UNE quer consolidação da lei que democratizou o acesso às universidades

As cotas abriram as portas da Universidade para a juventude pobre, em geral, preta. Debate sobre a Lei das Cotas indica a necessidade de manter e aprimorar a Lei.

Imagem do clipe "As Cotas", da União Nacional dos Estudantes

A já histórica 59ª edição do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), que ocorre em Brasília até este domingo (16), não apenas marcou a retomada da mobilização em massa do movimento estudantil, mas também mostrou a cara da nova juventude universitária após 10 anos de vigência da lei federal 12.711/12, a Lei de Cotas. Como constatou o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante na noite de quinta-feira (13), a norma conseguiu democratizar o acesso e ainda trouxe uma potente diversificação racial e socioeconômica ao ensino superior público e privado do país. Um balanço desse processo foi debatido na manhã desta sexta-feira (14), durante o debate “Enfrentar o racismo, 10 anos da Lei de Cotas: balanço e perspectiva”, realizado na Universidade de Brasília (UnB), que é uma instituição pioneira na adoção de ações afirmativas de corte racial.

“No momento atual, as cotas, que já eram uma emergência, se colocam como uma imprescindibilidade e, portanto, nosso papel é continuar lutando para que ela se mantenha, se aprimore e se amplie”, defendeu o professor José Vicente, advogado, militante do movimento negro e o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, instituição pioneira de ensino no Brasil que ajudou a fundar em 2004. Para Vicente, a Lei de Cotas pode ser considerada a maior e melhor conquista que a atual geração pôde disponibilizar para a juventude brasileira.

Jovem preta e periférica, a secretária nacional de Juventude do PT, Nádia Garcia fez um balanço sobre como a lei de cotas não apenas democratizou o acesso ao ensino superior, mas transformou uma geração.

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“Não muda só a realidade do jovem negro que entra na universidade, não muda só o currículo, mas ela muda toda a realidade do território que você ocupa, sua família, toda a perspectiva de futuro e de vida. A lei de cotas mudou as nossas vidas”.

Instituída em 2012, a Lei de Cotas reserva 50% de matrículas em universidade e institutos federais a alunos que cursaram o ensino médio em escola pública, com renda familiar igual ou menor a 1,5 salário mínimo, e pessoas com deficiência e que se identificam como pretos, pardos ou indígenas.

Programa bem-sucedido

Para a primeira mulher preta eleita deputada federal pelo estado do Paraná, região marcada pela violência racial, a luta pelas cotas vem de longe.

“O movimento negro, desde sempre, lutou para que a gente tivesse acesso à educação, após uma abolição inacabada”, afirmou Carol Dartorra (PT-PR). Como instrumento de transformação social, enfatiza a deputada, as cotas foram no âmago do maior problema social brasileiro, o racismo.

“Todas as outras exclusões decorrem do racismo, a falta de infraestrutura nas periferias, de oportunidades do mercado de trabalho. Esse sucesso da política de cotas está visto, está dado. As cotas são bem-sucedidas promoveram inclusão que demoraria 100 anos, em apenas 10 anos”, acrescentou.

O sucesso mencionado por Dartorra também pode ser medido em dados. De acordo com o Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas (CAA), o desempenho dos cotistas é equivalente ao de não cotistas. Inclusive o consórcio preparou uma cartilha para responder esta e outras dúvidas. Um exemplo na cartilha indica uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que levou em consideração pontuações do Enem e notas de graduandos entre 2016 e 2020.  A pesquisa constatou que, ao longo da graduação, os cotistas superam defasagens existentes durante a formação, além de que os cotistas tendem a evadir menos dos cursos.

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Uma pesquisa da Unesp também indicou que o desempenho de cotistas é igual ao dos demais alunos da instituição. O estudo foi conduzido pelos professores Eduardo Galhardo, Mário Sérgio Vasconcelos, Fernando Frei e Edgar Bendahan Rodrigues (todos da Faculdade de Ciências e Letras do câmpus de Assis). Com dados entre 2014 e 2017, concluíram que não houve diferenças relevantes entre o desempenho acadêmico ou de frequência entre alunos cotistas e não cotistas.

Preservação e ampliação

Após uma década de vigência, a Lei de Cotas enfrentará, no próximo semestre, seu principal desafio desde então. É que a própria lei já previa, em de seus artigos, uma revisão após 10 anos, e que foi adiada no ano passado, pelo governo de Jair Bolsonaro. À frente desse debate, está a deputada federal Dandara Tonantzin (PT-MG), a mais jovem parlamentar negra da Câmara.

“A gente tem que ter capacidade de apontar coisa para o futuro, mesmo que não seja imediato, mas que próximas gerações irão colher. Nesse momento, a luta que estamos travando é para continuar, aprimorar e aperfeiçoar a Lei de Cotas”, afirmou Dandara, que deverá apresentar em breve seu relatório. A ideia é consolidar a Lei de Cotas, que inclui uniformizar a metodologia de acesso. Nesse ponto, um dos itens que devem constar no relatório é a obrigatoriedade de as seleções contarem com bancas de heteroidentificação. “Que as bancas sejam etapas obrigatórias, que se crie uma regulamentação das bancas, que a gente construa diretrizes de funcionamento das bancas de heteroidentificação. Não dá para cada universidade fazer de uma forma”, argumentou.

Dandara também prometeu organizar as cotas indígenas e quilombolas e “colocar o dedo na ferida e pensar o lugar das pessoas trans na sociedade”. “Essas pessoas estão naqueles lugares mais precarizados e vulnerabilidade”, destacou, falando da necessidade de criar instrumentos de acesso ao ensino superior para este segmento, um dos mais marginalizados do país.

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Desafios

O caminho para dar continuidade à Lei de Cotas não será fácil. Em meio a uma correlação de forças desfavorável no Congresso Nacional, exigirá muita pressão social.

“No Rio Grande do Sul, a avaliação e a rediscussão da lei de cotas não é como melhora, mas como acaba esse instrumento”, denuncia a deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB), que está entre as primeiras parlamentares negras eleitas na história da Assembleia Legislativa gaúcha.

Para Gabriel Henrique, ex-secretário-geral UNE, foi possível vencer o racismo nas ruas, nas eleições de 2022, “mas ele ainda está vivo nas ideias”. Ele defendeu uma forte unidade da juventude e do movimento estudantil para defender e aprimorar a Lei de Cotas.

“Foi com muita luta e mobilização, ocupação de reitorias pelo país afora, reuniões e mobilizações diversas. Se temos a Lei de Cotas, foi porque teve pressão social nas ruas”, observou.

Uma das principais necessidades do momento é ampliar o direito dos estudantes que já são cotistas, após o ingresso na universidade. “Tenho andando pelas universidades no Rio Grande do Sul e é assustador o índice de evasão escolar e quando vai ver o recorte, quem está na linha de frente? Primeiro, as mulheres pretas”, afirmou Bruna Rodrigues.

“Não dá para debater a lei de cotas sem estar atrelada à assistência estudantil. Renovar a lei de cotas deve ser e será um compromisso da UNE”, defendeu Manuella Mirella, estudante da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e candidata à presidência da UNE pelo Bloco na Rua da União da Juventude Socialista (UJS).