Novelas e série debatem dramas femininos que as estatísticas constatam

Obras como “Terra e Paixão”, “Vai na Fé” e “Os Outros” colocam em pauta o estupro e a violência doméstica que atingem milhares de brasileiras e que cresceram nos últimos anos

Débora, como Lucinda; Sharon como Sol e Maeve como Mila. Fotos: divulgação/TV Globo

Os casos de violência contra a mulher cresceram nos últimos anos, refletindo o aumento de posições machistas, misóginas e brutalizadas que ganharam força com o bolsonarismo. Tal situação não passou em branco em algumas produções da teledramaturgia brasileira. Novelas e séries que trazem personagens com esse tipo de história podem ajudar a envolver parte da população no debate, expondo a virulência enfrentada diariamente por centenas de brasileiras.

Ao menos duas novelas da Rede Globo exibidas atualmente tratam do tema.  Uma delas é “Terra e Paixão”, na qual a atriz Débora Falabella vive Lucinda, mulher que sofre violência doméstica por parte do marido, vivido por Ângelo Antônio. “É muito triste a gente ainda precisar falar sobre violência contra mulher, apesar de ser muito importante porque as mulheres têm tido coragem para falar sobre o assunto. É uma forma de se colocar e denunciar os abusos físicos e emocionais”, disse Débora recentemente ao jornal O Globo

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Outra obra que tem merecido destaque nessa temática é “Vai na Fé”, que também tem tratado de um tema que ronda parte considerável das mulheres: o abuso sexual. A protagonista da trama é Sol, vivida por Sheron Menezes, uma mulher negra que foi vítima de estupro na juventude e engravidou de seu violador. Além da temática feminina, a novela joga luz também sobre a luta cotidiana da população negra periférica.

Na série “Os Outros”, veiculada pela Globoplay, o tema das agressões domésticas também está presente. Com foco na intolerância social e tendo como centro da trama original a espiral de violência desencadeada por um simples desentendimento entre vizinhos, a obra tem, entre suas personagens, Mila, interpretada por Maeve Jinkings, que sofre nas mãos do marido Wando, o ator Milhem Cortaz. 

“Quando a gente pensa em violência doméstica, imagina uma caricatura de mulher. Mas isso está tão próximo da gente, de amigas fortes, instruídas. Entendi que era preciso complexificar o grau de submissão dela debaixo de uma camada de reação. Como se tivesse o tempo inteiro um conflito interno”, explicou Maeve ao O Globo. 

Terror e realidade

As três obras refletem sobre um tema que não é novo, mas que segue atual e que precisa ser enfrentado de todas as formas possíveis. Na semana passada, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que as agressões em contexto de violência doméstica tiveram aumento de 2,9% no ano passado, totalizando 245.713 casos. As ameaças cresceram 7,2%, resultando em 613.529 casos; e os acionamentos ao 190, número de emergência da Polícia Militar, chegaram a 899.485 ligações, o que significa uma média de 102 acionamentos por hora. 

Outro dado estarrecedor trazido pelo levantamento diz respeito ao número de feminicídios: foram 1.400 em 2022, aumento de 6,6% em relação a 2021, quando foram registrados 1.300 casos. 

Quanto aos estupros, o número é o maior registrado desde 2011: foram 74.930 vítimas em 2022, uma média de 205 por dia, o que representa um aumento de 8,2% na comparação com 2021. A taxa é de 36,9 casos para cada 100 mil habitantes.

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Para Vanja Santos, presidenta nacional da União Brasileira de Mulheres (UBM), embora as leis tenham avançado, “a questão da violência contra a mulher, principalmente durante o último governo, ficou ainda mais nítida entre nós e avançou para tantos espaços que as pessoas começaram a sentir a necessidade de também falar sobre isso onde atuam. Eu acho que é um pouco essa concepção de autores e atrizes das novelas e da própria Globo”. 

Ela avalia que trazer o tema à teledramaturgia é importante “porque consegue mexer com amplos setores da sociedade e no íntimo das pessoas. As novelas e séries podem e devem cumprir esse papel porque, para que as leis funcionem, não basta a gente perseguir o cumprimento via ordenamento jurídico ou no contexto policial contra quem as infringe. O conjunto da sociedade tem que pautar isso também”. 

Ao site Brasil de Fato, Lorena Rúbia Pereira Caminhas, pesquisadora do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual de Campinas (Geict/Unicamp), salienta o papel do público ao repercutir o que acontece nas obras de ficção: “A narrativa da novela traz a temática e traz o problema, mas o público não se limita. As pessoas conversam entre si, dialogam sobre as questões que estão acontecendo na novela e vão complexificando aquilo que está sendo dito.”

Vanja destaca o peso da cultura machista na imagem que se tem das mulheres e na naturalização desses tipos de violência. “Fomos criados socialmente para achar que a violência contra a mulher é algo normal e culpamos a mulher, a roupa curta, o comportamento. A sociedade já tem um mecanismo para culpar as mulheres e minimizar qualquer agressão que venha por parte do homem. Essa é uma construção social e é contra isso também que a gente luta todos os dias, para que a gente vá se fortalecendo e que muitas pessoas debatam isso em todos os cantos do país”.