Cerca de 30.500 pessoas serão eleitas para os conselhos tutelares

Conselheiros devem defender direitos das crianças e adolescentes. Mas a eleição mobiliza a extrema direita que visa ganhar terreno para as eleições de 2024

UNICEF/BRZ/Giacomo Pirozzi

No próximo domingo, 1o. de outubro, ocorrem as eleições de conselheiros tutelares em todo o país. O Brasil tem, ao todo, 6.100 conselhos tutelares distribuídos por seus 5.570 municípios. Serão 30.500 conselheiros eleitos em todo o pais. Qualquer cidadão acima de 16 anos pode procurar sua sessão de votação no bairro e votar em até cinco candidaturas. 

Os conselheiros tutelares são defensores dos direitos humanos remunerados pelo poder público, para defender e garantir os direitos das crianças e adolescentes. São estas pessoas que requisitam serviços públicos junto às prefeituras municipais, governos estaduais e também aos órgãos do governo federal para atender demandas das famílias.

Getúlio Vargas Jr

No entanto, agentes comunitários e lideranças sociais têm observado um desvio de função de conselheiros, nos últimos anos, com interesses políticos específicos, em vez do ideal de defesa dos interesses mais legítimos da comunidade. “A direita e a extrema-direita estão extremamente articuladas para fazer desse processo da eleição do Conselho Tutelar uma prévia do processo eleitoral do ano que vem”, disse Getúlio Vargas Jr, da Confederação Nacional de Associações de Moradores (Conam), que acompanha de perto as eleições deste domingo, em Porto Alegre (RS). 

Desta forma, lideranças religiosas influentes da comunidade têm jogado peso nas eleições para eleger pessoas comprometidas com suas agendas fundamentalistas, para contribuir para a eleição de suas bancadas e fazer a disputa com os movimentos populares e as políticas públicas de esquerda.

Pautas conservadoras

Getúlio diz que já foram relatados casos de criminalização de famílias com religiões de matriz africana, omissões em relação a famílias ou crianças que tenham uma orientação sexual diferente do padrão heteronormativo. “No último período, a gente viu vários casos de conselheiros tutelares atuando para promover a desinformação e o preconceito a partir de um lugar de fala religioso. Então tem esses gargalos que a gente precisa olhar com carinho para que isso não se fortaleça”, alertou. 

Nágyla Drumond

Nágyla Drumond, socióloga (UECE) e diretora nacional de mulheres da Conam, também observa como o Conselho Tutelar cumpre um papel fundamental ao estar atento a abusos que sofrem meninas e meninos, em suas próprias casas. “Eu entendo a eleição do Conselho Tutelar como algo de suma importância, num momento em que, por exemplo, a esmagadora maioria de estupros e outros tipos de abuso sexual ainda se dá especialmente com meninas, crianças jogadas a toda sorte de falta de proteção familiar, a toda sorte de insegurança alimentar, a toda sorte de violência doméstica e violência urbana, envolvimento com o tráfico de drogas e com a exploração sexual”, afirma.

Antônio Pedro, Tonhão

Antônio Pedro de Souza, o Tonhão, é diretor da Facesp (Federação das Associações Comunitárias do Estado de São Paulo), acompanha as eleições a partir da capital paulista e observa a quantidade pequena de conselho e conselheiros para cobrir a dimensão da metrópole e seus desafios. “Ainda assim, há pessoas que entram na disputa meramente pelo salário, cerca de R$ 4 mil, um salário aparentemente alto, mas que é pouco se você sabe a complexidade da tarefa no conselheiro, que diz respeito ao cuidado com famílias desestruturadas, vulneráveis, de áreas muito flageladas, de violência e crime organizado, às vezes”, ressalta.

Tonhão ainda aponta os casos de conselheiros apoiados por políticos profissionais para se tornarem sua base de apoio na comunidade ou aqueles apoiados pela massa de seguidores de alguma igreja. Para ele, estes casos tendem a usufruir do recurso público e da estrutura do Conselho, sem qualquer eficácia para a população que o elegeu. 

“A bíblia e a bússola do conselheiro tem que ser o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA]. Achamos muito ruim misturar as coisas, misturar as funções, e desvirtuar aquilo que seria o direito dos adolescentes com a questão de ordem, de comportamento, de costume ou religioso, que são específicos de uma igreja e valores gerais da sociedade”, justificou, relatando que houve casos de conselheiros afastados por confundir estas questões.

Desta forma, para além do debate sobre as urgências da fome, da educação, da saúde e do cuidado com as crianças, o processo eleitoral do Conselho Tutelar, também tem se colocado como um espaço de disputa de ideias e de concepção de futuro para o Brasil, que pode significar a reafirmação de valores democráticos ou a eliminação de direitos conquistados. 

Desafios da infância na cidade

Getúlio também defende que o Conselho Tutelar precisa ser um espaço valorizado, para que tenham estrutura adequada para desempenhar essa tarefa da melhor maneira possível. Muitos desses órgãos sequer têm condições de oferecer privacidade para as famílias ou crianças. Outros contam com viaturas próprias para mobilidade nos bairros.

Também é fundamental avançar numa concepção de garantia da alimentação adequada, da segurança alimentar, diz o líder social. “Infelizmente, se 33 milhões de brasileiros passam fome no Brasil e mais de 110 milhões de pessoas têm algum nível de segurança alimentar — em dados do ano passado—, boa parte desse bloco são crianças. Então, é importante que a gente possa garantir não só o funcionamento adequado dos conselhos tutelares, mas de um conjunto de políticas públicas que garantam a educação, a alimentação, enfim, acesso a todos os direitos humanos fundamentais, em especial desse grupo tão vulnerável que é a criança e o adolescente”, afirma.

Em São Paulo, Tonhão apontou uma demanda histórica da infância que é o acesso à creche. “Neste momento, na idade mais tenra do acesso à educação infantil, ainda tem alguma demanda. Mas São Paulo já foi muito pior na oferta de creches para as mães trabalhadoras”.

Do mesmo modo, ele acredita que “faltam equipamentos que tratem a criança na sua integridade”. Ele cita os CEUS (Centros Educacionais Unificados) que oferecem cultura, esporte e lazer, mas são poucos para tantos milhões de habitantes. “Eles integram a comunidade, suas piscinas são abertas aos finais de semana para todos. Então é um equipamento de integração comunitária, que atende as várias demandas das crianças”, conta.

Outra questão preocupante para Tonhão é a grande quantidade de crianças e adolescentes que vivem em ocupações, que não têm casa própria ou moradia, vivem de forma precária e transitória, ou mesmo nas ruas. Ele fala em 54 mil pessoas que vivem hoje nas ruas de São Paulo, entre elas, muitas crianças e adolescentes. 

“Há uma demanda por proteção desses adolescentes em situação de rua, ou que mora em ocupações, que muitas vezes são vítimas de reintegração de posse, e, cujas famílias estão no terreno ou no prédio abandonado, são jogadas no olho da rua com seus filhos”, denunciou. 

Outra ideia que Tonhão propõe a partir de sua observação é a a criação de fóruns regionais da criança e do adolescente, que possam reunir uma rede de serviços públicos que atendam à criança em todas as suas necessidades, “seja o jovem dependente químico, os CAPs infantis ou para o adolescente, mas também na área da saúde e da educação”.

Mobilização e fiscalização

O dia 1º de outubro é o dia-chave desse processo de afirmação dos valores impressos no ECA. Mas Getúlio enfatiza que, depois, é preciso garantir um processo de fiscalização e mobilização para que os conselheiros possam cumprir os seus papéis, e, de fato, garantir o direito à criança e ao adolescente. “Eu reforço também que é preciso derrotar essa narrativa conservadora que infelizmente tomou conta de muitos conselheiros do Brasil”, diz o dirigente da Conam. 

Ele observa muitas candidaturas colocadas para tentar derrotar ou demarcar com o campo político progressista. “Depois, esses atores vão atuar como cabos eleitorais avançados para eleger vereadores e deputados reacionários, o que é muito ruim para as populações mais pobres”, diz ele, salientando a necessidade de observar antecedentes de atuação e compromisso social do candidato. Identificar as ideias e consciência do(a) candidato (a) sobre os desafios da comunidade e suas demandas e como lidar com elas, também é recomendado. 

Nágyla acrescenta que a eleição do Conselho Tutelar também concretiza a máxima, de que cuidar de crianças e adolescentes não é um papel apenas da família e majoritariamente das mulheres, que ainda são as maiores responsáveis pelo trabalho de reprodução social. “A eleição do Conselho Tutelar nos diz em alto e bom tom que cuidar de crianças e adolescentes é papel de uma aldeia inteira. É papel da comunidade, é papel das suas famílias, é papel do Estado e é papel da sociedade como um todo”, declarou.

Ela também ressalta as similaridades com as eleições municipais, fortemente marcadas por disputas territoriais e por segmento social de atuação. “Os candidatos buscam ter cada vez mais estrutura, recursos materiais e humanos, para entrar na disputa, apoiados por parlamentares e lideranças já consolidadas. Há uma feição da eleição pra Conselho Tutelar que se comporta como se fosse uma pré-eleição de vereadores. Uma espécie de prévia da força e musculatura eleitoral de parlamentares municipais, especialmente, no ano anterior ao pleito para as câmaras municipais”, compara.

Mas ela avalia que o quadro da disputa é “polissêmico” (com vários sentidos), “tensionado pelo poder econômico e o capital político de agentes públicos já consolidados”. Ela citou as redes políticas de articulações locais, a associação de moradores, as igrejas, as escolas, times esportivos etc.

Tonhão também conta que faz um esforço para divulgar as candidaturas comprometidas com a vocação de cuidar das crianças e adolescentes. “Quatro anos é um mandato razoavelmente longo, a pessoa tem uma função pública, é remunerado, tem autoridade, inclusive. Um conselheiro pode buscar um juiz”, diz.

“É como se fosse uma mini-eleição para vereador. E tem lugares que é mais difícil eleger conselheiro tutelar do que vereador, porque é uma eleição que precisa convencer as pessoas a votar, pois é um voto voluntário e não obrigatório”, explica. Ele acrescenta que, o que é um emprego público ou um espaço de construção política para muita gente, é apenas um voto para outros. “Então, tem uma disputa em alguns casos tão grande ou maior do que a da própria vereança”, completa.

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