Especialista explica os problemas causados com a privatização da energia

Engenheiro eletricista Álvaro Martins fala como a privatização da Enel e o retorno da manutenção corretiva culminaram no apagão da grande São Paulo

Fotos: Creative Commons/Flickr

As causas do apagão que acometeu a grande São Paulo no início de novembro ainda reverberam com a falta de explicação da empresa privada de energia Enel. Inclusive a Secretaria Nacional do Consumidor notificou a Enel por duas vezes para que prestasse esclarecimentos.

Em entrevista ao Portal Vermelho, o engenheiro eletricista Professor Álvaro Martins, que é conselheiro do CREA-SP pelo Sindicato dos Engenheiros – SEESP, para jogar “luz” aos acontecimentos, explica aspectos importantes sobre a atuação da empresa para entendermos como a privatização do sistema elétrico criou a “tempestade perfeita” que gerou o caos em São Paulo.

Martins, que é filiado e militante do PCdoB e especialista em energia e sistema elétrico de potência, alerta: “não são somente os empregados das empresas estatizadas que sofrem as consequências nefastas das privatizações, mas todos nós, como agentes consumidores dos serviços”. Confira abaixo a entrevista:

A falta de resposta da Enel para o evento climático na sexta-feira (3), deixando milhões sem energia, situação que perdurou para milhares de pessoas até esta quinta (9), é um indicativo de que a privatização de serviços essenciais para a população é uma roubada?

Em engenharia há três modelos de manutenção de sistemas e máquinas. Deles derivam uma ou outra variação, porém, já estão estabelecidos com a evolução das experiências e tecnologias. A junção desse tripé é o que se pode chamar de “Função Manutenção”, isto é, o modelo mais atual e praticado no mundo por ser mais produtivo e barato ao final. A manutenção corretiva é o sistema que vigorou até os anos 1960 que, simplificadamente é a do tipo “quebrou conserta”. Ela isoladamente pode ser considerada obsoleta, cara, ineficiente e a que mais afeta a produção.

A manutenção preventiva é aquela que pela experiência ou frequência de falhas e informações de fabricantes busca-se evitar que ocorram, por meio de inspeções periódicas, troca de componentes duvidosos ou que sofreram algum estresse durante a operação normal. A manutenção preditiva é aquela que, de acordo com a vida útil esperada dos equipamentos e componentes, independentemente de falha, são trocados por envelhecimento ou desgastes normais para que não provoquem danos operacionais ou de produtividade.

As empresas privatizadas, que é o caso da Eletropaulo Metropolitana, subsidiária da Eletropaulo Eletricidade de São Paulo SA, deu passos atrás ao retornar à “manutenção corretiva”, pois, os custos, de acordo com as resoluções da ANEEL acabam por ser transferidos aos consumidores. Essa situação é agravada com o tempo, a cada transferência de ativos as condições pioram. A ENEL adquiriu a concessão na Região da Grande São Paulo em 2018. De lá para cá o quadro de pessoal próprio foi reduzido em cerca de um terço e os lucros praticamente dobraram.

Didaticamente, um bom exemplo para explicar a situação atual é a atividade de poda de árvores. A Eletropaulo, empresa de economia mista controlada pelo Estado de São Paulo, possuía várias equipes de podas de árvores em toda a região de concessão e, no caso da cidade de São Paulo, distribuídas nos bairros. No período de seca eram feitas inspeções seguidas das podas de árvores e até cortes quando necessários. Isto é um exemplo de manutenção preventiva, agir na fonte do problema antes que o problema ocorra.

O exemplo da manutenção corretiva apenas está aí para todos verem. Os danos e riscos que ocorrem quando um galho de árvore ou a própria atinge a rede elétrica são de grande monta e de difícil solução, e pior quando não se tem pessoal suficiente para atender de forma eficiente e eficaz para eliminar ou minimizar os problemas. Sim, “a privatização de serviços essenciais para a população é uma roubada”!

Engenheiro eletricista Professor Álvaro Martins. Foto: Arquivo pessoal Álvaro Martins.

Informações dão conta que a Enel reduziu o quadro de funcionários enquanto o seu lucro cresceu. Essa baixa no quadro técnico-operacional, aliado a uma falta de planejamento para situações como esta e o descaso da municipalidade em manter o ordenamento da fiação elétrica combinado com manejo e poda constante de árvores são algumas das explicações? Quais outros motivos podem ser apontados e quais são as soluções?

As fontes de informações precisam ser conferidas. De fato, houve redução de quadros de empregados próprios e aumento do lucro que na sua maior parte não é movimentado no país e sim transferidos para a matriz, no caso para a Itália. O planejamento é indispensável em quaisquer empreendimentos ou atividades. Por exemplo, se profissionais próprios são reduzidos devem ser compensados por pessoal terceirizado, que normalmente não possui o mesmo desempenho. Normalmente, até para maximização do lucro, a reposição não é feita à altura. Para se ter ideia, São Paulo cresce uma Brasília por ano, esta era uma premissa desde a Light Serviços de Eletricidade S.A., precursora da Eletropaulo. Por isso o sistema é dinâmico e intenso de forma que atrasos ou não intervenção podem causar efeitos danosos.

O uso indiscriminado dos postes das concessionárias de energia elétrico por sistemas de dados, comunicação, TV, especialmente por empresas não legalizadas, causam danos que os tornam sensíveis em condições de intempéries. Com as privatizações do setor elétrico e de telecomunicações, uma alternativa seria as prefeituras cuidarem de seus municípios e exigir procedimentos rigorosos de utilização de acordo com a normalização técnica e controle absoluto das intervenções nos sistemas aéreos e subterrâneos.

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Um grande projeto de instalações subterrâneas é uma solução viável? Esta seria a forma ideal de pensar uma solução, observado que eventos climáticos como este podem se tornar mais constantes? O ordenamento das ruas e calçadas entra nesta questão de que forma?

A utilização de instalações subterrâneas, de fato, traz mais segurança, pois são menos afetadas pelas intempéries. Porém, a mudança para subterrânea custa cerca de oito vezes e meia o custo da instalação aérea, conforme estudos que elaboramos há 15/18 anos. Não dá para estalar os dedos e ter essa mudança. A Eletropaulo, antes das privatizações, construiu diversos túneis e instalações subterrâneas importantes que, sem elas, os danos recentes seriam maiores. Essas instalações são de transmissão, de alta tensão e para alimentação de Estações de Distribuição de Energia (ETD), caso do túnel construído para a alimentação da ETD Brigadeiro (Av. Brigadeiro Luis Antônio, altura do número 1830), que é alimentada a partir de cabos subterrâneos vindos da Zona Oeste, e de grandes consumidores (do tipo A1), caso da Scânia em São Bernardo do Campo.

Entendo que a Prefeitura não deve ser um agente e sim um órgão disciplinador, controlador, regulador com o objetivo de garantir melhor qualidade de vida aos cidadãos. É importante destacar que tanto o espaço aéreo como o subterrâneo da cidade de São Paulo estão lotados com as diversas utilidades existentes, especialmente, nos bairros mais centrais. Pior, não há projetos disponíveis de forma que para novas utilizações muitas “surpresas” podem ser encontradas.

Daí a importância do órgão disciplinador, pois o mais próximo do cidadão é o Executivo municipal. Há padrões de utilização já aplicados em vários locais do mundo como na Europa, Japão etc. Faz-se necessário estudos detalhados de médio e longo prazos, não dá para ser imediatista no setor elétrico. O planejamento deve ser realizado de forma exaustiva e envolver a todos. De qualquer forma, em termos de substituição de instalações elétricas aéreas por subterrâneas recomenda-se seguir o planejamento da Light/Eletropaulo e a partir do centro de São Paulo expandir para os demais bairros.

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Reestatizar a Enel seria um caminho? Além disso, o caso da empresa serve como alerta para a população para projetos privatistas do governo para a Sabesp, Metrô e CPTM?

Talvez o melhor caminho. Basta olhar as cruzetas de madeira na horizontal nos topos dos postes, as que suportam principalmente os cabos de média tensão de 13.200 V (13,2 kV), grande parte está podre e pode se romper, principalmente durante tempestades ou ventos fortes, e provocar grandes riscos e acidentes com esses cabos no chão.

O processo de privatização é decrescente em termos de oportunidades de se obter ganhos financeiros a cada ano e a cada transferências de ativos. Os mais favorecidos com a privatização da Eletropaulo Metropolitana foram a EDF e a AES, as primeiras, que demitiram em massa e venderam imóveis da concessão.

Foto: Álvaro Martins

Ao repassarem já obtiveram os seus pontos de lucros máximos satisfeitos e quem adquire tem mais dificuldades que as que repassam.  Para se ter ideia por, de forma aproximada, a Eletropaulo possuía cerca de 26.500 trabalhadores antes dos trabalhos pré-privatização. Passou a cerca de 18.500 no período de “enxugamento” para a privatização. Então, foi dividida em quatro empresas: a Eletropaulo Metropolitana, caso em discussão, a Bandeirante, a EPTE (transmissão de energia) e a EMAE (geração de energia e controle de cheias).

Coube à Eletropaulo Metropolitana cerca de 12.500 trabalhadores. Foi privatizada em 15/04/1998. De imediato a AES e a EDF, as novas proprietárias, cortaram 1.070 empregados. As reduções foram sentidas em 11/03/1999 quando do então maior “blecaute” do país, devido a colapso de tensão. O sistema demorou para ser religado porque as distribuidoras não possuíam empregados e automatização suficiente. Para se ter ideia, em quinze minutos a EMAE sincronizou quatro geradores na Usina Hidrelétrica Henry Borden (Cubatão) e ao ligar as linhas as cargas eram maiores que a capacidade inicial disponibilizada. Essa alternativa, conforme procedimentos do Sistema Interligado foi repetida mais duas vezes com o mesmo insucesso devido, principalmente, a falta de operadores nas distribuidoras (Metropolitana e Bandeirante). A importância desse procedimento se deve à Usina Henry Borden estar no maior centro de carga e ao entrar em operação as demais usinas se sincronizariam em minutos ou poucas horas e não em um ou mais dias, como aconteceu.

Os trabalhadores eletricitários têm consciência dessa condição predadora por parte, principalmente, das empresas de origem estrangeiras. Atualmente, lutam para tentar manter os seus programas de aposentadorias e pensões, pois, tudo foi mudado. Anteriormente tinham à disposição a Fundação CESP, referência também em plano de saúde. Com as consequentes mudanças nas gestões das empresas, especialmente da Eletropaulo ou Metropolitana, hoje ENEL, a Fundação CESP foi substituída pela VIVEST e acabou o sossego dos trabalhadores ativos e aposentados.

Não há qualquer sombra de dúvida de que o povo paulista e o povo paulistano, especialmente, devem se manifestar contra os projetos privatistas do governo do Estado para a Sabesp, Metrô e CPTM. As iniciativas do Governo do Estado de São Paulo sempre estiveram na contramão da história e hoje muito mais, pois quem privatizou passou a reestatizar, caso principalmente do abastecimento de água, energia e transporte público. A população deve estar alerta, se mobilizar, pois, não são somente os empregados das empresas estatizadas que sofrem as consequências nefastas das privatizações, mas todos nós, como agentes consumidores dos serviços.