Boric apresenta Reforma da Previdência que acaba com fundos de pensão no Chile

Texto que será enviado ao Congresso põe fim a sistema de capitalização individual e cria sistema misto, encerrando o modelo de Pinochet

Gabriel Boric apresenta novo modelo de previdência chilena

“As AFPs, nesta reforma, acabam”. Com esta frase, o presidente do Chile, Gabriel Boric , anunciou, nesta quarta (2), o envio ao Congresso de uma reforma previdenciária que põe fim ao atual sistema de Administradores de Fundos Privados (AFP), criado na ditadura de Augusto Pinochet. Quando foi introduzido na década de 1980, o sistema de capitalização individual prometia pagamentos sólidos, mas deixou um quarto dos chilenos com pensões abaixo da linha da pobreza, enquanto obtém “lucros tremendos”.

O pronunciamento na TV e no rádio ocorre oito meses depois do presidente tomar posse, e apresentou o projeto de lei que altera o sistema de Previdência exclusivamente privado e o substitui por um sistema misto, que eleva os valores pagos aos beneficiários. A promessa de mudança foi um dos pilares da campanha que levou Boric à Presidência, e tenta reverter as atuais dificuldades do governo.

O presidente disse que a reforma se baseia nos princípios previdenciários com contribuições do Estado, empregadores e trabalhadores; e contempla a criação de uma administradora pública de fundos, para acabar com a gestão exclusiva das criticadas AFPs.

“Haverá novos gestores de investimento privado com a finalidade exclusiva de investir fundos de pensões e, para além disso, haverá uma alternativa pública , que permitirá promover a concorrência com a entrada de novos atores”, disse o chefe de Estado.

Compromisso das ruas

O novo sistema previdenciário começará a pagar as pensões assim que a lei for aprovada, disse o presidente. As AFP foram um dos principais alvos dos protestos sociais que explodiram em 2019 no Chile, crítica que se agravou, da esquerda à direita, durante a pandemia. O texto deve ser enviado para análise na semana que vem.

“Queremos deixar para trás, desta forma, um sistema extremo que não foi capaz de corresponder às expectativas que lhe foram colocadas e que tem deficiências reconhecidas”, acrescentou.

O sistema previdenciário atual é financiado exclusivamente pelos trabalhadores, que contribuem mensalmente com 10% do salário. Melhores pensões foram uma das principais demandas dos protestos de 2019 que abalaram o país por meses.

Boric lembrou que 72% das aposentadorias pagas pelo sistema atual estão abaixo do salário mínimo e que um em cada quatro chilenos recebe uma pensão de valor inferior ao necessário para ficar acima da linha da pobreza. “Isso ocorre ao mesmo tempo em que as AFPs recebem lucros tremendos, embora os resultados e a rentabilidade dos fundos sejam negativos”, disse. O novo sistema também reconheceria o trabalho doméstico e de assistência.

“Nos últimos anos, houve um grande debate sobre as AFP. Os chilenos e chilenas estão cansados das comissões abusivas e perdas geradas pelo sistema atual. As AFP, com esta reforma, chegam ao fim”, declarou Boric. “Haverá novos gestores de investimento privado com o objetivo de investir fundos de pensão, e existirá uma iniciativa pública que permita promover a competição com a entrada de novos atores”.

Contribuição patronal

Pelo sistema misto, além do valor pago pelos trabalhadores, que corresponde em média a 10,5% do valor do salário, os empregadores passarão a contribuir com valores que gradualmente chegarão a 6% do salário — hoje, os patrões não contribuem para os fundos individuais.

Boric garantiu que o novo modelo vai elevar de forma significativa os valores pagos: ele citou o exemplo de uma pessoa que tenha um salário de 400 mil pesos chilenos (R$ 2.177), e disse que, caso a reforma seja aprovada, o valor da pensão vai aumentar 46% para os homens e 52% para as mulheres.

Esses aportes adicionais, segundo Boric, “irão para um fundo de seguridade social que permitirá melhorar as pensões de todos e todas”, que será comandado por um gestor público e atores privados.

“Queremos construir um sistema de pensões no qual as pessoas confiem, não de forma gratuita ou como um cheque em branco, mas sim que lhes dê segurança diante das mudanças da vida. É isso a reforma, que permitirá que você e sua família vivam melhor”, disse o presidente, defendendo que o plano seja amplamente discutido pelo Congresso, pela sociedade civil, pelos fundos de pensão e pelos cidadãos chilenos.

Desafio do apoio político

O presidente afirmou que a reforma vai beneficiar “especialmente as mulheres, que são as mais afetadas pelo atual sistema”.

“O atual sistema de pensões está em crise, e isso ninguém questiona. As pensões de hoje não são suficientes para que nossos pais, mães, avós e avôs tenham uma vida digna na terceira idade, não importa o quanto trabalharam durante sua vida”, declarou.

Boric também precisa aprovar uma reforma tributária, apresentada em julho, que ajude a financiar o novo sistema previdenciário. Hoje, seu governo não tem maioria no Legislativo. Durante a pandemia de covid-19, parlamentares da oposição ao então governo de Sebastián Piñera aprovaram saques parciais dos fundos de pensão como medida emergencial diante da crise de saúde.

Esta será a terceira tentativa de um governo pós-redemocratização no Chile de realizar uma reforma da Previdência: antes de Boric, Michelle Bachelet e Sebastián Piñera apresentaram propostas de novos modelos, sem sucesso.

Para Boric, a aprovação da reforma seria uma importante vitória política, no momento em que seu governo enfrenta uma crise de popularidade. A qualidade de vida da maioria continua em queda, com a alta inflação, e tenta pôr nos eixos os planos para um novo projeto de Constituição, após a derrotado texto elaborado pela Convenção Constitucional, em setembro. 

Modelo atual

Pelo sistema chileno atual, o de capitalização individual obrigatória, cada trabalhador deposita todos os meses parte de seu salário em uma AFP. Os valores se destinam a financiar uma futura pensão que essa pessoa receberá. Além de totalmente gerido por fundos privados, o modelo difere do regime de repartição brasileiro, em que as gerações na ativa contribuem para quem está aposentado.

Cada trabalhador formal é obrigado a contribuir com 10% do seu salário mensal para uma conta pessoal supervisionada por um dos sete Administradores do Fundo, que existem. Os AFPs obtêm lucros milionários depois de aplicar essas economias nos mercados, que somam cerca de 8% do PIB chileno.

Seus defensores argumentam que o modelo contribuiu para o desenvolvimento do mercado de capitais nacional e responde por um terço do maior crescimento econômico que o Chile experimentou a partir de 1980, segundo um estudo da Associação AFP.

No entanto, os investimentos da AFP beneficiaram exclusivamente as elites e o sistema só funciona se você tiver um emprego estável e uma renda alta, algo impensável para a grande maioria dos trabalhadores.

Em 2008, foi feita uma reforma e criada uma pensão financiada pelo Estado, destinada aos 60% mais pobres que nunca contribuíram ou que recebiam pensões muito baixas. A contribuição estatal foi ampliada em 2021 para 185.000 pesos por mês (200 dólares).

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