumpf, as lutas e vitórias populares pela independência do Brasil foram gradualmente sequestradas pela monarquia, pelos paulistas, pelos militares, e, agora, pelo bolsonarismo.
A data mais disputada pelas elites para a efeméride seria o 12 de outubro, quando o príncipe chega ao Rio de Janeiro, e a independência é aclamada nas ruas pelo povo. No entanto, o próprio dom Pedro I, um ano depois, vai estimular o pouco falado 7 de setembro como um afago aos barões paulistas. Com a proclamação da República pelos generais, houve pouco interesse no tema, para evitar louros aos nobres portugueses. Só muito depois, no início do século XX, São Paulo começa a construir a iconografia do 7 de setembro que conhecemos, hoje, com um museu, um monumento e um quadro de Pedro Américo.
Vários locais do Nordeste celebram datas muito significativas para o afastamento político de Portugal. É o caso do 2 de julho na Bahia ou o 13 de março no Piauí. Datas nada pacíficas em que o povo brasileiro, – homens e mulheres brancos, negros e indígenas -, foi o principal protagonista da recusa sangrenta a obedecer ordens vindas de Portugal.
Muito da independência proclamada oficialmente por dom Pedro I, está mais relacionada com acordos financeiros entre Portugal e Inglaterra, que com real soberania nacional. Portugal foi indenizado pela perda da colônia e a Inglaterra passou a contar com fartos recursos agrícolas e minerais oriundos do Brasil escravocrata.
Por muitos motivos, portanto, o coração de um aristocrata português, deformado por produtos químicos, tem pouco a dizer sobre a independência do Brasil.