Revolucionário do teatro, Zé Celso morre aos 86 anos

Dramaturgo que morreu nesta quinta-feira (6), depois de um incêndio em seu apartamento, em São Paulo, vai fazer falta ao teatro que mantinha frescor e inovação

Foto publicada nas redes do Teatro Oficina por ocasião dos 86 anos do dramaturgo, em 30 de março

O diretor José Celso Martinez Corrêa não gostava de drama. Para ele, a dramaturgia era trágica ou cômica. Talvez ele preferisse dar adeus à vida de forma cômica, mas nos deixou o Teatro Oficina de forma trágica, em meio a um incêndio. 

Zé Celso Martinez foi internado no Hospital das Clínicas, em São Paulo, na madrugada da terça-feira (4), depois do incêndio em seu apartamento, no bairro do Paraíso. Em estado grave foi entubado numa UTI. Ele sofreu queimaduras de segundo grau em 53% do corpo. Marcelo Drummond, marido do diretor, e outras duas vítimas foram encaminhados à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da região de Vila Mariana. A origem do incêndio pode ter sido o aquecedor da casa.

Vida em cena

Zé Celso nunca deixou de estar em cena e isso vai fazer falta. Há exatos 30 dias, estreou um espetáculo da vida real em grande estilo. Na noite de 6 de junho, o diretor oficializou a união com o ator Marcelo Drummond, companheiro há 37 anos, em uma grande festa no Teatro Oficina, seu chão sagrado.

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Fui uma “bacanal” para centenas de convidados, a festa ao deus dos vinhos e das festas que Zé Celso evocou em sua peça As Bacantes. As cantoras Marina Lima e Daniela Mercury interpretaram Fullgás e Terra, Bete Coelho e Leona Cavalli performaram e a bateria da escola de samba Vai-Vai não podia faltar. Toda peça teatral do Oficina tinha esse clima de bacanal, com música e batucada envolvendo o público aos gritos de “evoé”. Um casamento homoafetivo que não podia ser mais pagão.

Pretendia continuar ativo na dramaturgia, mesmo considerando que a idade já era avançada. Faltou um canto do cisne, aquela peça de despedida, que podia vir festiva e carregada de esperança de um novo Brasil. Mas teremos que nos despedir dele com as imagens do casamento orgíaco e pleno de brasilidade.

Desde o final da década de 1950, quando abandonou a faculdade de direito para defender suas ideias no palco, o teatro foi sua vida, sem desvios de rota. Ator, diretor, dramaturgo e militante das artes e da política, Zé Celso não teria deixado a vida sem resistência. Foi preciso o trágico incêndio para levá-lo.

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Só sucesso e provocação

Nascido em Araraquara, ele foi criado em uma família grande em que a mãe tinha personalidade forte e o pai era o sonhador que amava as artes. Essa genética gerou o rebelde que tentou se algemar ao terno e gravata da carreira de advogado.

Mas a faculdade do Largo do São Francisco foi o estopim para que largasse a promessa de carreira sólida para fundar em 1958 o incerto Teatro Oficina com dois colegas de faculdade, o carioca Renato Borghi e o mineiro Amir Haddad.

E não seria um teatro como os que havia com aquele teor europeu do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) ou nacionalista como o Teatro de Arena. Restou do Direito a capacidade de defender suas ideias com vigor e polemismo, influenciando todo o teatro posterior.

Os primeiros textos montados são os biográficos Vento Forte para Papagaio Subir (1958) e A Incubadeira (1959). Em 1963, veio o sucesso com Pequenos Burgueses, que expressa o clima pré-golpe militar, que Máximo Gorki traduzia da Rússia pré-revolucionária.

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Com a ditadura, não tinha como fazer teatro sem ofendê-la. Começam os textos de rebelião contra regimes autoritários, como Andorra, do suíço Max Frisch montado em 1964.

Mas o ambiente cultural do TBC e do Arena, que já haviam influenciado dramaturgos Brasil afora, começava a soar envelhecido quando Zé Celso mergulhou no Tropicalismo e na antropofagia do escritor Oswald de Andrade. O Rei da Vela, peça escrita pelo modernista em 1937, foi encenada pela primeira vez em 29 de setembro de 1967, e não nos moldes lineares e clássicos do teatro da época. A peça é uma alegoria crítica ao capitalismo para um momento que preparava o pior da ditadura militar brasileira.

O Rei da Vela entra, então, para o panteão cultural brasileiro com filmes como Terra em Transe, de Glauber Rocha, com o disco Tropicália ou Panis et Circenses, idealizado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, com as artes plásticas de Hélio Oiticica, entre outros manifestos.

Com um tom tão revolucionário para os palcos, ficava difícil conter Zé Celso em alguma camisa de força dramatúrgica. Foi preciso surgir outro evento teatral, este  que deixou marcas políticas profundas na arte brasileira. Zé Celso monta Roda Viva, de Chico Buarque, em janeiro de 1968, que mostrava os bastidores do sucesso de um cantor que cai em desgraça.

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Sua marca registrada, o modo como insere o público no espetáculo surgia de forma polêmica, chamando a atenção do reacionarismo da sociedade e do governo. Em vez de metáforas, o texto era direto, agressivo e assustador para quem estava na poltrona. Um fígado de boi cru era estraçalhado em meio ao público e provocações religiosas escandalizavam a Tradição, Família e Propriedade.

Em julho, na temporada paulistana, homens encapuzados e armados de cassetetes invadiram o Teatro Ruth Escobar e surraram os atores. Em Porto Alegre, o espetáculo acaba com o sequestro de artistas. Foi preciso recuar. Ele encena Galileu, Galilei e Na Selva das Cidades, do alemão Bertolt Brecht.

Foi só um intervalo para Zé Celso assumir a influência do contato com o grupo americano The Living Theater, e passa a encenar seus rituais dramatúrgicos, rompendo de vez com a narrativa clássica. Gracias, Señor (1972) causa conflitos no próprio grupo com a saída, entre outros, de Renato Borghi.

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Foi o prenúncio de um clima sombrio e silencioso que culminou com o exílio entre Portugal e Moçambique, após a prisão e tortura, em 1974. De volta em 1978, Zé Celso atravessa os anos 1980 discreto. Só em 1991 volta à Cena com As Boas, adaptação da peça As Criadas do francês Jean Genet.

Daí pra frente, há uma explosão de criatividade, inovação e vigor com peças como Ham-Let, versão da tragédia de Shakespeare. Em 1996, durante uma sessão de As Bacantes, o cantor Caetano Veloso foi arrancado da plateia e despido pelos atores para ser “devorado” em cena. 

As peças longas de horas, propositalmente, espantavam plateias conservadoras que frequentam musicais da Broadway, que parecem cinema encenado num palco italiano. Mas fascinavam quem queria viver uma experiência radical que mostra o que pode ser o teatro em sua plenitude. Um teatro que não parece com mais nada, senão ele mesmo.

Um dos projetos mais ambiciosos de Zé Celso atravessou a primeira década de 2000, a transposição para os palcos do épico Os Sertões, romance de Euclides da Cunha. A violência ancestral das elites brasileiras ganhava sua tradução de carne e osso. 

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Foi por essa época que o apresentador Silvio Santos se tornou alvo preferencial de suas ironias nas peças, pela disputa com Zé Celso, devido à desconfiguração que a obra de um shopping center no terreno vizinho causaria ao Teatro Oficina. Depois de muita mobilização cultural e política, até hoje o imbróglio não foi solucionado.

Em 2017, a remontagem de O Rei da Vela e depois de Roda Viva celebraram as cinco décadas da estreia dos espetáculos em meio ao clima de polarização e avanço bolsonarista. Alegoria que continuou com sua versão em 2022 de Esperando Godot, de Samuel Beckett, em meio aos desmandos de Jair Bolsonaro, que ameaçava se reeleger. 

O Fausto, de Christopher Marlowe, foi a peca que atravessou a eleição histórica entre Bolsonaro e Lula. A disputa entre o bem e o mal na vida de Fausto não podia ser melhor forma de fazer o público refletir.

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