Economia avança, mas indústria ainda é gargalo para ganhos melhores
Para Lúcia Garcia, pesquisadora do Dieese, Brasil precisa superar modelo primário de exportação para garantir renda melhor e bem-estar para trabalhadores intermediários e da base
Publicado 01/07/2025 12:57 | Editado 01/07/2025 13:48

O Brasil tem experimentado, especialmente a partir de 2023, um quadro bastante positivo em sua economia, que se reflete, entre outros indicadores, numa das mais baixas taxas de desemprego dos últimos anos e no aumento no rendimento médio dos trabalhadores.
Apesar disso, tem sido comum a percepção negativa de parte da população, mostrada inclusive em pesquisas recentes, com relação ao quadro econômico geral e à sua vida em particular. Num cenário de forte divisão política e fortalecimento da extrema direita, elementos ideológicos difundidos, sobretudo, pelas redes sociais, inegavelmente interferem nos humores dos brasileiros.
Porém, há outros fatores que incidem mais diretamente sobre essa percepção. Pesquisadores de diferentes institutos têm se debruçado sobre dados do mercado de trabalho para tentar responder a essa aparente contradição entre o avanço econômico e a sensação de piora ou de estagnação.
Um dos mais recentes levantamentos sobre o tema foi exposto no boletim “Emprego em Pauta” do mês de junho, produzido pelo Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).
Tendo como base dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, do IBGE, a publicação destaca que “ao comparar as pessoas ocupadas no 4º trimestre de 2023 e que permaneceram assim no 4º trimestre de 2024, foi estimado que apenas metade (52%) teve aumentos de rendimento acima da inflação no período”.
Nesse universo, o levantamento pontua que a situação é melhor “no grupo dos 40% com menores rendimentos, em que 70% declararam aumentos reais nos ganhos. Já entre os 10% com rendimento superior, menos de um terço (32%) declarou ampliação na renda”.
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Outro dado revelador e que merece atenção é a situação dos trabalhadores que figuram no “miolo”, ou seja, naquele segmento intermediário entre os de salários mais baixos e os mais altos em que apenas 41% dos ocupados declararam ter tido crescimento no rendimento no período avaliado.
“A melhoria das rendas no Brasil não vem acontecendo de maneira homogênea” e o “segmento que tem sido desfavorecido é o dos trabalhadores com carteira assinada de patamar mediano de renda”, explica ao Portal Vermelho a economista e pesquisadora Lúcia Garcia, do Dieese.
Segundo ela, embora seja positivo e necessário que a parcela de poder aquisitivo menor tenha sido a que mais ampliou seu rendimento, “a polarização do mercado de trabalho significa que vamos ter cada vez mais ganhos nas pontas e uma depressão maior dos segmentos mais centrais, medianos, e isso é alimentado pela perda de complexidade da produção nacional”.
Nesta entrevista, Lúcia Garcia destrincha melhor esses dados e reflete sobre os avanços do governo Lula no campo econômico e a necessidade de o país sofisticar sua produção interna a fim de gerar empregos que possam resultar em rendas mais altas e equânimes para a massa trabalhadora.
Economia robusta

“A economia brasileira tem apresentado resultados positivos e robustos. A taxa de investimento no Brasil está crescendo, o que significa que os resultados que o governo tem se esforçado para mostrar estão sendo constantes, persistentes e demonstram a saúde da nossa economia, em que pese a taxa de juros altíssima e o fato de termos um cenário internacional cada dia mais difícil”.
Melhora não homogênea
“O trabalho do Dieese é convergente com análise feita recentemente pelo o Ipea. Ambos nos dizem o seguinte: é verdade que temos avanços no mercado de trabalho, é verdade que nós temos, do ponto de vista da apresentação do dado, um rendimento médio no primeiro trimestre de 2025 ascendente, melhor do que 2024 em 4% — e no caso de 2024, também houve uma melhora bem mais acentuada, de 7%.
A melhoria do rendimento no primeiro trimestre de 2025, no entanto, se concentrou numa população entre 14 e 24 anos, com ensino médio incompleto, entre trabalhadores por conta própria e assalariados sem carteira assinada. Já para os assalariados que têm carteira assinada, o crescimento do rendimento vem sendo muito mais lento e inferior às outras modalidades.
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Além disso, se nós formos olhar para os segmentos setoriais, nós vamos ver que a intensidade do rendimento está melhorando principalmente na agricultura primária exportadora e um pouco na recuperação da indústria. Mas aqueles trabalhadores que estão voltados ao mercado interno, comércio e serviços, estão com variações nas suas rendas muito abaixo da variação média total.
Então, resumindo, a melhoria da renda no Brasil não vem acontecendo de maneira homogênea. O estudo do Dieese mostra que o rendimento cresceu mais intensamente para as pessoas que ganham menos. Um terço dos ocupados do Brasil recebe até um salário mínimo. E é nesse segmento dos 10% mais empobrecidos que os aumentos de renda têm se dado. O segmento que tem sido desfavorecido é o dos trabalhadores com carteira assinada de patamar mediano de renda”.
Polarização no mercado de trabalho
“Então, o que vem acontecendo é que estamos caminhando, cada vez mais, para uma polarização no mercado de trabalho: temos um grupo de trabalhadores, do ponto de vista de rendimento, que ganha menos e que está elevando suas rendas, o que é positivo, mas isso não é algo que está acontecendo com todos os trabalhadores. O segmento que estamos chamando de mediano, que são os trabalhadores com carteira assinada e que recebem patamares em torno de R$ 3,5 mil mensais, não está vivendo esse mesmo processo.
A polarização do mercado de trabalho significa que vamos ter cada vez mais ganhos nas pontas — no topo e na base — e uma depressão maior dos segmentos mais centrais, medianos, e isso é alimentado pela perda de complexidade da produção nacional”.
Reprimarização da economia
“Isso é resultado de um processo antigo. Há anos, o Brasil caminha para a reprimarização da sua economia, com um crescimento determinado, sobretudo, pela exportação de grãos, carnes e minérios e isso se reflete no mercado de trabalho. Por outro lado, temos uma luta em andamento pelo aumento da complexidade da produção brasileira, que é um grande desafio.
Uma economia que perde complexidade, que alicerça sua melhora de renda apenas no segmento mais vulnerável e de produção mais simples pode ampliar a equidade, mas é uma equidade que se dá por baixo e achata todo mundo. O que precisamos é de mais igualdade, mais equilíbrio nos rendimentos, com um potencial de elevação de renda que vá acima dos R$ 3,5 mil”.
Processo de precarização do trabalho
“Outro aspecto importante que marca esse cenário é o fato de que a massa de empregadores brasileiros não é composta pelo grande empresário, pelo grande capital que está na ponta, se beneficiando da estrutura financeirizada do país e do avanço tecnológico.
A grande maioria é formada por empregadores medianos, que dançam conforme a música. Então, à medida em que temos pouca margem de complexidade no país, os negócios têm rentabilidade reduzida e eles vão preferir uma força de trabalho mais barata, o que desmonta completamente o discurso de formalização da reforma trabalhista.
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Na verdade, a gente baixou o teto da formalização, dando cobertura para os contratos antes informais e legitimando a desproteção social através dos PJs (pessoas jurídicas), que é a destruição do assalariamento e que possibilita maior rentabilidade às empresas.
As pesquisas mostram que o trabalhador ainda prefere a carteira assinada e ter direitos, mas ele se vira como pode. Ou seja, esses dados sobre o rendimento refletem também uma situação de precariedade no mercado de trabalho”.
Cenário adverso dentro e fora do país
“E o que é capaz de nos tirar estruturalmente da situação em que nós nos encontramos? Em primeiro lugar, é preciso dizer que está havendo um esforço muito grande do governo. Avalio que a gestão da economia brasileira é irreparável no contexto atual.
Afinal, de um lado, temos uma maioria de ‘funcionários do grande capital’ ocupando as cadeiras do Congresso Nacional, parlamentares que são verdadeiros representantes desse capitalismo que está aí, com viés neofascista. E de outro lado, temos um quadro internacional muito evidente de queda de um império e ascensão de outro.
Nesse cenário, acho que o ministro Haddad tem conseguido tirar leite de pedra para termos o resultado econômico que temos. Repito: temos resultados econômicos robustos, mas um modelo muito concentrador. Superar essa situação está muito além da capacidade apenas do ministério.
O esforço de reindustrialização brasileira está atingindo resultados que começam a aparecer na indústria de uma maneira geral, mas ainda não se refletem no mercado de trabalho de forma ampla”.
Reindustrialização via Brics
“Especialmente neste momento, sabemos que o desenvolvimento de maior complexidade econômica brasileira também depende da dança internacional das cadeiras e de como o Brasil consegue dialogar e se conectar com o Brics — e a China é fundamental neste sentido, é uma nação potente, que enriquece gerando bem-estar.
Precisamos, portanto, usar esses fatores a nosso favor e tornar a produção brasileira mais complexa se quisermos um mercado de trabalho melhor, uma renda média mais elevada e mais bem-estar para toda a população”.