Dom Aloisio, Um Brasileiro do Século XX

O Caderno Vermelho associa-se a dor de todos os brasileiros, em especial dos cearenses, diante do falecimento de Dom. Aloisio Lorscheider neste domingo, dia 23. Boa parte de sua trajetória de engajamento em favor da democracia, da liberdade, da justiça so

Nem bombas caseiras atiradas no jardim de sua casa nem os três sustos que seu coração lhe deu – chegou a receber quatro pontes de safena – fizeram este homenzarrão gaúcho de 1,95m cair por terra. Neto de alemães, d. Aloisio nasceu na pequena cidade de Estrela, a 8 de outubro de 1924, e aos nove anos, antes que se apaixonasse por alguma garotinha, tomou a decisão de ser padre. Entrou para o seminário, em Taquari (RS), estimulado pelos pais, e sua ascensão na Igreja foi meteórica. Com apenas 50 anos, tornou-se o primeiro, e até hoje único, eclesiástico brasileiro candidato a papa. No pleito de 1974 que decidiu quem seria o sucessor de Paulo VI, perdeu para João Paulo I, que confessou ter votado em d. Aloisio. Corre à boca pequena que se o novo papa não tivesse morrido 33 dias após sua eleição, teria nomeado o brasileiro para o cargo de secretário de Estado do Vaticano, o segundo posto mais importante da Cúria romana. Mais tarde, soube-se que o próprio d. Aloisio havia feito uma sofisticada articulação entre seus colegas para que não recebesse votos.


 



Quando conversa, tem a fala mansa e os gestos angelicais. Mas desfigura-se se o assunto for as mazelas sociais do País. Enérgico, nunca admitiu interferências de quem quer que fosse na sua guerra em defesa dos direitos humanos. Nem uma carta-advertência enviada ao cardeal, em 1988, pelo papa João Paulo II intimidou d. Aloisio. Velho conhecido dos generais da ditadura, travou uma luta incansável pela redemocratização do Brasil e pelo fim das torturas.


 



Foram atitudes assim que fizeram do cardeal uma unanimidade no coração do povo brasileiro. No entanto, dentro da Igreja a situação é diferente. Assumindo posturas para lá de polêmicas, como a defesa da ordenação dos padres casados, nunca agradou a gregos e troianos e arrumou problemas por onde pregou. No início dos anos 70, os latifundiários do Ceará conheciam sua fama de progressista e já esperavam enfrentar problemas quando d. Aloisio tornou-se arcebispo de Fortaleza. Mas não contavam com a intensa campanha promovida por ele em favor da reforma agrária e pelo fim dos conflitos de terra no Estado. Naquela época, estava em sua primeira gestão como presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), onde ficaria até 1979. Mas nem o importante cargo que ocupava evitou que sofresse toda sorte de represálias. Os desaforos aos poderosos da região renderam ao bispo incontáveis ameaças de morte, dois cachorros envenenados e a explosão de uma bomba caseira no jardim de sua casa. Em outra ocasião, três homens armados tentaram entrar em seu quarto, mas, graças a Deus, foram descobertos a tempo.


 



Como se não bastassem os incômodos causados pelos fazendeiros, o cardeal foi vítima de um covarde ato de violência. Em março de 1994, ele fazia uma de suas rotineiras visitas matutinas ao Instituto Penal Paulo Salasate, em Fortaleza, onde verificava as condições de sobrevivência dos detentos. Enquanto discursava no auditório insalubre, a luz apagou e um repórter que acompanhava a visita ouviu murmúrios na platéia. Tudo indicava que os presos estavam conspirando. Alguns segundos bastaram para que dois deles dominassem d. Aloisio com uma gravata e instaurassem a rebelião. Arrastado para debaixo de uma mesa, a primeira coisa que o cardeal fez foi pedir aos rebelados que fosse o último refém a ser libertado. Pedido atendido, mas 18 horas depois. Mais tarde, respondendo aos comentários de um deputado sobre a necessidade da pena de morte para os rebeldes, declarou: “O senhor deveria passar dez dias naquele presídio. Tenho certeza de que também iria lutar por sua liberdade.” Menos de um mês depois do episódio, lá estava a foto de d. Aloisio nos jornais novamente. Desta vez, fazendo a cerimônia do lava-pés nos detentos do mesmo presídio.


 



Ídolo de Copolla


 


O cardeal mais famoso do cinema hollywoodiano – seu nome é citado no filme O Poderoso Chefão III, de 1990 – não gosta de ser chamado de intelectual, mas tem currículo para isso. Doutorou-se em Teologia Dogmática, em 1949, pela Pontificium Athaeneum Antonianum, universidade franciscana de Roma, onde também deu aulas até 1962. De volta ao Brasil, começou a ganhar destaque na cena nacional por causa de seu engajamento político. Foi um dos autores do documento redigido pela CNBB, em 1968, que pedia a volta do “funcionamento do Executivo, Legislativo e Judiciário, com a elaboração de uma Constituição eficaz”. Por essas e outras, se não queriam vê-lo morto, os militares o desejavam pelo menos amordaçado.


 



Hoje, aos 74 anos, é cardeal-arcebispo de Aparecida do Norte (SP). Mais ocupado que bengala de cego, dedica-se a visitar as paróquias da arquidiocese, participar das celebrações e, quando sobra algum tempo, gosta de vigiar a vida dos fiéis. Hollywood nunca mais citou seu nome em filme algum, mas os brasileiros não se importam. Assistem todos os domingos à missa das oito que d. Aloísio reza no Santuário Nacional, em Aparecida, pela Rede Vida (de orientação católica). E o ibope é altíssimo.


 



VOCÊ SABIA? As visitas do cardeal-arcebispo às penitenciárias de Fortaleza sempre foram mais do que festejadas pelos presos. Não só por causa de suas palavras de conforto, mas também porque ele nunca se esquecia de levar o que alguns padres consideram coisa do demônio, mas que os detentos disputam à tapa nos presídios: maços de cigarro.


 



Fonte: Revista Isto É (ano 2000)