Vitória do “rechazo” no Chile. Afinal, o que houve?

A vitória do “não” no plebiscito que aprovaria o texto da nova constituição chilena neste último domingo (4) demandará um bom tempo para ser compreendida em toda sua complexidade.

Foto: MARTIN BERNETTI-AFP

No dia 25 de outubro de 2020, mais de 78% dos eleitores chilenos aprovaram a convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva para redigir uma nova carta magna que enterraria a Constituição Pinochetista. Em abril de 2021 eles elegeram uma maioria de convencionais progressistas. Pouco tempo depois, estes mesmos eleitores rejeitam de forma contundente o texto da Constituição proposta.

E não foi uma rejeição qualquer. Foi uma rejeição muito grande. Maior do que os sonhos mais otimistas da direita e até do que projetavam as pesquisas. A média das pesquisas apontava para a vitória do “rechazo” por 46,7%. Abertas as urnas, o Não venceu com 61,8% e o “Apruebo” obteve apenas 38,1%. A participação dos eleitores foi recorde. Foram votar 80% dos eleitores inscritos. O tamanho da derrota exige uma análise abrangente.

O presidente do Partido Comunista do Chile, Guillermo Teillier, em entrevista ao Semanário El Siglo disse que uma análise da “derrota retumbante” exigirá previamente um intenso debate interno nos (e entre os) partidos que defenderam o Apruebo.

O papel da direita

É consenso o papel decisivo que a desinformação e a propagação de fake news desempenharam na campanha.

Repetindo uma história que conhecemos bem no Brasil, a mídia hegemônica expressou os interesses de uma elite chilena reacionária contra um texto avançado, que declarava o Chile uma “república solidária, inclusiva e paritária”, com valores irrenunciáveis de “liberdade, igualdade substantiva entre os seres humanos”, previa ainda a desmilitarização da polícia, a paridade de gênero em todos os poderes de Estado e o acesso à saúde e educação como direito universal. No Capítulo sobre a Comunicação Social, o texto, na visão de estudiosos da Universidade do Chile, “garante os direitos fundamentais clássicos nesta matéria, como o direito à liberdade de pensamento, opinião e liberdade de expressão, sem censura prévia. Da mesma forma, são reconhecidas as dimensões sociais e coletivas do direito à comunicação (…) reconhece-se o direito que assiste a cada pessoa de fundar e apoiar a mídia, a proibição de monopólios, o dever do Estado de evitar a concentração da mídia e também contempla um sistema de mídia pública de âmbito nacional, regional e local. A neutralidade da rede, a conectividade concebida como um serviço básico, como água ou eletricidade”.

Os defensores da aprovação encontravam, por toda a parte, as mesmas dúvidas que um mar de mentiras espalhadas na rede ajudaram a consolidar: as pessoas perderiam as casas, o Chile se dividiria em muitas nações, o culto religioso seria proibido para os cristãos, etc. Um relatório revelou que sete páginas do Facebook usaram milhões de pesos na propagação de notícias em defesa do Rechaço. Das dez páginas que mais investiram em recursos durante a campanha, nenhuma era pela aprovação. Em todas as redes sociais o cenário era o mesmo. A mídia hegemônica em uníssono (rádios, jornais impressos e TVs) martelavam dia e noite pela rejeição ao texto constitucional.

Por outro lado, era mais do que esperado que a direita fizesse exatamente isso mesmo. Qual a surpresa?

As brechas abertas por setores da esquerda

Com menos de seis meses no exercício do mandato, seria injusto atribuir ao presidente Gabriel Boric peso determinante na derrota, embora sem dúvida ela recaia também sobre o seu governo. Tanto assim que logo depois do resultado Boric anunciou uma ampla reforma do gabinete ministerial, visando incorporar forças mais amplas, o que implicou em perda para a Frente Ampla e a incorporação do partido moderado Socialismo Democrático (SD).

Quiçá a derrota, ainda mais nesta dimensão, tenha ocorrido por uma certa autossuficiência dos setores progressistas que impediu a análise realista da correlação de forças. Afinal, a sucessiva onda de manifestações desencadeadas a partir de 2019 e que redundaram em diversas e contundentes derrotas para a direita, talvez tenha feito surgir em parte da esquerda a ilusão de que a batalha estava previamente ganha, e com isso as forças necessárias não foram mobilizadas nem se compreendeu corretamente o ambiente da disputa.

Em relação ao ambienta da disputa, algumas características chilenas podem igualmente nos ajudar a entender o resultado.

Dias antes do plebiscito o jornal New York Times publicou um editorial onde questionava como era possível um dos países mais conservadores da América Latina aprovar uma das constituições mais progressistas do mundo. O chileno médio é, de fato, conservador em termos de costumes e muito apegado aos símbolos nacionais. Um parênteses para esclarecer que, em minha opinião, este segundo aspecto não é um demérito nem está ligado necessariamente a uma visão política conservadora. Pelo contrário, o patriotismo autêntico é o patriotismo da esquerda consequente, que defende a soberania nacional, a integração latino-americana, é anti-imperialista, etc. Fecha parênteses.

A comunicação da direita soube aproveitar o fato de a nova Constituição declarar o Chile um estado plurinacional para inventar que o Chile seria dividido em várias nações independentes, que a nova Constituição estava sendo escrita por pessoas destituídas de amor pelo Chile e despreparadas. Algumas atitudes de convencionais progressistas parecem ter jogando água neste moinho. Vamos listar quatro delas que tiveram imensa repercussão midiática e foram habilmente exploradas pela reação.

1- Logo na instalação da Convenção Constitucional (4 de julho de 2021), ao se iniciar a cerimônia de abertura com a execução do hino chileno, alguns convencionais começaram a bradar palavras de ordem exigindo a libertação dos presos nos protestos. O hino foi interrompido assim como a instalação dos trabalhos. A mídia conservadora “denunciou” o “desrespeito com o hino”. Dois dias depois, uma das deputadas constituintes que obstruiu a instalação, Elsa Labraña (Lista del Pueblo), em entrevista à TV, quando questionada se não teria sido errado interromper a execução do hino, respondeu da seguinte forma: “Acho que não, o hino nacional gera muita divisão em nosso país”. O jornalista indaga se o hino e a bandeira, que estão na Constituição chilena, não deveriam representar a todos e Elsa responde que o hino e a bandeira “representam você, não os povos nativos e é justamente a Constituição que nós vamos mudar. Alguém pode pensar em fazer um novo hino, por que não, ou outra bandeira. Estamos em um processo de refundação do país”.

2 – O hino chileno começa assim: “Puro, Chile, es tu cielo azulado / Puras brisas te cruzan también”. No dia 30 de março de 2022, o deputado constituinte Félix Galleguillos, representante do povo Atacameño, propôs que o início passasse a ser cantado desta forma: “Pluri Chile es tu cielo azulado“. Uma deputada da direita tuitou o vídeo da proposta com o comentário: “Aqui está a prova, para que não digam que é fake ou que querem desacreditar o processo”.

3 – No dia 03 de maio, o constituinte pela Federação Regionalista Verde Social (FRVS), Nicolás Núñez, votou enquanto tomava banho. No chuveiro e com a câmara ligada. Só desligou depois que alguns convencionais solicitaram. A direita delirou e a reação da rede foi a pior possível. Núñez se desculpou posteriormente.

Nicolás Núñez se desculpou por votar durante o banho. Trecho de um discurso cantado do deputado:”Yo soy un constituyente, [Elisa] Loncón nuestra Presidente (…) Yo soy un constituyente, solo es un poco imprudente”.

4 – Já na reta final da campanha, no dia 30 de agosto, um comício em Valparaíso pelo “Apruebo” contou com a performance do grupo “Las indetectáveis”, que se define como um uma “comunidade de criação afetiva e resistência anarco-travesti dissidente”. O jornal espanhol El Mundo, descreveu a performance: “No evento da noite de sábado em Valparaíso, cerca de 3.000 pessoas viram como um dos integrantes do grupo puxou uma bandeira chilena do ânus de outro, simulando um aborto. ‘Este buraco é aprovado?’ Um membro do grupo se perguntava enquanto outro mostrava seu ânus ao público”. O mundo caiu sobre o governo e os organizadores do comício. O governo de Boric teve que ir à público dizer que denunciou ao Ministério Público o desrespeito à bandeira do Chile. Aliás, no texto final da Constituinte não havia nada visando alterar nem o hino nem a bandeira, mas o estrago estava feito.

“Alguns assuntos receberam muita relevância e não estavam entre os interesses primordiais do cidadão comum”

É claro que estas atitudes isoladas não explicam totalmente a derrota. Como afirma o ex-convencional e escritor Jorge Baradit (Independente) em entrevista ao El Siglo, “Houve pontos ruins e alguns convencionais cometeram erros de protocolo que assustaram o chileno médio. Mas seria subestimar o país pensar que porque alguém votou no chuveiro se rejeitaria um texto tão importante. Porém, aconteceram outras passagens mais sérias: interromper o hino ou sugerir que poderiam mudar a bandeira são questões que não se brincam em nosso país. Agora, seria o caso de ouvir a opinião destes protagonistas (mas) acusar exclusivamente a Convenção é fabricar um bode expiatório muito conveniente para todos, mas pouco útil para fazer uma análise séria”.

Para Baradit, o combate à proposta de nova constituição foi devido aos seus méritos e não aos seus defeitos: “Essa mesma convenção pouco formal, mais centenas de assessores, especialistas e representantes de movimentos sociais, produziu um texto que foi internacionalmente elogiado por economistas, ambientalistas e constitucionalistas de prestígio internacional”.

Ao ser questionado sobre que autocrítica poderia ser feita neste momento, o ex-convencional destacou:

Em retrospecto, aprovar um pacote fechado tão grande, com questões tão diversas faz com que a possibilidade de sucesso pareça ingênua. A intersecção de interesses em jogo de todos os participantes faz com que pareça impossível. Acolhemos todas as vozes silenciadas e dissidentes, mas não previmos como elas coexistiriam na mente dos chilenos. Para alguns, a Constituição era muito boa, mas a questão do aborto tornou-se insustentável, por exemplo, e eles rejeitaram os 387 artigos restantes só por causa disso. Assim aconteceu, em maior ou menor grau com outros assuntos, como as dúvidas sobre a liberdade de culto. Acho que alguns assuntos receberam muita relevância e não estavam entre os interesses primordiais do cidadão comum”.

Nesta quarta-feira (7) os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado do Chile fizeram, com representantes do governo e da oposição, a primeira reunião para tratar do novo processo constituinte.

Tanto o presidente Boric quanto a oposição declararam que pretendem levar adiante o processo constituinte, porém com a derrota do texto proposto pela Convenção dificilmente poderemos esperar avanços substanciais frutos de um novo processo resultado de uma significativa vitória política da direita. A não ser que o rugido ensurdecedor das ruas volte a soar com intensidade. Como lembrou o presidente do PC do Chile, Guillermo Teillier: “Não podemos esquecer que todo esse processo foi iniciado pelo povo, o povo é que gerou esse cenário. Acredito que isso deve continuar sendo construído com as organizações sociais, com maior abertura e maior participação, essa é a nossa posição”.

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