Para minha alma gêmea intelectual, Alberto Gabriele. Por Elias Jabbour

Alberto Gabriele se junta a Ignacio Rangel, Milton Santos, Carlos Augusto Figueiredo Monteiro, João Amazonas, Haroldo Lima e Aziz Ab´Saber entre os que convivi, aprendi o que é fazer ciência e me fez crescer

Elias, Alberto Gabriele e Francesco Schettino. Foto: Instagram Elias Jabbour

Perdi uma alma gêmea. Sim, Alberto Gabriele e eu nos entendíamos quase que por telepatia. O que nos unia? Nossas ideias sobre o socialismo, nossa negação às visões utópicas, desconexas da realidade e a busca por um corpo teórico, conceitual e categorial capaz de entregar um marxismo como poderosa arma de enfrentamento da realidade a partir das experiências socialistas. Eu e Alberto nos distanciávamos do ascetismo e do discurso fácil, pois entendíamos que o marxismo é uma ciência do poder político. Por isso, nossa aversão a bravatas e performances de falsos revolucionários e “radicais” que infestam as redes sociais. Falávamos muito em detalhes da construção do socialismo: sistema empresarial, de preços, constrangimentos internos e externos (metamodo de produção), sistema financeiro, lei do valor, contabilidade da firma, contabilidade social, planejamento, projetamento etc. Foi minha alma gêmea que conheci por insistência.

Na minha tese de doutorado (que ampliada, converteu-se em livro prefaciado por Domenico Losurdo) já era vagamente presente a ideia de que na China emergia uma nova formação econômico-social. Mas foi após ler “Market Socialism as a distinct socioeconomic formation internal to the modern mode of production”, escrito por ele e o gigante Francesco Schettino, foi que me convenci de que deveria ir atrás desse gênio italiano. Após anos de insistência, somente em 2015 ele aceitou um call para conversar comigo. Alberto era muito tímido e desconfiado. Já na primeira conversa ficaram claras nossas convergências quase totais. Alberto já era autor de artigos disruptivos sobre política industrial e sistema empresarial chinês e vietnamita (o Vietnã era sua grande paixão). Com o próprio Francesco Schettino escreveu para revistas como o Cambridge Journal of Economics uma pérola sobre distribuição de renda em Cuba.

Sua grande bomba intelectual foi lançada em 2020 pela Springer, “Enterprises, Industry and Innovation in the People’s Republic of China – Questioning Socialism from Deng to the Trade and Tech War”. Ali Alberto se apresenta em sua melhor forma, se consolidando como o grande economista do mundo no que que se refere a análises da dinâmica empresarial e de inovação tecnológica do socialismo no século XXI. Nenhum pensador ocidental chegou próximo de Alberto Gabriele neste aspecto. Por trinta anos foi economista de projetos na UNCTAD com ampla experiência internacional. Tudo isso contribuiu na sua transformação no mais capaz economista voltado a compreender o socialismo da forma como ele se apresenta.

Após anos de conversas, decidimos escrever um livro. Já estava madura em nossas cabeças uma série de ideias e a montagem dos capítulos já estavam claros. Partíamos do mesmo cabedal categorial: formação econômico-social, modo de produção e lei do valor. A reconstrução dessas categorias, à luz do que ocorre na China seria o pulo do gato, que neoclássicos, marxistas acadêmicos/ocidentais e keynesianos, sobre o muro que história colocava diante de teorias datadas.

A análise de uma nova formação econômico-social demandava outra gama de categorias, uma outra gramática e um ponto cego que ainda nos faltava: o que emergia após a elevação das relações entre ser-humano e natureza na China após a apropriação pelo Estado socialista de inovações tecnológicas disruptivas, não somente elevando a capacidade de planificar, mas inaugurando uma coisa nova – da mesma forma que Adam Smith percebeu esse novo com o surgimento de novos esquemas de divisão social do trabalho como resultado da elevação da técnica em sua época, inaugurando o capitalismo em sua forma industrial?

Um esboço de resposta eu já tinha após ler diversas vezes “Elementos de Economia do Projetamento”. Sabia que para Alberto demoraria um tempo para digerir a ideia. Fui à Roma em 2019 com minha família para me “trancar” com Alberto por três meses, convencê-lo da ideia de “Nova Economia do Projetamento” e colocar na praça um livro onde todas as nossas ideias construídas ao longo de anos estivessem lá, novas e vivas.

Cada categoria ou conceito era uma longa discussão para sua elaboração. O conceito de “metamodo de produção” foi quase um ano de idas e vindas entre nós dois. O mesmo sobre como abordaríamos a questão do valor e, por fim, Alberto se tornou o mais entusiasmado com a ideia de projetamento. Nosso livro lançado pela Boitempo em 2019 (com uma live sensacional com a presença de Dilma Roussef, Silvio Almeida e Tings Chak) já se transformou em best-seller. Uma versão ampliada em inglês foi lançada pela Routedge (“Socialist Economic Development in the 21st Century – A Century after the Bolshevik Revolution”). As ideias contidas nele são vistas na China como verdadeiras “descobertas científicas” e até semana passada eu e Alberto já discutíamos um volume 2 deste livro.

Novas ideias já estavam em acúmulo e já permeavam alguns artigos científicos que recém-publicados sob minha lavra. O mais triste de tudo é que além de perder minha alma gêmea intelectual, é saber – também – que nossa colaboração estava apenas no início e que muito tínhamos a fazer juntos, pois as mudanças em andamento na China iam ao encontro de nossas ideias. O combate que estávamos enfrentando com os marxistas acadêmicos/ocidentais era feroz, mas tínhamos certeza de nossa correção.

Alberto Gabriele se junta a Ignacio Rangel, Milton Santos, Carlos Augusto Figueiredo Monteiro, João Amazonas, Haroldo Lima e Aziz Ab´Saber entre os que convivi, aprendi o que é fazer ciência e me fez crescer. No fundo sou um homem de sorte. Enfim, escrevi aqui o que minha emoção permitiu. Acordei com uma mensagem de Francesco Schettino me informando de sua morte. Triste e impactado fico por aqui. Perdi uma alma gêmea. Dói muito.

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