Bolsonaro desmonta programas de combate a fome

Orçamento encolheu merenda escolar, restaurantes populares e agricultura familiar. País não tem mais estoque regulador de preços do arroz e feijão.

Desde o início da pandemia, camponesas(es) Sem Terra e trabalhadores urbanos doam os almoços com arroz, feijão, carne e 4 complementos (verduras e legumes). A maior parte dos alimentos que compõem as marmitas é plantado em mutirões agroecológicos no Assentamento Contestado, na Lapa. Fotos Públicas do MST

Para garantir dinheiro depositado na conta de milhões de brasileiros na véspera de uma eleição, Bolsonaro desmontou muitas outras áreas ao cortar o orçamento. Os programas de combate à fome foram alguns deles, no momento em que 33 milhões de brasileiros sofrem de insegurança alimentar. 

Em quatro anos, a verba para seis ações cruciais para a segurança alimentar caiu 52,9% até o orçamento previsto para 2023. Em alguns casos, os programas foram completamente desmantelados, em pleno período de pandemia. Os gastos previstos de R$ 9,4 bilhões em2019 caíram para R$ 5,8 bilhões em 2022, e devem cair para R$ 4,4 bilhões no próximo ano.

Em contrapartida, o orçamento da transferência de renda cresceu, embora não seja suficiente para garantir segurança alimentar. Em 2019, o Bolsa Família tinha previsão de gasto de R$ 37,5 bilhões. Esse número aumentou 149% para R$ 93,5 bilhões em 2022.

Com os picos inflacionários atingindo os alimentos, o Auxílio Brasil acaba se diluindo não dando conta de comprar uma cesta básica em algumas regiões. Muito da inflação dos alimentos também se deve ao fim de programas que garantiam estoques públicos.

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Nos seis programas com foco mais estruturante, funcionários relatam também desarticulação na gestão, trocas constantes nas equipes e falta de continuidade de projetos, além de baixo empenho das poucas verbas destinadas, o que leva a novos cortes no orçamento do ano seguinte. É o caso do programa de aquisição de alimentos, da alimentação escolar na educação básica, das ações de proteção social básica, das ações de proteção social especial, da formação de estoques públicos com agricultura familiar, e da construção de cisternas.

Fim das cisternas de Lula

As cisternas no semiárido são fundamentais para garantir água para consumo, para alimentação, para criação e agricultura familiar. Bolsonaro praticamente paralisou o programa. Recursos da ordem de R$ 1,4 bilhão na construção de cisternas caíram para R$ 60 milhões em 2019, último edital do programa. 

O projeto das cisternas era a menina dos olhos do governo Lula, pois acaba com as imagens comuns anteriormente de pessoas morrendo do flagelo da fome e da sede no sertão do país.

Fim dos estoques públicos

Uma das primeiras medidas do governo Bolsonaro foi o fechamento dos armazéns da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), com proposta de privatização de vários deles. Estes armazéns mantinham estoques de grãos que ajudavam no controle de preços. Em caso de safra ruim de arroz ou feijão, os estoques eram liberados por todo o país, para que não houvesse inflação.

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Os estoques públicos provocam uma cadeia de efeitos positivos. Aumentam o mercado de oferta de produtores rurais, o mercado de consumo e garantem a sustentabilidade. Com isso, exercer pressão sobre preços privados e garante o sustento de milhares de famílias no campo. Com o fim das compras públicas, muitos sitiantes não conseguem manter as propriedades, deixam de produzir, o que gera mais pobreza e inflação de alimentos.

Na agricultura familiar, houve redução na compra de alimentos para a formação de estoques públicos, como os milhares de litros de leite mensais para merenda escolar, creches, hospitais e programas de doação.

De 2019 a 2021, Bolsonaro deixou de gastar cerca de 90% de todo o recurso disponível para as compras de estoques públicos. Em 2019, do orçamento de R$ 1,74 bilhão, o governo só gastou 12,8% verba (R$ 224 milhões). Em 2021, da previsão de R$ 1,6 bilhão, foram gastos R$ 136,2 milhões. E#m 2022, a previsão caiu para R$ 383,3 milhões, afinal, o governo não gasta mesmo…

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O programa Fomento Rural prevê acompanhamento de pequenos agricultores e transferência direta de recursos, entre R$ 2,4 mil e R$ 3 mil mensais. A quantidade de famílias atendidas despencou a menos de um terço: de 18.822 em 2019 para 5.726 neste ano.

Fim da merenda escolar

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que oferece merenda para alunos da rede básica pública, e garante a única nutrição para milhões de crianças pobres, não tem os valores reajustados desde 2017. Com muitas escolas recebendo apenas R$ 0,32 por aluno, prefeituras muito pobres precisam complementar com alimentos que são cada vez mais caros, para garantir um copo de suco com bolacha. 

Isso ocorre porque Bolsonaro vetou em agosto o reajuste de 34% nesta verba, que havia sido aprovada pelo Congresso. Um dos orgulhos do período dos governos de Lula e Dilma era a qualidade nutricional da merenda escolar, composta de diversidade e quantidade de alimentos da agricultura familiar, em vez dos produtos industrializados de hoje.

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Fim da coordenação nacional

A decisão fatal tomada no primeiro dia do governo Bolsonaro– a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) – reverberou na coordenação das ações contra fome. Servidores que fizeram carreira no programa de cisternas pediram para deixar a ação pela desarticulação causada pelo fim do conselho.

O programa de cisternas ruiu ainda na gestão de Osmar Terra, quando o governo deixou de contratar a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), rede formada por mais de três mil organizações da sociedade civil com expertise na construção dos poços.

Já o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) — que adquiria produtos da agricultura familiar para distribuir gratuitamente a quem não tem acesso à alimentação — foi adulterado para reforçar a distribuição de cestas básicas para adquirir um uso mais político do programa.

As cestas básicas são distribuídas apenas em bases de governos e parlamentares bolsonaristas, como já foi denunciado.

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Fim da assistência social

Na assistência social, programas cruciais no âmbito do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) estão sendo asfixiados. Os programas de assistência social com seus Centros de Referência (Cras) fazem a “busca ativa” de pessoas em situação de rua ou aquelas com histórico de violência ou uso de drogas para atendimento de alimentação e saúde.

Em 2019, a previsão orçamentária era de R$ 1,5 bilhão e foi reduzida para R$ 664,6 milhões neste ano – uma queda de 55,7%, que foi ocorrendo ao longo desse período. Muitos Cras praticamente fecharam e não cadastram mais ninguém.

Mesma situação ocorre com as verbas para a proteção social especial, que perdeu 31% das verbas no período.

O desafio do próximo governo será reconstruir essa rede de programas. Junto com isso, é preciso ter estratégia para criar empregos, valorizar o salário mínimo e investir. Os efeitos da transferência de renda se perdem num contexto econômico de inflação, baixa produtividade e crédito caro.

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