Nem The Crown nos convence de que precisamos de monarquias no mundo moderno

Dos 194 Estados reconhecidos pela comunidade internacional, 43 são regidos por monarquia.

Volta e meia, os criadores de The Crown são acusados – com razão – de edulcorarem a imagem da monarquia britânica, em especial a da rainha Elizabeth 2ª (1926-2022). Mas um episódio da sexta e última temporada da série, lançada pela Netflix em novembro passado, deixa a condescendência de lado e expõe em detalhes um dos muitos anacronismos que cercam a família real.  

O capítulo é batizado de “Ruritânia”. Nele, Elizabeth, incomodada com os elevados índices de aprovação do primeiro-ministro Tony Blair, quer entender por que a monarquia não goza mais de prestígio semelhante. Um conselheiro tenta dissuadi-la: “A Coroa não faz perguntas existenciais sobre si mesma”. Mas a monarca não desiste.

Após encomendar uma ampla pesquisa de opinião pública, a Corte pede ajuda ao próprio Blair. Em resposta, ouve conselhos que vão da mudança nas regras de sucessão à demanda por mais transparência. O premiê insiste particularmente no que chama de “pompa e esplendor”. Para exemplificar essas aberrações, cita um punhado de profissionais que servem à casa real com “papéis cerimoniais” obsoletos.

Lá estão, entre outros, o caçador de falcões hereditário, o espalhador de ervas da rainha, o lavador de mãos do soberano, o guardião dos cisnes e o arauto de cerimônias. “Acho que estamos sugerindo uma purga de honoríficos. Uma extinção de sinecuras pode ser uma concessão bastante útil – e uma vitória das relações públicas”, diz Blair para uma rainha estupefata.

Numa das cenas seguintes, a família real discute as propostas do premiê em tom de ironia e desprezo. Apenas Charles concorda que fazer “uma ou duas concessões” beneficiaria a imagem pública da realeza. “Vai nos deixar menos aberto a acusações de elitismo e grandiosidade”, diz o primogênito da rainha. “Não há nada de errado em administrar a monarquia de uma maneira mais racional ou democrática.”

É nesse ponto que Elizabeth abre mão da ideia de burilar a reputação real. Contrapondo-se ao filho, a rainha conclui que a monarquia “não é racional, ou democrática, ou lógica, ou justa”. Seu discurso atribui uma espécie de missão espiritual – quase sagrada – aos ocupantes do Palácio de Buckingham.

“As pessoas não querem vir ao palácio real e ter o que já têm em casa”, filosofa. “Quando vêm para uma investidura ou uma visita de Estado, quando nos encontram, querem magia e mistério – e o secreto, o excêntrico, o simbólico e o transcendente. Querem sentir como se tivessem entrado em outro mundo. Este é o nosso dever: elevar e transportar as pessoas para outro reino, e não trazê-las de volta à terra e lembrá-las o que já possuem.”

The Crown é uma obra de ficção, ainda que livremente inspirada em fatos verídicos. Não sabemos se o vaivém da rainha Elizabeth realmente ocorreu – da inclinação inicial em remodelar a monarquia até o abortamento completo do plano. Mas é inegável que a família real tem de se preocupar não apenas com sua popularidade – mas, acima de tudo, com sua razão de existir.

Entre os séculos 18 e 19, as revoluções burguesas ajudaram a exterminar a monarquia em diversos países europeus, como a França, a Itália e a Alemanha. O comunismo também deu sua contribuição no século 20, ao depor reis, imperadores e czares na Rússia, na Iugoslávia, na Romênia e em outras nações. Mesmo assim, o sistema monárquico sobreviveu na Europa, onde famílias reais continuam à frente de sete países e cinco principados.

Um levantamento Deutsche Welle mostra que, dos 194 Estados reconhecidos pela comunidade internacional, 43 são regidos por monarquia. Na Europa, reis e rainhas com décadas de trono têm abdicado nos últimos anos, mas a coroa continua em família. São funções representativas e, por vezes, decorativas – o termo “rainha da Inglaterra” é usado há décadas para descrever políticos que têm cargos, mas pouco poder.

Ora, para que servem, então, as monarquias no mundo moderno – e, em especial, as monarquias parlamentaristas europeias? Qual o sentido de mantê-las para além de valores como “magia e mistério – e o secreto, o excêntrico, o simbólico e o transcendente”? O dia e a dia em um e outro palácio real pode render até filmes e séries atraentes, a exemplo de The Crown. Mas podemos viver felizes sem essas produções, assim como o mundo não tem exatamente o que perder se as dinastias hereditárias chegarem ao fim.

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