Governo de SP pode favorecer exploração de moradores de rua em trabalho rural

Governo paulista quer mandar moradores de rua para trabalho no campo. Entidades pedem diálogo para discutir condições da proposta

São Paulo (SP), 11/04/2023 – Pessoas em situação de vulnerabilidade social na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, na altura do Viaduto Jaceguai Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

O governo de São Paulo pretende lançar um programa social em que pessoas em situação de rua sejam contratadas por produtores rurais, deslocando essa população para o interior. No entanto, se espalham entre as entidades que atuam pelos direitos dessas pessoas os questionamentos sobre a proposta.

Diante dos constantes resgates de trabalhadores rurais trabalhando em condições análogas à escravidão, existe a desconfiança do que pode ocorrer com essas pessoas que já se encontram em situação de vulnerabilidade nas cidades. Também alegam que a medida desconhece a realidade de parte desta população, não vai para a rua apenas por questões de emprego e renda, mas também devido ao alcoolismo, à dependência química ou problemas de saúde mental, deficiências físicas ou problemas graves de saúde, além de outras vulnerabilidades. Grande parte destas pessoas têm dificuldade para se manter em empregos sem apoio médico e psicológico.

A Secretaria de Desenvolvimento Social do governo e Tarcisio de Freitas (Republicanos) informou, em nota, que está estruturando o programa “Saindo das Ruas”, que tem como um dos eixos capacitação, emprego e renda, seja na zona rural ou nas cidades. Até o momento, no entanto, a “estruturação” não foi dialogada com entidades ligadas ao campo, aquelas que atendem esta população ou especialistas da assistência social.

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O objetivo é criar incentivos para os produtores rurais contratarem pelo menos uma pessoa em situação de rua. Em contrapartida, o estado propõe comprar a produção do que for plantado. O custeio do transporte dos moradores de rua será feito pelo estado.

Idílio no campo

O secretário estadual de Desenvolvimento Social Filipe Sabará disse, em entrevista à Rede Globo na última quarta-feira (12), que o campo traz “uma qualidade de vida” e que o estado está resolvendo uma questão pendente que é a demanda por trabalho.

Sabará destacou o envolvimento da agricultura familiar neste tipo de emprego, com “salários bem pagos”. Segundo ele, essas pessoas atendidas pelo governo demandam este tipo de trabalho “com qualidade de vida no campo”. No entanto, o governo não apresenta nenhum levantamento específico sobre o assunto.

Segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social, a iniciativa que vem sendo definida em parceria com as demais pastas leva em consideração questões de “acolhimento, acompanhamento, segurança e geração de renda”. 

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O tema tem estado na pauta da imprensa, devido a operações policiais violentas de dispersão de dependentes químicos e outros moradores de rua da região central de São Paulo. Embora alegue que tem realizado uma série de medidas para o acolhimento de usuários de drogas nas ruas da região central da capital, as ações mais visíveis envolvem a polícia e geram revolta nestas pessoas, que acabam revidando com violência, além de dispersarem-se por todo a região.

O novo governo também tem deslocado os restaurantes Bom Prato, com alimentação subsidiada para os mais pobres, para áreas periféricas, na expectativa de afastar os usuários da rua. Com isso, apenas deixa milhares de pessoas desprovidas de segurança alimentar.

Repercussão

O presidente do Movimento Estadual da População de Rua de São Paulo, Robson Mendonça, foi dos que expressaram a preocupação com o contexto de ocorrência de trabalho análogo à escravidão no setor.

“Eu vejo esse projeto completamente negativo, eu acho que devia ser melhor estudado. A gente não sabe qual é a fazenda que vão ser encaminhados, não sabe qual é a metodologia que vai ser usada, então eu, de início, sou totalmente contra esse programa do governo”, disse à Agência Brasil.

Ele avalia que “um projeto satisfatório” deveria reunir os movimentos de população em situação de rua, as entidades que trabalham com essa população e ver a maneira mais viável, mais aceitável para que haja um projeto, não de cima para baixo, mas de baixo para cima, capaz da recuperação e da inclusão social dessas pessoas”.

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A falta de diálogo com a sociedade também é uma crítica de Luiz Kohara, fundador do Centro Gaspar de Direitos Humanos. Ele alerta que empresas e trabalhadores precisam estar preparados para um programa como este. Não se trata de uma contratação simples, mas de acolher pessoas com vulnerabilidades diversas que as levaram a situação de rua. “O trabalho é uma das necessidades que ela tem, mas ela também precisa de outros apoios, dependendo de cada situação”, disse.

Em relação ao tipo de abordagem com maiores chances de sucesso para reinserir a população em situação de rua, Kohara aponta que experiências, inclusive internacionais, revelam ser importante garantir moradia. Há ainda a preocupação com falta de atendimento em saúde em áreas rurais.

“Para quem está em situação de rua, este tripé da moradia, saúde e trabalho é fundamental porque vai criando um processo de fortalecimento para ganhar autonomia e dar os passos da própria vida”, disse.

O coordenador da Pastoral do Povo da Rua, Padre Júlio Lancellotti, questiona as condições contratuais, de moradia, de direitos trabalhistas, entre outras perguntas.

Pelas contas da Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento, são 187 mil famílias agricultoras em São Paulo, e elas estariam dispostas a empregar mais gente, desde que a compra de parte da produção fosse garantida. Como são quase 86 mil moradores em situação de rua no estado, 52 mil na capital, segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas da UFMG, matematicamente, teria vaga para todos.

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“No estado de São Paulo, conseguir fazer isso com 86 mil pessoas, eu acho que é um pouco utópico, porque nem todas as pessoas têm condições de trabalhar em produção agrícola ou trabalhar em condições de plantações, de colheita. Existem pessoas com problemas mentais, físicos. Existem mulheres com crianças que estão radicadas aqui, que estão nas escolas e que têm já alguma atividade de questão reciclável”, disse padre Júlio ao g1.

O padre que acolhe essas pessoas com alimentação e alojamento, entre outros apoios, diz que atende centenas de pessoas com problemas de saúde que não seriam atendidas por este programa.

O procurador de Justiça e professor de Direitos Humanos Eduardo Dias Ferreira lembra que nem todos estão em situação de rua por falta de emprego. “A questão do emprego, do trabalho, é uma das portas de saída para população em situação de rua. Ele também questiona as condições das próprias famílias agricultoras que teriam que contratar para ter o benefício da compra de sua produção.

A Defensoria Pública de SP, por meio do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH), também manifestou preocupação com uma eventual política de expulsão de pessoas em situação de rua. Em nota, o órgão informou que não teve acesso ao teor do programa e busca tomar conhecimento do projeto para, então, definir seu posicionamento e atuação, em caso de eventuais violações de direitos. Em nota, o órgão afirma que a Constituição garante o direito à liberdade e ao respeito às singularidades de cada pessoa em situação de rua, com observância do direito de livre circulação entre municípios e a permanência nos municípios que forem mais convenientes à manutenção de sua vida e dignidade.

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A Resolução nº 40 de 2020 do Conselho Nacional de Direitos Humanos estabelece no artigo 13 que “configura violação de direitos humanos a suspensão e expulsão de pessoas em situação de rua dos serviços públicos como forma de solução de conflitos”.

Na Assembleia Legislativa, os deputados começam a se preparar para o debate. O deputado Simão Pedro (PT) criticou a proposta do governo do Estado para os mais de 80 mil moradores de rua da cidade de São Paulo. “A ideia é levá-los para o interior para trabalhar na roça, no campo. Pode parecer uma ideia boa à primeira vista, mas não tem um embasamento técnico ou científico”, disse. Para o parlamentar, o ideal seria oferecer trabalho remunerado.

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