Brasil pede perdão por crimes da ditadura contra indígenas

Reparação coletiva representam uma nova etapa na garantia de direitos para essas comunidades, podendo influenciar a votação do marco temporal no STF

Frame/MDHC/Youtube

Nesta terça-feira (2), a Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos realizou um ato histórico ao pedir perdão, em nome do Estado brasileiro, aos povos indígenas Guarani-Kaiowá e Krenak pelos atos cometidos contra eles desde a década de 1940 até o período da ditadura militar (1964-1985). A reparação coletiva representa um reconhecimento inédito da violência a que essas comunidades foram submetidas.

A estimativa da Comissão Nacional da Verdade aponta que 8.350 indígenas morreram por ação direta ou indireta do Estado durante a ditadura militar. Até 2023, a Comissão de Anistia concedia apenas reparações individuais, incluindo financeiras. Os casos dos Guarani-Kaiowá e Krenak já haviam sido analisados durante o governo de Jair Bolsonaro, que negou ambos os pedidos de reparação. No entanto, o Ministério Público Federal recorreu e houve uma reavaliação.

Durante a análise dos casos, a presidente da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz, realizou um gesto simbólico ao se ajoelhar diante das lideranças indígenas, pedindo perdão em nome do Estado brasileiro. “Peço permissão para me ajoelhar com a sua bênção. Em nome do Estado brasileiro, eu quero pedir perdão por todo sofrimento que o seu povo passou. […] Leve o respeito, nossas homenagens e um sincero pedido de desculpas para que isso nunca mais aconteça”, expressou.

Os pedidos de reparação coletiva, uma novidade no regimento da Comissão de Anistia desde 2023, não geram ressarcimento financeiro direto, mas podem representar uma nova etapa na garantia de direitos para essas comunidades. Isso inclui retificação de documentos, inclusão no Sistema Único de Saúde (SUS) e avanços no processo de demarcação de terras.

Guarani-Kaiowá

No caso dos Guarani-Kaiowá, o pedido de perdão destacou a expulsão dos indígenas do território Guyraroká, em Mato Grosso do Sul, devido ao interesse agropecuário na região. Enquanto isso, os Krenak tiveram parte de suas terras roubadas para o agronegócio, além de terem sido submetidos a trabalho forçado, maus-tratos, tortura e desaparecimento.

A expulsão sistemática dos Guarani-Kaiowá do território Guyraroká remonta à Era Vargas, mas foi intensificada durante a ditadura militar, especialmente a partir da década de 1970, com o Plano de Integração Nacional e a expansão do agronegócio. Os indígenas foram alvo da política brasileira de remoção de áreas de interesse agropecuário, sendo expulsos de suas terras e confinados em reservas delimitadas pelo governo federal, enquanto suas terras originais eram passadas a fazendeiros.

Os relatos dos Guarani-Kaiowá falam de casas queimadas, parentes agredidos e tiros durante as remoções, evidenciando a violência e a injustiça sofridas. Mesmo após décadas de luta, os Guarani-Kaiowá continuam a lutar pela retomada de seu território, vivendo em áreas não protegidas e enfrentando ameaças constantes, como a presença de milícias armadas.

O pedido de perdão realizado pela Comissão de Anistia representa um passo importante na busca por justiça e reconhecimento das violações cometidas contra os Guarani-Kaiowá. Além disso, pode influenciar diretamente o processo de demarcação de terras, que foi barrado pelo Supremo Tribunal Federal em 2014.

O procurador Marco Antonio Delfino de Almeida, do Ministério Público Federal, destaca que o pedido de anistia pode provocar alterações no posicionamento do STF, especialmente em relação ao ministro Gilmar Mendes, que defende a tese de um marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

Krenak

A história dos indígenas Krenak é marcada por um período sombrio de violência, injustiças e violações de direitos durante a ditadura militar no Brasil. O pedido de anistia feito em 2015 pelo procurador Edmundo Antonio Dias Netto Júnior, do Ministério Público Federal, revela um cenário de etnocídio e brutalidade contra esse povo originário.

Um mês após a promulgação do Ato Institucional nº 5, em um contexto de repressão política e autoritarismo, foi inaugurado o Reformatório Krenak. Fruto de um convênio entre a Funai e a Polícia Militar de Minas Gerais, o objetivo declarado do reformatório era “recuperar” indígenas considerados subversivos.

No entanto, o que se seguiu foi um período de horror para os Krenak. Relatos de trabalho forçado, maus-tratos, tortura, desaparecimento e até estupro emergiram, revelando uma realidade de violência desumana e análoga à escravidão.

A própria Funai, em documentos da época, admitiu que o Reformatório Krenak era um “regime da fome e da pancada”, onde a violência atingia a todos, não se restringindo apenas aos confinados.

Apesar das graves violações de direitos, a gestão Bolsonaro manteve-se contra a reparação aos Krenak em uma ação movida pelo Ministério Público Federal em Minas Gerais. O processo, que condenava a União por suas responsabilidades nas violações, encontra-se travado na segunda instância.

O comando do major Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como Capitão Pinheiro, foi central nesse contexto de violência. Ele foi responsável pelo deslocamento forçado dos Krenak para uma fazenda distante, em uma ação que os indígenas chamam de “exílio”, descrevendo um cenário de violência e tratamento desumano.

Mesmo após décadas de luta, os Krenak ainda buscam o reconhecimento de seus direitos e a demarcação de um território que vá além do que foi concedido pela Funai em 2001.

Além dos casos dos Guarani-Kaiowá e Krenak, a Comissão de Anistia também deve julgar nos próximos dias a revisão do “Caso dos 9 Chineses”, episódio no qual nove diplomatas chineses foram detidos, torturados, condenados à prisão e expulsos do Brasil com base em uma acusação falsa de “subversão” durante a ditadura militar.

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